O que são BDs? Um segundo corte - parte 2: Ulysses

por

Ciro I. Marcondes

Para quem está perdido no nosso guia idiossincrático da estética e cultura das HQs francobelgas, pode ler a introdução ao segundo corte e o primeiro texto (

Andarilho dos limbos

)

aqui

, além dos textos do primeiro corte (

aqui

). Li

Ulysses

numa reedição americana,

Heavy Metal Classics

, de 2006, que reúne os dois volumes da obra. É uma leitura leve, deliciosa e estimulante.

Polifemo

2: Ulysses (Georges Pichard e Jacques Lob)

Zeus e os deuses do Olimpo: Legião dos Super-Heróis?

Concorda-se hoje que dia que a

Odisseia

seja uma coletânea de mitos das tribos gregas arcaicas reunidas em textos tradicionais cuja disseminação se dava, primeiro, apenas oralmente, e que depois foram organizadas por dois ou três aedos

que acabaram sendo convencionalmente reunidos sobre a alcunha “Homero”

, no Séc. 8 a.C. À

Odisseia

junta-se a outra epopeia clássica, a

Ilíada

, além de outros textos épicos que se perderam, muitos deles ainda na época da antiguidade. Estes textos sobreviventes fazem parte de nossa fundamentação filosófica, histórica e religiosa, e deveriam ser lidos cuidadosamente por qualquer cidadão que se interesse minimamente por cultura ou história. Estas estruturas míticas, que englobam a criação de arquétipos definidores, preceitos morais e toda uma substância linguística herdada pelo ocidente, se manifestam em grande escala em nossos conceitos filosóficos, literários, psicanalíticos, sociológicos e políticos. Obviamente, a

Odisseia

é um dos textos mais apropriados, parodiados, reprocessados e adaptados da nossa história.

Enquanto outras mídias procuraram sempre reinventar o sentido da tenebrosa viagem de retorno de Ulisses

(ou Odisseu, para os gregos) após vencer a guerra de Tróia, os quadrinhos realizaram apenas leituras tímidas, quase todas adaptações infantis.

A arte safadinha de Pichard

O que torna essa versão realizada pela incrível dupla Pichard/Lob diferente de tudo que foi feito em relação ao peso histórico deste texto é sua alucinante adequação ao

esprit d'époque

no qual os autores estavam mergulhados. O já falecido Georges Pichard foi um dos mais talentosos e inquietos mestres do erotismo francês, e a maior parte da sua obra em quadrinhos foi dedicada ao aperfeiçoamento desta arte, tão cultivada pelos gênios setentistas da

Métal Hurlant

. Pichard detém um traço ao mesmo tempo expressivo e delicado, de alta personalização e identificação. Seus cenários e figurinos são floreados de elegante

art-nouveau

, inundando as páginas com cores suaves e curvas sinuosas, deixando seus personagens com forte carga sensual, inequivocadamente sensual, impterivelmente sensual. Suas mulheres, com olhos grandes e vibrantes, sardas salientes e curvas difíceis de se ignorar, chegam quase a exalar perfume róseo saído de dentro das páginas da HQ. Toda essa imersão em um ideal grego de beleza fez com que ele encontrasse, na

Odisseia

, um foco muitas vezes ignorado nas transposições habituais da obra, que é essa urgente sensualidade e a presença constante de volúpia e desejo nas ações que norteiam os heróis.

As sereias

Por outro lado, o tradicional roteirista de Pichard, Jacques Lob (também falecido), encontra uma segunda maneira (à parte a sensualidade) de manifestar este estilo setentista a uma história tão distante no tempo. Sem perder completamente o embasamento no original de Homero (a época e os personagens se mantêm) e influenciado por uma leitura bem-humorada, sacana e

cool

dos padrões e personalidades dos deuses gregos – que mistura Stanley Kubrick,

Erick von Daniken

,

Stan Lee

e um tanto de outras coisas –  Lob vê na trajetória do rei de Ítaca uma grande afinidade com o estilo sci-fi descolado da

Métal Hurlant

. Assim, transforma os deuses não em criaturas mágicas, mas em sujeitos avançados tecnologicamente e de mentalidade moderna, com visual

chic

e arrojado, comportamentos liberais e pós-modernos; figuras hedonistas, cínicas, junkies, devassas, dândis.

Netuno

Esta combinação robusta de talento e

timing

para se perceber como contar um clássico à luz de sua própria época (a HQ foi publicada originalmente em dois volumes, em 1974 e 75) faz do

Ulysses

de Pichard e Lob uma obra leve e deliciosamente rica, cercada de conceitos ousados para o design de personagens e para invenções retrofuturistas. Espertamente, Lob também limita a adaptação a apenas quatro cantos da

Odisseia

, tornando a jornada de retorno do herói grego menos cansativa (quem leu Homero sabe o quanto) que o original. Assim, a adaptação resume-se aos episódios com o ciclope Polifemo (aqui vertido num robô de Netuno), à perseguição empreedida pelo deus dos ventos Éolo (um sujeito gordo que voa numa poltrona metálica estilo Charles Xavier – em forma de bunda), à estadia de Ulisses e seus marinheiros na ilha da feiticeira Circe (aqui, além de feiticeira, uma diva lisérgica, experimentadora de radicais modalidades sexuais e psicotrópicas) e ao do chamado das sereias em alto mar.

Atena: belezinha

Cada um destes episódios é contado com encanto próprio, em quadros grandes e dinâmicos, quase como numa HQ de Jack Kirby ou John Buscema, mas ao mesmo tempo privilegiando ângulos pouco convencionais dos personagens, transbordando volúpia, olhares desejosos, pequenas sacanagens. O que também salta aos olhos é a criação de um conceito visual muito próprio e bem-sucedido para cada um dos deuses. Zeus, por exemplo, veste uma espécie de colant que poderia pertencer à Legião dos Super-Heróis, com olhos compenetrados e barba escura, jovial. A deusa Atena, aliada de Ulisses, mistura sua forte presença com irresistível ingenuidade, o que a tornam a personagem mais sensual da HQ, usando um enlouquecedor “tomara-que-caia” às avessas (!). O deus Netuno é uma criatura reptiliana, paranoica e mau-humorada, com ares de cientista, sempre coberto totalmente por um escafandro grosseirão. Já Hermes, o mensageiro do Olimpo, parece um astronauta da era de ouro, não deixando de se lembrar os super-heróis (Flash e Mercúrio) inspirados nele próprio.

Trips

Para finalizar, vale um comentário sobre o episódio de Circe, que achei o mais interessante e perturbador. No texto homérico, Circe é uma semideusa frívola e voluntariosa que vive cercada de ninfas em uma ilha, aonde Ulisses e os marinheiros vão parar após um naufrágio. Lá, ela os seduz e os transforma em escravos (e porcos!) usando poderes mágicos, seduzindo o rei grego e provocando nele o ímpeto para realizar sua primeira traição a Penélope, a rainha que o aguarda há 10 anos em Ítaca. Pichard e Lob se aproveitam do óbvio potencial erótico e moral deste episódio para trazer cenas fortes de erotismo e repulsa (os marinheiros pensando que são porcos, comendo a própria merda, por exemplo). Circe e as ninfas são vertidas em devassas de índole libertária e quase sádica, valorizando um jogo S&M, lembrando muito os quadrinhos de Crepax. É excepcional a entrada de Ulisses no quarto dos prazeres de Circe (aqui, uma morena, sempre seminua, de olhar gótico e lábios carnudos), uma instalação meio

Mary Shelley

com

Russ Meyer

dedicada à experimentação com todo tipo de entorpecentes. Convencido a se drogar indefinidamente e alojado em outro

momentum

do tempo e do espaço, Ulisses fica no quarto pelo período de um ano, em intermináveis

trips

e orgias com Circe, até que desperta, resolve fugir e encontra seus marinheiros prontos para partir sem seu rei. O que se segue é um brutal

cold turkey

para o rei de Ítaca, em cenas macabras e psicopáticas que revelam o grau da abstinência que desaba sobre o herói.

Cold turkey

A graça deste episódio é que, por assustador que seja – Pichard desenha os quadros à maneira dos “

Fillmore Posters

” de Rick Griffin –, ele faz essa conexão bem sacada e maliciosa entre os ideais absolutamente não-puritanos dos gregos antigos e a ascensão da uma contracultura nos anos 60/70, da qual a

Métal Hurlant

acabou se tornando parte importante. Dispensando a obrigação de fazer

uma leitura muito densa e simbólica da obra de Homero

,

Ulysses

retrata o lado leviano e sarcástico, de ironia cruel, escondido sob as tradições de

pathos

e tragédia associadas aos gregos antigos. Esta operação, divertida e primorosa, de transformação do clássico em

cool

, fará com que a obra de Pichard e Loeb seja sempre revisitada, já que seus temas históricos e seus futurismos não têm lugar preciso na nossa realidade. Nem sempre é tão simples quanto parece criar um mito moderno a partir de um mito clássico, e essa obra tem o mérito de sintetizar, deliciosamente, duas épocas em uma só força narrativa .

Circe: encaras?