O que são BDs? Um segundo corte, parte 3: Moebius
/Por Ciro I. Marcondes
Moebius morreu em 12 de março de 2012. Eu havia programado um texto sobre Escala em Pharagonescia, uma de suas histórias mais interessantes e pitorescas, para a série “o que são BDs – um segundo corte”, quando, em 12 de março de 2012, Moebius morreu. Isso me fez repensar algumas coisas sobre como este texto deveria ser conduzido, e resolvi realizar apenas um comentário breve sobre Pharagonescia e encarar novamente, com toda sua complexidade, irregularidade e gordurosas gotas de primorosa intuição lisérgica, A garagem hermética, uma obra que é toda Moebius, uma obra que está toda dentro de Moebius, e a vida e morte de Moebius, de certa forma, atravessa a esteira dimensional que compõe esta obra.
Sobre A garagem hermética, escreveu Moebius: “Ao criar este sentimento de permanente insegurança, eu descobri o prazer da continuidade. Todo mês eu tentaria, com certa dificuldade, recriar uma trama coerente a partir dos elementos existentes. Então, as separaria outra vez para me sentir inseguro novamente e, assim, no mês seguinte, unir os pedaços e começar tudo de novo, até o final da história”. Este procedimento criativo, que intui as próprias hipóteses (e não as respostas) da história a partir das imagens que vão se transvisualizando no lápis do autor, é o diferencial de um artista como Moebius. Ele sai de uma noção bela, simples e ao mesmo tempo inexorável de inconsciente, como se, lá no fundo de nós mesmos, ao invés de palavras tivéssemos imagens (ainda Freud, ao invés de Lacan), e essas imagens é que gerassem nossa consciência, nosso self, tudo o que somos, e daí também, no processo artístico, os diálogos brotam das imagens, a trama brota das imagens, portas abrem outras portas, fiações geram estruturas que abrem mais portas, e a linguagem do sonho parece uma oficina organizada, mas organizada no condensar e no deslocar. É uma garagem, sim, mas hermética.
É curioso que Jean Girauld tenha adotado “Moebius” (“Möbius”) como nome de guerra para sua ficção científica lisérgica, já que o universo da garagem hermética nos coloca na perspectiva de que podemos estar vivendo em um mundo inventado – não por um deus, mas por alguém como nós –, e que a realidade se encaixa em modelos concêntricos de construção, como se, se aplicamos engenharia para construir um prédio, alguém pudesse ter aplicado engenharia para construir a nós e a esse planeta. A fita de Möbius é um espaço sem bordas e sem fronteiras, sem frente nem verso, sem direção e cuja perspectiva é a de se andar para frente e para os lados ao mesmo tempo. A predileção por este fantástico objeto matemático como nome de guerra nos mostra que, realmente, a série A garagem hermética funciona como a própria labiríntica rede de túneis em que o personagem Larc Dalxtré adentra para tentar encontrar Lewis Carnelian: podemos entrar por qualquer lugar, andar sem saber o rumo, pensar que vamos numa direção e ir para outra, mas sempre, sempre chegamos a algum lugar, geralmente o nosso mesmo ponto de partida.
A garagem hermética é uma das grandes obras das histórias em quadrinhos. Foi escrita, de maneira bastante irregular, ao longo de 10 anos (1976-1987) por Moebius para a revista Métal Hurlant, sob editoração de Jean-Pierre Dionnet. É comum que nos percamos na hora de ligar os pontos das jornadas individuais de cada personagem, especialmente na primeira metade da história, bem diferente das últimas (e aventurescas quase num nível de super-herói) quinze páginas, escritas de uma só vez. De certa forma, perder-se no labirinto do real é um objetivo da arte de Moebius. Como em Becket, seus personagens, mesmo parados, trilham caminhos, e encontram sentido (como na fita de Möbius) somente no movimento de trilhar em si, irrompendo na encruzilhada entre a fiação da realidade exterior e a da realidade interior, mediados pela tecnologia (no fim das contas, para Moebius, é tudo a mesma coisa). Para aprofundar (minimamente que seja) uma análise desta HQ, vale pensar em outros dois aspectos:
1: A superfície visual do mundo
Como eu disse antes, Moebius trabalha nesse nível plasmático do mundo, uma superfície visual mutável que faz vezes de diálogo, faz vezes de história. Na Garagem hermética, num espaço de conflito pelos botões que gerenciam a própria realidade, acompanhamos as jornadas becketianas de cinco personagens: o engenheiro (e assassino de um guarda... “pai de dois filhos”!) Barnier, que quebra um aparalho na garagem e precisa fugir (e logo encontra o misterioso Arqueiro); Samuel L. Mohad e sua namorada Okania, responsáveis por espionar os planos de Lewis Carnelian; Larc Dalxtré, por sua vez um espião da mulher do Major Grubert, Malvina, a feiticeira sexual; o próprio Major Grubert, famoso personagem de Moebius, um humano que descobre a chave tanto da imortalidade quanto da criação de mundos, e é o responsável pela criação dos três níveis do universo da mitologia de Moebius, sendo cada nível mais puro que o outro, um como gerador do outro (mais ou menos como no filme “A origem” ou na HQ “O reino dos malditos”); e, por fim, Lewis Carnelian, humano da geração de Grubert, a quem foram conferidos poderes especiais pelo Nagual (“aquele que permanece imóvel e silencioso no centro da teia do tempo”, oh my god...), e que pretende, de alguma forma, tomar conta dos níveis do universo de Grubert, gerando aí toda uma série de tramas, espionagens e desventuras em busca desse centro de poder. Como se pode ver, os entrecruzamentos destes personagens são vagos, num quebra-cabeças impreciso, nada wellesiano, e cercado de paisagens estranhas, dobras e vácuos no tempo e na realidade, a partir de veículos esdrúxulos, culturas esquisitas, indumentárias e modas cruzadas, arquiteturas oníricas, mundos que abrem passagem uns aos outros. Seria, assim, um flanar pela própria estrutura interdimensional do espaçotempo.
Poderíamos pensar, sem querer trazer conceitos filosóficos demais (sem necessidade) a este texto, que a imagem, essa plasmadora do quebra-cabeças, para Moebius, funciona como o conceito de imanência para o filósofo Gilles Deleuze: ou seja, dessa superfície onde repousam todas as coisas tangíveis, brotam todas as outras intangíveis (os incorpóreos). Basta pensar o método de quadrinização de Moebius, que, apesar de mudar no decurso da série, teria uma propensão mais centrípeta (cada quadro é um universo em si, com linhas de ação e tempo acontecendo dentro de uma só imagem) do que centrífuga (a arte sequencial narrativa da HQ de tradição mais americana, muito dependente da sarjeta, sem as lacunas de Moebius, funcional). É comum, n’A garagem hermética, que três ou quatro quadros resumam situações bastante complexas, com diálogos extensos, alongando o tempo de observação das próprias imagens, ou o contrário: diálogos lacônicos cuja função será privilegiar a imprecisão temporal da história. Moebius realizava, durante muito tempo, apenas duas páginas por mês, então é natural que se compreenda a Garagem hermética como uma estrutura de sistema solar, onde cada pequeno núcleo orbita os outros, mas de maneira relativamente autônoma. Neste sentido, o vagar dos personagens pelas fendas do mundo do Major Grubert é ao mesmo tempo o vagar das palavras pela imprecisão das imagens (ou vice-versa) e o vagar dos acontecimentos do mundo por essa estrutura plasmática que seria a imanência deleuziana. É por isso que vemos, n’A garagem, tantas contribuições de metalinguagem, com o narrador dos letreiros cada vez mais aloprado e sem funcionalidade, assim como também uma variação muito exótica entre humor e drama, aventura barata e densidade filosófica. Os túneis de Larc são, em todos os níveis, alegoria da própria transcendentalidade, em todos os níveis (artístico, real, filosófico) da visão de mundo de Moebius.
2: Transmutabilidade
Assim, chegando em Escala em Pharagonescia, é impossível não pensar neste precisamente bem-executado spin-off d’A garagem hermética como um epílogo mais organizado e simpático do que a obra maior de Moebius. Afinal, aqui, Moebius problematiza a situação do estrangeiro, da figura em passagem (mais uma vez, becketiano), que procura se alojar, por um dia que seja, na cultura antípoda, mas isso acaba por revertê-lo numa mutação: no sentido alegórico da história, uma mutação existencial. No sentido literal, uma mutação física. Moebius não explica tecnicamente (é claro. Ele deixa apenas deixa que se antevenha que aquela “magia” possui algum fundamento técnico, ou melhor, mecânico, seja ele qual for) a razão porque, após beber uma coisa de um jeito errado, o terrestre J.D. Foster, numa escala no planeta Pharagonescia (bem na fase IV do dia das mutações! Seja lá o que isso signifique...) passa a sofrer mutações cada vez mais estranhas, com sua estrutura molecular se reorganizando o tempo todo. Chega um momento em que os Pharagos, tentando resolver o problema, casualmente soltam diálogos deste tipo: “Ah! Não é estranho? Saiu do estado de Pnouche... pra entrar no estado ‘ultrafluidez molecular osk-bergam’”. “Estado ‘ultrafluidez molecular osk-bergam,’ claro, claro. O problema é que estamos exatamente no dia da festa das mutações e que a conjunção das três luas e do grande fasma resulta naquilo que vocês bem sabem”...
Ao trabalhar o conceito de mutação como algo pertencendo a um universo absolutamente alienígena (“ultrafluidez molecular osk-bergam”), mas ao mesmo tempo colocando os personagens para discutirem esse cotidiano com imprevisível familiaridade (“O problema é que estamos exatamente no dia da festa das mutações e que a conjunção das três luas e do grande fasma resulta naquilo que vocês bem sabem”), Moebius faz verdadeira ficção-científica. Suas imagens e seu texto servem ao mesmo tempo para que pensemos em seres cuja fragilidade molecular permite que se transmutem, em nível atômico, como atividade ritual, fazendo-nos refletir sobre a fluidez ou cristalidade do mundo subatômico, no que fomos, no que somos e no que seremos; e ao mesmo tempo para criar um cotidiano absolutamente entediante ao redor de quem vê essa cultura de uma perspectiva interna, como um lixeiro tendo que varrer as merdas dos turistas ao final docarnaval carioca. Esta tensão entre humor e metafísica é o que acaba extenuando a qualidade de Moebius como artista sem fronteiras, cujo hermetismo pode variar de edificações de mundos com leis próprias até a simplicidade de um humor anedótico e chulo. N’A garagem hermética, há um momento em que o Major Grubert faz perspicaz observação: “às vezes, o próprio tempo sonha”. E era mesmo isso que seus universos, e o próprio Moebius, faziam parecer querer ser: sonhos do próprio tempo. Em 12 de março de 2012, o tempo despertou, e nos deixou, ao que parece, numa eterna vigília.