Estripulias de Ba-Ba-Barbarella
/por Ciro I. Marcondes
E eis que chega às minhas mãos, via Pedro Brandt, um exemplar de Barbarella chamado “A obra-prima” (de 1977), numa simpática edição portuguesa da Meriberica/Liber (original da belga Dargaud), escrita e desenhada por ninguém menos que o criador da beldade, o francês Jean-Claude Forest. Ler uma Barbarella original é uma experiência muito legal por dois motivos: primeiro, porque a heroína surgiu em 1962, antes, por exemplo, da Valentina, e desde então se tornou citação preferida das feministas, enquanto ícone da cultura pop representando a mulher que utiliza sua sexualidade em prol de uma libertação sociopolítica. Em segundo lugar, sendo fã do filme de Roger Vadim (1968), pensava se valeria a pena buscar uma comparação da musa nos quadrinhos com sua sensacional e apimentada encarnação vivida por uma jovem e exuberate Jane Fonda (fiquem aí com o sensacional strip-tease da abertura).
A obra-prima (Le semble-Lune) é o terceiro, dentre quatro, volumes publicados por Forest, que deixou um legado enxuto, mas respeitável. A história se alterna num mundo de “tempos imovíveis”, dentro do sonho, à maneira do Andarilho dos limbos (já comentada aqui), misturando fantasia espacial, multidimensional, e uma ficção-científica tão pulp que é capaz de considerar o ano-luz uma unidade de tempo, e não de distância (para se ter uma ideia do nível das techno bubbles, basta dar uma sacada nessa fala: “meu mastacrac atirou-o para fora do U.P. 1.000 e espalhou-o pelo mundo infinito dos antimundos”). Muito curiosamente, esse ambiente maluco e inverossímil ganha tons de comédia, quase num estilo pornochanchada, quando uma sexualidade explosiva, muito mais que latente, vai se infiltrando de um jeito desavergonhado, e os personagens vão fodendo, assim, quase que naturalmente, enquanto decisões insanas são tomadas, daquelas que colocam “os multiversos” em risco.
Vejamos em mais detalhes esse plot: Barbarella é convocada por dois sujeitos com aspecto de cientistas malucos para, por meio de uma máquina (sempre as máquinas – e como não lembrar do saudoso orgasmatron, que faz parte do universo da heroína), entrar nos sonhos do grande construtor Browningwell – alterego do autor –, que jaz hibernando, e descobrir o enorme segredo que ele guarda. Barbarella concorda, é claro, mas apenas se puder tirar a roupa (pois sente calor!), e desperta num mundo de fantasias (todos os sentidos). Em contato com o introspectivo e mau-humorado (ainda que irresistivelmente sedutor) Browningwell, Barbarella percebe-se vítima de uma conspiração dos cientistas malucos e opta por ficar no mundo dos sonhos. Lá, ela vai ajudar Browningwell a vencer um concurso de esculturas cósmicas (os “obras-primas” – sendo a primeira delas bem parecida com a “estrela da morte” de George Lucas), cujo construtor do primeiro colocado leva um sistema estelar inteiro de prêmio. Browningwell quer muito levar esse prêmio porque, diz ele, os milhões de inocentes do sistema solar não podem cair nas mãos do construtor-crápula inescrupuloso que é seu maior rival.
Vixen
dona de casa
A história, como se vê, é um enorme blá-blá-blá sem sentido em que observamos Barbarella, sempre semi-nua (ou completamente), sendo levada de um lado para o outro, como um estorvo ou ameaça diante de todos com quem se mete. O legal é que a ameaça é sempre sua seuxalidade. Os “companheiros” da espécie de sindicato que faz as obras-primas chegam a chamá-la “aquela mulher vinda do universo intermédio, com seus baixos instintos e maneiras suspeitas”. A delicada questão surge quando, afinal de contas, a pergunta inevitável martela a cabeça: “afinal, o que tem de feminista em uma mulher sendo manipulada, física e psicologicamente, por um monte de homens conspiratórios, de ‘gênio brilhante’, empenhados em conceber uma obra-prima, de intelecto tão masculino”? Ora, vamos considerar que estamos em 1977 e Barbarella escolhe (ao bel-prazer, exclusivamente) seus parceiros sexuais. Vamos considerar, também, o engenho, meio chanchadesco-pornô-dos-70s, do final da história. Impossível não lembrar Russ Meyer, sendo Barbarella a definitiva vixen: após manifestar interesse em construir também sua obra-prima e ser ridicularizada e rechaçada por Browningwell, a heroína decide “recolher-se” ao seu “lugar feminino” e passa apenas a trabalhar limpando a nave do construtor (chegamos a vê-la usando um aspirador de pó futurista – para depois usá-lo, de outra forma, com Browningwell). Depois, ela decide refugiar-se num planeta de beleza natural enquanto o criador completa sua obra-prima.
Machismo/Feminismo: ambiguidade
Nesta passagem, vemos Barbarella gestando um filho. Quando o construtor retorna, o filho é usado como arma pela heroína, que não esconde suas antigas “desvantagens” (a “fragilidade sexual” e a maternidade) como estratégias de conquista do poder sobre os homens e em especial sobre o homem mais poderoso de “todos os multiversos”. Interessante mesmo é a concepção de que obra-prima masculina é produto da tecnologia e do intelecto humanos, enquanto a obra-prima feminina (colocada, vamos ser justos, em patamar de igualdade na HQ) é a própria obra do instinto, do furor animal: a gestação em si, a reprodução, a continuidade da espécie. Dona da continuidade da espécie, a mulher (no caso, Barbarella) assume o destino do casal e o comando da história. Ainda que passível de crítica, esse é a ambiguidade entre machismo e feminismo que compõe o universo da heroína.
No final das contas, ler esta velocíssima pequena saga de Barbarella, a despeito de seu aspecto barato e tosco, é uma experiência divertida e até fulgurante. A arte e quadrinização de Forest não fica muito à frente da de um Zéfiro, mas é esse aspecto de coisa pra se jogar no lixo que torna seu significado social ainda mais potente. Não é todos os dias que se vê um produto tão despretensioso levantar uma questão tão contraditória, interessante e relevante de maneira tão leve e natural. A sexualidade, o sexismo, os padrões de comportamento social, os preconceitos, chistes e todo tipo de atividade saudável (ou não) da nossa intimidade no século 20 são trazidos de forma absolutamente irreverente e sagaz nesta história. Além disso, o jeito pulp da HQ até contribui para deixar tudo mais sedutor de uma forma meio perversa, meio escondida, mais sacana ainda. E a Barbarella, apesar do traço meio grosseiro, é gostosa, reconheçamos. Jane Fonda teve, em seu avatar original, curvas logisticamente engrenadas para inspirá-la para o irretocável e safadinho filme de Vadim.
A "Estrela da Morte" de Forest Vale lembrar, nesse contexto todo que envolve coisas tão díspares – humor non-sense, erotismo sacana e ficção científica –, o quanto a cultura das BDs pode ser surpreendente, seja na ambição megalítica (praticamente usandos os mesmos elementos) de um Druillet ou de um Moebius, seja na despretensão acolhedoura de um Forest. Observando ao mesmo tempo o corpus comum de temas e a variedade de histórias e abordagens realizados neles, percebemos que a BD é ainda exemplo irretocável de como culturas completas e longevas, tradicionais e de ruptura (às vezes, tudo ao mesmo tempo) podem emergir da história das histórias em quadrinhos.