Gen Pés Descalços: Infernos particulares e coletivos
/por Marcão Maciel
Depois de 2 anos e meio sem ir ao Brasil, estava bastante animado em retornar à boa terra. Passagens compradas, amigos avisados, bebedeiras combinadas e tudo mais garantido para ter férias memoráveis. Só esqueci de combinar com o Covid. Já no quinto dia de viagem recebi o balde d’água fria: fui diagnosticado com o vírus e tive de amargar uma quarentena de 15 dias. Mas do limão tentei fazer uma caipirinha. Levei uma pá de livros e gibis para amenizar o período de isolamento. Sem ocupações sérias na rotina, consegui ler quase a metade deles, o que me faz pensar que talvez (pausa dramática e irônica) esteja comprando coisa demais, já que, mesmo com tempo totalmente livre, meu ritmo de leitura mostra-se incapaz de dar conta da pilha dos “não-lidos”, que já se transformou na grande maioria da minha coleção. Mas esse é outro papo.
Depois de duas semanas de isolamento, a pilha dos lidos (coluna da direita) cresceu em ritmo menos que satisfatório.
Dentro do grupo dos gibis escolhidos para a gloriosa missão de me fornecer cultura e entretenimento nas duas semanas de afastamento social, dois chamam a atenção pela similaridade de temas: o fato de contarem histórias traumáticas, com recorte biográfico, baseadas em fatos reais. A primeira delas, Fugir. O Relato de um refém (Guy Delisle, Zarabatana, 2018) narra o caso de um funcionário da ONG Médicos sem Fronteira, Christophe André, que ficou 111 dias trancafiado em abrigos insalubres, após ter sido sequestrado no Cáucaso. Catártico como sou, compartilhei o penar do protagonista, tentando compará-lo com meu sofrimento (?) de quinze dias de quarentena. Óbvio que meu martírio (?) não deu nem para o cheiro. Primeiro porque o sujeito passou quase todo o período de cativeiro com o braço algemado na cama de seu quarto, o que impedia que tivesse um mínimo de conforto. É o tipo de situação que te faz relativizar qualquer tipo de lamento que se poderia fazer em relação à (falta de) sorte. Seguindo esta lógica, o próprio Christophe poderia levantar a mão para o céu e agradecer pelo seu destino, porque, do lado da sina de Keiji Nakasawa, de Gen: Pés Descalços (Conrad, 2011-2016), qualquer outra tragédia parece férias na Disneylândia.
Para quem não está familiarizado com o mangá, Gen conta, mirando a lupa na direção de uma família em particular, os eventos envolvendo a queda da bomba atômica em Hiroshima na fatídica data de 6 de agosto de 1945. Desde os momentos anteriores à explosão do mortífero armamento, acompanhamos como a vida de uma família de índole pacifista se transformou num inferno infinito de dor, sequelas imensuráveis e desesperança. Depois que a morte projetou sua sombra sinistra sobre a pequena cidade japonesa, um novo capítulo instaurou-se na história da humanidade, que começou a perceber os perigos – até hoje não totalmente conhecidos – da era das armas nucleares e de seu poder de destruição quase absoluto.
Mas o que nos interessa aqui é discutir a sina pessoal e coletiva dos habitantes de Hiroshima, fadada eternamente a chafurdar na lama nefasta e inclemente da radioatividade, que jamais esqueceu dos sobreviventes daquela segunda-feira maldita, marcando e alterando seu DNA de forma indelével. Diante de tantas privações e da consequente degeneração do frágil tecido social da cidade no pós-cataclisma, observar a força de vontade e resiliência do alter-ego do autor, a criança Keiji, fez despertar sentimentos diversos. Por um lado, fiquei revigorado por encontrar uma alma que teima em prosseguir – contra tudo e contra todos – apesar de invariavelmente encontrar obstáculos de proporções olímpicas. Por outro, brotou em mim um sussurro mórbido, curioso em descobrir qual seria o evento que – finalmente – conseguiria dobrar sua personalidade vivaz e inocente.
A jornada autobiográfica da criança que se torna um jovem de coração altruísta e aguerrido é uma montanha-russa de emoções, numa sucessão vertiginosa de pequenas alegrias e grandes desgraças. Durante as mais de duas mil páginas da epopeia pessoal de Nagazawa, o autor volta o espelho para si e expõe medos e defeitos, relembrando episódios de sua trajetória que oscilam entre o trágico, o ridículo e o surreal. Exemplo disso é quando Keiji finge ser um monge que faz as preces para os mortos em troca de dinheiro. Feliz por ter uma grande clientela, num ramo comercial em ascensão, Keiji passa a tomar uns “bons drink” e apresentar-se bêbado no trabalho, chegando a parabenizar as famílias enlutadas pelo “bem-vindo” falecimento do parente. Em momentos como este somos apresentados a um protagonista afastado do ideário tradicional do herói romântico. Embora persistente, esforçado e corajoso, a maior virtude de Keiji é ser apenas humano, com todas as falhas inerentes ao termo.
O Keiji autor foge de julgamentos acerca das decisões de seus personagens, sejam eles jovens cruéis, mafiosos ou simplesmente facínoras de marca maior. Nem mesmo seu irmão mais velho, que deixou todo mundo na mão e se entregou para a cachaça, é criticado. Num mundo em que o simples fato de ser sobrevivente de uma realidade pós-bomba atômica parece atentar contra qualquer lógica racional, o autor talvez não tenha se sentido em condições de arbitrar as motivações de pessoas que lutavam pela mais básica das necessidades: o direito de existir, ainda que de modo ilícito/imoral.
Aliás, a gradual e inexorável degradação física e mental dos personagens chama a atenção. A espiral de decadência que aflige os habitantes de Hiroshima é tão dolorosa que acompanhar o gibi até o final é um exercício para poucos. Longe de mim apontar o dedo para quem desiste da leitura no meio da jornada. Afinal, não são todos que suportarão presenciar a saga de Keiji. A luta pela sobrevivência, que deveria ser a mais bela das batalhas, suscita no leitor, em diversos momentos, sensação de repulsa. Afinal, o preço que alguns pobres coitados estarão dispostos a pagar para continuar neste plano de existência beira o indizível.
Nakazawa põe o dedo na ferida e não exime ninguém da culpa pela guerra e seu indesejável epílogo radioativo. O espírito belicista dos japoneses, bem como a ganância de seus militares e a decisão norte-americana de lançar a bomba maldita são intensamente criticados. Assim como seu conterrâneo e colega de profissão Shigeru Mizuki, o mangaká dedica muitas páginas de sua obra para fazer um mea culpa nipônico, expondo a crueldade do exército do sol nascente durante as incursões na Coreia e na China no pré II-GM, como vemos na página abaixo:
A adoração cega ao Imperador e os desmandos do exército também não passam incólumes:
Como já mencionei antes – não que isso não seja de conhecimento público – as grandes vítimas dos grandes conflitos não são os detentores dos meios de poder, mas sim a Dona Iolanda da farmácia e o Zequinha da mercearia. E num cenário de marcante desigualdade social, como era o Japão do entre-Guerras, os efeitos tenebrosos do conflito foram potencializados. O resultado deste caldo de desgraça não poderia ser outro: o prevalecimento do espírito de “cada um por si” e o estabelecimento de um caos social que tornou os habitantes de Hiroshima presas fáceis para os interesses das potências vencedoras da II Guerra. Exemplo disso é a revelação de que laboratórios norte-americanos estavam realizando pesquisas não consentidas com as vítimas da radiação. Não à toa, neste momento, a revolta de Keiji atinge proporções bíblicas: como se não bastassem todas as agruras passadas, seus familiares e amigos ainda viraram cobaias involuntárias, num processo motivado por um cientificismo brutal, que funciona à margem da lei.
O decorrer do tempo faz com que o elenco seja constantemente alterado. O entra e sai de personagens oxigena a série e deixa o leitor sentado na ponta da cadeira, no melhor esquema Game of Thrones. Qualquer um – menos o Keiji, claro – pode ser assassinado pela máfia, morrer de câncer, ser preso ou simplesmente picar a mula em busca de paragens mais alvissareiras. E as reações de Keiji são tão contundentes quanto pueris. Em certo momento, após mais uma das inúmeras mortes que vitimam um dos personagens de apoio, ele dispara pérolas verbais que refletem sua ingenuidade infantil, ainda prevalecente, mesmo diante de uma tristeza sem fim: “Fulano, se você morrer, eu nunca vou te perdoar!”.
Gen: Pés Descalços, na condição de livre adaptação de uma experiência real, vai além de sua incumbência de registrar os momentos mais trágicos da vida do autor e se torna – ela própria – exemplo da obstinação de seu criador. Somente alguém com a força de vontade para superar tamanhos traumas teria o empenho necessário para produzir uma saga de tamanha envergadura: dez volumes com total de mais de duas mil páginas de duração, produzidas ao longo de doze anos. Além do colossal esforço de roteirizar e desenhar uma obra de tamanha importância pessoal e histórica, Keiji ainda teve as manhas de encarar novamente todas suas lembranças barra pesadíssimas e colocá-las no papel. Tarefa árdua que só seres dotados de resistência e abnegação sobre-humanos seriam capazes de executar.
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Se Fugir já tinha sido o primeiro tapa na cara, posso dizer Gen foi o último prego no caixão, para eu, ao menos, começar a pensar em parar de reclamar da vida, especialmente por causa de problemas menores. Nada como colocar as coisas em perspectiva.