"Herói ou Ameaça?" O Homem-Aranha pela ótica do Clarim Diário

por Marco Antônio Collares

Todos nós sabemos o imenso sucesso do personagem Homem-Aranha da Marvel Comics e todos nós conhecemos alguns dos motivos desse sucesso perante o público como um todo. O que muitos dos fãs não percebem é o quanto esse sucesso relaciona-se a um dos mais renomados antagonistas do herói mascarado, o editor-chefe do jornal Clarim Diário, J.J. Jameson, que passa a maior parte de seu tempo tentando desmerecer o herói mascarado, evidenciando o que seria a verdadeira face do Homem-Aranha, não como o herói que procura afirmar em seus salvamentos do dia a dia, mas como um mero criminoso mascarado. Se o Abutre, o Dr. Octopus e o Duende Verde são ameaças físicas ao aracnídeo, o Clarim Diário é uma ameaça constante e simbólica, que exerce mais prejuízos à vida do herói aracnídeo do que todos os seus vilões reunidos. 

O Homem-Aranha da Marvel Comics de Stan Lee e Steve Ditko

A Marvel Comics é uma das maiores empresas estadunidenses do ramo de super-heróis, tanto em vendas como em popularidade. Em uma obra de referência sobre a trajetória da empresa, Marvel Comics: a História Secreta, o historiador-jornalista Sean Howe especifica alguns aspectos acerca dos objetivos da empresa nos anos 1960, momento em que a editora foi rearticulada pelo escritor, roteirista e editor, Stan Lee e pelo desenhista e criador, Jack Kirby, ambos sob a tutela de Martin Goodman, seu dono na época.

A partir desse momento, a Marvel Comics (outrora chamada de Timely Comics) se tornou uma espécie de "Casa das Ideias” (chamada de Marvel Bullpen por Stan Lee) de artistas, quadrinistas e novos talentos, inovando o gênero dos super-heróis nos EUA e no mundo. 

Até mesmo um “método Marvel” foi articulado no meio quadrinístico de super-heróis a partir de então. Tratar-se-ia de um método segundo o qual os desenhos seriam elaborados de improviso a partir de um roteiro geral superficial, sendo que somente ao final do processo de criação das imagens em sequência é que seriam alocados os balões de diálogos e os recordatórios, um fato que impulsionava a liberdade criativa das histórias em quadrinhos da editora.

O sucesso da editora não ocorreu somente em função dessa liberdade criativa, mas também porque os artistas da empresa colocaram em cena narrativas vinculadas ao contexto histórico, cultural, político e social de sua época e de seus próprios leitores, na medida em que tais artistas também eram leitores e fãs de quadrinhos de super-heróis, gerando uma forte identidade nos receptores de bens culturais em relação aos heróis adolescentes criados e veiculados pela editora. 

Os super-heróis Marvel se tornaram cada vez mais aproximados, em suas atitudes e ideias, das pessoas comuns e, como quaisquer pessoas, tais personagens tinham problemas semelhantes aos do homem comum nas grandes metrópoles dos EUA, o que era evidenciado nas mídias da época. O próprio Stan Lee, uma espécie de garoto propaganda da empresa, reiterava o diferencial da editora em relação à sua maior concorrente, a DC Comics, berço de personagens icônicos do porte de Superman e Batman.

Segundo Howe, a revista Voice da época chegou a se pronunciar em um artigo sobre a Marvel nos seguintes termos: “Os gibis Marvel são os primeiros da história que conseguem envolver um escapista pós-adolescente. Porque os gibis Marvel são os primeiros a suscitar, mesmo que metaforicamente, o Mundo Real”.

Foi nesse contexto específico, no qual a empresa buscava ampliar seu público leitor, passando a captar não somente o público infanto-juvenil padrão de quadrinhos de super-heróis, mas, igualmente, os jovens universitários, que o Homem-Aranha foi criado.

Peter Parker era - tal como escrevera Stan Lee na edição de sua primeira aparição - “o herói que podia ser você”. Suas narrativas trouxeram um sentido novo de realismo aos super-heróis, visto que se tratava de um adolescente nerd que sofria de bullying na escola, enquanto vivia com a tia idosa em um subúrbio da cidade de Nova York, um jovem tímido e retraído que, segundo os recordatórios de suas primeiras narrativas, representava “o cara mais caxias do colégio Midtown”.

Criado como uma espécie de arquétipo de seus próprios leitores, Peter Parker/Homem-Aranha estava muito distante dos atléticos super-heróis clássicos da DC e da própria Marvel, sendo um jovem magro, desengonçado e impopular no dia a dia, mas que, quando vergava a máscara e a fantasia de herói, se tornava descontraído e descolado, meio que uma dupla personificação dos leitores: o que eles seriam normalmente em seus cotidianos na escola e o que eles gostariam de ser.

A revista Amazing Fantasy número 15 trouxe a primeira aparição do herói aracnídeo, mais especificamente em junho de 1962, mostrando desde o início um jovem Peter Parker rejeitado pelos colegas, em um melodrama grandioso e intenso influenciado tanto pela personalidade intimista e minimalista do artista Steve Ditko como pela conhecida tagarelice do escritor e vendedor de ideias, Stan Lee.

De certa forma, essa ambivalência na personalidade do herói chamou a atenção de imediato dos leitores da editora, visto que o Homem-Aranha parecia ser o amálgama não somente dos anseios dos jovens, mas também da personalidade de seus dois criadores: o tímido Ditko enquanto Parker e o extrovertido Stan Lee sob a máscara de Homem-Aranha.

Em meio a essa ambivalência criativa, Peter Parker era constantemente tomado pela culpa em razão de não ter ajudado seu tio Ben quando o mesmo foi atacado (e assassinado) por um ladrão, tornando-se um vigilante mascarado que buscava ajudar a vizinhança (a cidade como um todo), ao mesmo tempo em que ganhava trocados para ajudar nas despesas de casa da tia viúva, quando da venda das fotos do Homem-Aranha na luta contra o crime. A capa da primeira edição em que o personagem foi representado colocou exatamente essa ambivalência nos balões e recordatórios, com um Homem-Aranha suspenso nos céus da cidade, afirmando não ser mais somente o tímido Peter Parker, mas também um incrível super-herói mascarado. 

O sucesso foi imediato e logo a redação da Marvel estava repleta de cartas de leitores que se identificavam com Peter Parker, não somente por sua personalidade instigante e ambivalente, mas igualmente por seu empreendimento de salvar pessoas ao mesmo tempo em que conseguia ganhos pessoais com tal fato. Foi nesse contexto que o Clarim Diário foi inserido como o cenário onde Peter Parker tentava vender as fotos de si mesmo como herói, tendo que conviver então com o universo jornalístico.

Nesse contexto, Parker teria de lidar com um de seus mais notórios “antagonistas”, o editor-chefe e dono do Clarim Diário, J.J. Jameson, um homem grosseiro e rabugento que comprava as fotos trazidas pelo jovem fotógrafo, mas que considerava o vigilante retratado uma verdadeira ameaça para a sociedade, intencionando evidenciar nas capas do jornal que o Homem-Aranha, apesar de espetacular, era mais um criminoso mascarado. 

Se Parker mostrava fotos de um salvamento ou de si mesmo combatendo o crime, lá estava J.J, tentando direcionar a notícia de modo a evidenciar que o verdadeiro criminoso por trás de todo o cenário retratado era o próprio Homem-Aranha, sendo esse um dos motes principais das narrativas do personagem, ou seja, o da relação entre a notícia de ações altruístas do Homem-Aranha e as interferências editoriais do dono do jornal que publicava e distorcia estas respectivas ações.

O Homem-Aranha segundo o Clarim Diário de J.J. Jameson

Na primeira página de uma das primeiras edições envolvendo uma notícia sobre o Homem-Aranha no Clarim Diário, logo após uma luta entre o herói mascarado com seu arqui-inimigo Duende Verde, aparece um risonho John Jonah Jameson comemorando o que seria a fuga “covarde” do herói aracnídeo. 

O editor-chefe do Clarim Diário procura demonstrar, com a notícia e com a chamada do editorial de página do jornal, que o Homem-Aranha é um verdadeiro covarde, o que seria por si somente uma construção do acontecimento, visto que na luta travada entre os dois antagonistas (na edição anterior), o Homem-Aranha afastou o vilão dos transeuntes, que vivenciaram a batalha como sua aparente fuga. Este é, portanto, um exemplo de interpretação do fato a partir da visão “distorcida” do editor-chefe do jornal, que nutre verdadeira aversão ao vigilante mascarado e que procura desmerecê-lo perante a opinião pública. 

De certa forma, a personalidade e a trajetória de Jameson explicam muito de seu desprezo pelo Homem-Aranha e mesmo por outros vigilantes mascarados. A explicação inicial diz respeito ao fato de sua esposa ter sido assassinada por um homem mascarado, levando-o a ter uma genuína aversão por todos aqueles que escondem a verdadeira identidade, considerando que só o faziam por motivos escusos. Existe, portanto um lado pretensamente verdadeiro no personagem, ainda que ambíguo para suas atitudes de intervenções editoriais acerca dos fatos envolvendo o Homem-Aranha.

O editor-chefe e dono do Clarim Diário possui também um orgulho genuíno de John, seu filho astronauta (e também o super-vilão Homem-Lobo), que para ele seria o "verdadeiro" herói americano, outro motivo que o leva a constantemente se opor à notoriedade dos vigilantes mascarados. Nesse ponto, existe outra ambiguidade em suas atitudes, na medida em que J.J. (como é conhecido) também procura vender jornais através da notoriedade desses mesmos mascarados, sendo o Homem-Aranha uma das figuras mais utilizadas nas capas de seu jornal (em razão, claro, dessa premissa ser parte integrante das narrativas em quadrinhos do personagem). As imagens abaixo mostram esse outro lado do editor-chefe do Clarim Diário, o lado empreendedor de um homem oportunista no que tange à utilização de fatos e fotos envolvendo o Homem-Aranha.

As imagens mostram Peter Parker vendendo fotos de si mesmo em ações como Homem-Aranha para J.J. Jameson, enquanto esse último desvela a mencionada ambivalência entre a aversão que sente pelo vigilante mascarado (chamado por ele de “ameaça pública”) e seus interesses econômicos, na medida em que as fotos do aracnídeo aumentam as vendas do jornal.

O Homem-Aranha é representado como a ameaça pública que J.J. Jameson quer evidenciar, sendo igualmente o personagem de capa que vende muitas tiragens do Clarim Diário, seja por suas ações fantásticas no combate ao crime, seja pela qualidade das imagens trazidas por Parker, visto que ele tira fotos dele mesmo em ação, como se estivesse na cena onde tudo transcorreu. 

Alguns exemplos interessantes de como J.J. Jameson intenciona destruir a imagem do Homem-Aranha mediante a opinião pública a partir de sua influência no jornal podem ser evidenciadas logo abaixo, em algumas imagens de narrativas em quadrinhos do Homem-Aranha da década de 1960, sob a pena do argumentista Stan Lee e do desenhista Steve Ditko.

No primeiro exemplo, J.J. aparece inicialmente satisfeito ante a possibilidade de o Homem-Aranha ser acusado por um assalto a banco, logo desiludido por um secretário, que lhe informa sobre o fato do herói ter aparecido no mencionado banco para combater uma gangue que atuava de forma criminosa no local, levando a face do editor do Clarim Diário a mudar completamente, da euforia para a completa desilusão. J.J não cria, portanto, as notícias, não inventa fatos que não ocorreram, o que explica essa mencionada desilusão, visto que ele realmente acredita ser o Homem-Aranha um criminoso.

Na segunda imagem, J.J está radiante diante do uniforme do Homem-Aranha, entregue por um anônimo após encontrá-lo jogado em uma lata de lixo. Na narrativa em questão, Peter Parker quase desistiu de sua vida de super-herói devido as notícias depreciativas do Clarim Diário sobre seu alter ego. Por fim, a última sequência, com um J.J evidenciando que seu principal objetivo é destruir a “ameaça” representada pelo Homem-Aranha, nem que seja “a última coisa que faça na vida”.

Diversas notícias e editoriais direcionados ou mesmo escritos por J.J. buscam destruir ou desmerecer a imagem do Homem-Aranha perante a opinião pública de Nova York, independentemente das ações altruístas do vigilante. De certa forma, a máquina de escrever de Jameson é sua arma pessoal para demonstrar que a cidade deveria se insurgir contra o vigilante mascarado, seja para prendê-lo, processá-lo ou simplesmente extirpar sua figura da sociedade novaiorquina. As duas imagens que se seguem evidenciam que o trabalho de J.J como jornalista é nitidamente laborioso e mais, que seu jornal reponde à voz da opinião pública, sendo a arma da população contra a ação ilegal de vigilantes mascarados do porte do Homem-Aranha.

Jameson mostra-se como um jornalista dedicado e quase absorvido pela sua missão de revelar a verdadeira face do Homem-Aranha, como que expressando uma voz honesta no combate ao vigilantismo. Peter Parker, por sua vez, é constantemente surpreendido pelas capas do Clarim Diário contra sua figura de herói mascarado, sempre se questionando acerca dos motivos que levam o editor-chefe do jornal a não acreditar em suas ações altruístas no combate ao crime.

Não é incomum também, em narrativas subsequentes, que argumentistas e desenhistas das tramas do Homem-Aranha tragam debates entre J.J e seu principal editor, Joe Robertson, que usualmente questiona o primeiro em relação a matérias e editoriais depreciativos relacionados ao vigilante aracnídeo. Nessas conversas, J.J se coloca usualmente preocupado com os fatos a serem noticiados, não reconhecendo em si um jornalista que distorce notícias, o que desvela uma atitude mais complexa do que a expressão do simples jornalismo marrom ou mesmo de meras intervenções editoriais com objetivos pessoais regados a “mau caratismo”.

Na imagem abaixo um exemplo interessante e representativo, desta vez sob a pena do desenhista John Romita. Na página elencada é representado um debate entre J.J e Joe Robertson referente à quase overdose por cocaína de Harry Osborn, filho do vilão Duende Verde e amigo de Peter Parker nas narrativas do Homem-Aranha dos anos 1970. 

Desde as primeiras narrativas em que apareceu, Joe Robertson foi representado como um contraponto a J.J. Jameson no Clarim Diário, servindo como válvula de escape para que as tramas do Homem-Aranha mostrem o dia a dia de um jornal sério e comprometido com fatos jornalísticos verídicos. O próprio Homem-Aranha se vale do editor do jornal para pedir informações sobre fatos envolvendo criminosos ou outros fatos do cotidiano da cidade, confiando em Robertson como aquele que sempre noticiará a verdade.

Em outra passagem, Robertson e J.J. Jameson debatem sobre a atuação do Homem Aranha e de outro personagem vigilante, o Justiceiro, diante de um sequestro, intencionando saber de Peter Parker o que suas fotos poderiam revelar sobre o envolvimento dos dois vigilantes de Nova York na solução do supracitado crime.

Novamente Robertson é o contraponto de um J.J ambivalente entre a verdade dos fatos e a intenção de responsabilizar o Homem-Aranha por tudo que pode dar errado no sequestro em questão. As intervenções editoriais de J.J referentes a fatos envolvendo os vigilantes mascarados passam notadamente pela tentativa de desvelar a verdade, mas também por suas conversas constantes com Robertson e claro, pelos sentimentos negativos em relação ao herói aracnídeo. 

Seria verossímil supormos que os argumentistas das histórias em quadrinhos do Homem-Aranha simplesmente escolhessem o mais cômodo acerca das intervenções de J.J em seu jornal, como se ele fosse um mero exemplo de alguém mal intencionado. Em alguns momentos e mesmo nas tramas iniciais de Stan Lee e Steve Ditko, essa era a visão usual representada nas narrativas, mas com o tempo, J.J começou a operar entre posturas cada vez mais ambivalentes e interessantes. 

Por um lado, ele se via costumeiramente preocupado com a veracidade dos fatos narrados, principalmente em suas muitas conversas com Joe Robertson. Por outro, ele se via na posição de dono de um jornal de grande tiragem, pensando nas vendas diárias, o que o levava a comprar fotos do Homem-Aranha para incrementar os lucros.

Por fim, J.J era representado com sua intenção puramente emocional de colocar fim à carreira do Homem-Aranha, ainda que sustentasse para si mesmo que se tratava de uma atitude correta e altruísta de bom jornalista que procurava desvelar a verdade dos fatos, visto que ele acreditava piamente ser o vigilante mascarado um mero criminoso bancando o herói.

No filme do Homem-Aranha de 2002, dirigido por Sam Raimi e estrelado por Tobey Maguire, J.J foi representado de forma extremamente cômica, quase que um arquétipo irônico dessa representação ambivalente do personagem dos quadrinhos. Mesmo assim, o mote do personagem na grande tela estava envolto pelo questionamento da verdadeira natureza do Homem-Aranha, tal como pode ser demonstrado na imagem logo abaixo, quando a figura do vigilante aracnídeo aparece acima do jargão clássico de Jameson: "Spider-Man: Hero or Menace"? 

Sem dúvida que as intervenções editoriais de J.J, no que concerne a fatos envolvendo o Homem-Aranha, não promovem a pura distorção dos fatos jornalísticos, mas talvez um questionamento honesto quanto à natureza do vigilantismo do personagem principal das narrativas. Isso diz algo sobre a atividade jornalística em si, pelo menos se cotejarmos as teorizações elencadas anteriormente acerca dessa atividade.

Mesmo assim, devemos evidenciar que estamos tratando aqui de representações alegóricas de argumentistas e desenhistas de HQs, e o que esses artistas achavam do universo jornalístico. Talvez as narrativas contivessem certos exageros artísticos propositais sobre condutas tipificadas e estereotipadas em um jornal. No caso das supracitadas narrativas, talvez tudo não passasse de uma intenção proposital de colocar Peter Parker/Homem-Aranha frente a um antagonista poderoso: as mídias e os periódicos impressos.

BONS QUADRINHOS QUE LEMOS EM 2015 - PARTE 3

Acompanhei, à distância, boa parte dos quadrinhos – publicados por grandes editoras ou independentes – lançados no Brasil ao longo de 2015, mas li bem menos do que gostaria. Conferi muita coisa nas bancas e livrarias, mas poucas voltaram comigo ($) para casa. As melhores surpresas vieram dos sebos, onde costumo encontrar grandes achados, e em 2015 não foi diferente. Mas gostaria de ter bem lido mais. Lido outras coisas. Terei que correr atrás de muito quadrinho bom. Coincidência ou não, na hora de preparar esta lista, percebi que ela é composta basicamente de relançamentos ou material antigo (comics, mangá e BD). Teci breves comentários sobre 10 deles, elencados abaixo sem nenhuma ordem hierárquica, abordando roteiro, arte e também questões editoriais (como papel, impressão, etc). (PB)

Parte 1

Parte 2

por Pedro Brandt

1 - COMICS STAR WARS - CLÁSSICOS VOL. 4 E 5 - Archie Goodwin (roteiro) e vários (arte) (Planeta DeAgostini, 2015): O universo de Guerra nas Estrelas em quadrinhos é vastíssimo e a coleção Comics Star Wars - Clássicos, publicada desde setembro de 2014, é uma ótima oportunidade para o leitor brasileiro interessado em conhecer esse material, grande parte dele inédito por aqui. Serão ao todo 70 edições. Tem muita bobagem no meio (histórias insossas, desenhos canhestros), mas também algumas pérolas. As edições 4 e 5, por exemplo, guardam um tesouro especial: a adaptação ilustrada por Al Williamson de O Império contra-ataca. Renomado desenhista e arte-finalista, Williamson (1931-2010) recria o episódio V da saga cinematográfica com base em stills do longa-metragem de 1980. O ritmo da HQ é diferente do filme, bem mais lento e pouco dinâmico, ainda que, dado o número de páginas, a leitura seja rápida. Tudo isso poderia pesar contra a HQ, mas, pelo contrário, é o ideal para consumir a sensacional arte desse desenhista americano. A interpretação de Williamson para o filme dirigido por Irvin Kershner é bastante fotográfica, fiel às cenas que o inspiraram, mas é recriada pela ótica e estilo gráfico do ilustrador, à época, já um veterano de renome, mestre em cenários exóticos e ambientações fantásticas em quadrinhos de aventura, inspiração não apenas para George Lucas, mas para incontáveis outros criadores. Cada edição da coleção, publicada pela editora Planeta DeAgostini, é vendida lacrada em embalagem de plástico transparente, tem capa dura, papel couché, ótima impressão e recriação de cores (sem pesar a mão no digital). Mas tem um problema: não informa na contracapa detalhes do conteúdo de cada edição, quem são os autores, ano de publicação original, enfim, algo além de uma breve sinopse das tramas. Cabe ao leitor se informar sobre cada uma ou arriscar e comprar no escuro.

2 - COLEÇÃO HISTÓRICA MARVEL – O HOMEM-ARANHA #7 - Stan Lee, John Romita e Jim Mooney (Marvel / Panini, 1969-1970 [2014]): No final dos anos 1960, o roteirista Stan Lee, o desenhista John Romita e o arte-finalista Jim Mooney, então equipe de produção do Homem-Aranha, viviam um momento inspirado. As histórias presentes em Coleção Histórica Marvel – O Homem-Aranha # 7 (contemplando as edições # 68-75 de The Amazing Spider-Man, lançadas originalmente entre 1969 e 1970) apresentam um punhado de ótimas histórias, com ação e drama na mesma medida, mostrando o personagem em sua essência: a dualidade entre o universitário correto e desajeitado, sem grana ou tempo para família, amigos e namorada, fazendo jornada dupla (não remunerada!) como mascarado combatente do crime de grandes poderes e responsabilidades, além de desacreditado e à beira de desistir, contracenando com uma galeria de clássicos coadjuvantes (Rei do Crime, Lagarto, Shocker, Gwen Stacy, entre outros). Até aí, tudo dentro do esperado. É sabido que este é um dos melhores momentos da trajetória do personagem nas HQs. O que realmente chamou minha atenção nessa leitura foi perceber – desta vez, conscientemente – como o time por trás dessas histórias alcançou esses resultados. Esses quadrinhos, e tantos outros da mesma época, são exemplares da modernização pela qual a Marvel passava naquele período, com novas abordagens para personagens, atualizando pautas e trazendo um pouco de mundo real para as tramas, aproximando o leitor dos heróis; e, tão importante quanto, novas maneiras visuais de contar histórias de aventura. Em parceria com alguns talentosos desenhistas, Lee forjou um jeito Marvel de fazer histórias em quadrinhos (o livro How to do comics the Marvel way não tem esse nome à toa): ação quase ininterrupta, poucos quadros por página, narrativa econômica e eficiente (mostrando apenas o que é necessário e sempre trabalhando por uma continuidade clara da narrativa), influência de montagem cinematográfica, cenas dinâmicas de ação compostas por quadros com infinitas opções de angulação e uma série de recursos gráficos para retratar sentimentos e ações dos personagens. De um quadro para o outro, de uma página para a seguinte, de uma edição para a próxima, as conexões são ágeis, magnéticas, deixando o leitor sempre sem fôlego, curioso pelos próximos capítulos. Esse material é clássico e, dada a distância do tempo, mantém o frescor da novidade. Uma leitura divertida e, acima de tudo, instrutiva. Uma verdadeira aula de quadrinhos de super-herói. Pena que a impressão e a colorização – problema não apenas aqui, mas em outros títulos da coleção – ficaram tão lavadas, tanto nas cores como em várias áreas de preto.

3 - OS 80 ANOS DO PATO DONALD - POR SEUS PRINCIPAIS ARTISTAS

 - Vários autores (Disney / Abril, 1944-2014 [2014]): Os fãs de quadrinhos Disney não têm do que reclamar. Além dos títulos publicados mensalmente, as bancas estão sempre recebendo coletâneas especiais de seus principais personagens, como Donald, Mickey e Tio Patinhas. Mais do que as histórias propriamente ditas – algumas divertidíssimas, engraçadas, mas boa parte bastante infanto-juvenil, ingênuas e até mesmo bem bobinhas – foi o caráter histórico e panorâmico de Os 80 anos do Pato Donald– Por seus principais artistas que me atraiu para esta coletânea. É interessante notar como os desenhistas representados aqui (americanos, europeus e brasileiros. Nomes consagrados como Carl Barks, Don Rosa, Giovan Battista Carpi e Giorgio Cavazzano), cada um à sua maneira, consegue driblar as limitações do model sheet e imprimir sua marca distinta nas tramas e nos traços das histórias. Um índice detalha o país de produção, ano de cada HQ e se ela é inédita ou uma republicação no Brasil. Biografias apresentam os autores e suas principais contribuições para o universo de Donald nas histórias em quadrinhos. O acabamento da edição é impecável: capa dura, 480 páginas e papel couché (que é ótimo no geral, mas algo menos brilhoso valorizaria mais a arte). Infelizmente, as cores da maioria das histórias foram recriadas em computador, sem preocupação de quando elas foram publicadas originalmente. Fica feio, vulgar. Não faz nenhum sentido uma coloração assumidamente digital (que em nenhum momento tenta negar sua condição como tal) numa HQ da década de 1940!

4 - A DRIFTING LIFE – Yoshihiro Tatsumi (Drawn and Quarterly, 2009): Impossível assistir ao filme de animação Tatsumie não se interessar em conhecer os quadrinhos deste autor japonês. Diretor do longa-metragem, Eric Khoo apresenta adaptações de histórias curtas criadas por Yoshihiro Tatsumi (1935-2015) entremeados a várias passagens da vida do artista descritas na obra autobiográfica A drifting life. Apesar de seu tamanho monumental, com mais de 800 páginas, a leitura flui rapidamente e, em pouco tempo, o leitor pode ver-se engolido pela obra. Tatsumi nos fisga com relatos de drama e superação com uma narrativa detalhada (esbarrando por vezes na redundância) de sua trajetória pessoal (infância pobre, brigas familiares, relacionamentos) e profissional (os desafios para se manter como autor de mangás). Em paralelo, reconta a história das histórias em quadrinhos no Japão. Tudo com uma sensibilidade e leveza típicas dos autores japoneses (vêm à mente cineastas como Mikio Naruse e Yasujiro Ozu), apresentado com uma arte simples e eficiente em narrativa, construção de cenas e uso de recursos gráficos. A edição da editora Drawn & Quartely para a obra é simplesmente impecável (papel, impressão, acabamento, tudo)!

5 - THE ROMITA LEGACY - Tom Spurgeon (Dynamic Forces, 2010): Pai e filho, os desenhistas John Romita e John Romita Jr. fazem parte da história principal não apenas da Marvel Comics, mas da história das histórias em quadrinhos americanas. Tom Spurgeon apresenta longas entrevistas com ambos e reconta suas trajetórias, com enfoque na vida profissional. Pai e filho artistas comentam suas principais influências, o desenvolvimento de seus estilos de desenho, diversos bastidores da indústria dos quadrinhos, além, é claro, do relacionamento entre eles. Tudo acompanhado de dezenas de reproduções de páginas, capas, pinups e rascunhos. Um índice no fim do livro compila toda a produção quadrinistica de Romita Sr. e Jr. até 2010 (quando foi publicada a primeira edição). Como todo livro desse tipo, é recomendado especialmente para fãs.

6 - CREEPY – CONTOS CLÁSSICOS DE TERROR VOL. 2 – Vários autores (Dark Horse /  Devir, 1964-65 [2013]): Quando você pega uma coletânea da Creepy para ler está imediatamente fazendo um acordo entre as partes: a Creepy finge que te assusta e você finge que sente medo. Nada é minimamente assustador. As histórias são curtas demais e, geralmente, não conseguem alcançar um clima de suspense para então surpreender o leitor com uma reviravolta criativa ao final de cada trama. Tudo é muito ingênuo – bruxas, vampiros, múmias e mortos-vivos com uma abordagem datada. Quem não conta com o poder da nostalgia talvez se decepcione. Como leitura histórica e coletânea de grandes autores, aí é outro papo. O time da Creepy contava com os talentos de Frank Frazetta, Al Williamson, Alex Toth, Wallace Wood, entre outros grandes nomes, alguns veteranos e outros novatos à época (caso de Bernie Wrightson). Todos eles têm trabalhos melhores antes e depois de Creepy (aqui, parecem um tanto domesticados), mas não são chamados de mestre à toa. E é sempre bem-vinda uma publicação reunindo tanta gente boa. Destaque para as histórias com o personagem Adam Link, com desenhos de Joe Orlando e texto de Eando Pearson, protagonizadas por um robô com sentimentos humanos vivendo em uma sociedade hostil; e para o conto sobre a cobiça "Item de colecionador", de Archie Goodwin e Steve Ditko. A Devir está de parabéns com a edição, mas peca em um aspecto: por se tratar de quadrinhos tão fortemente associados a uma época, não dá para não se queixar das fontes de letras (computador, seu vilão!) utilizadas em algumas histórias, que tiram a cara vintage do material e soam como um corpo estranho ali.

7 - MIRACLEMAN – Alan Moore e vários (Marvel / Panini, 1982 [2014/15]): Muito já foi falado sobre Miracleman e sobre Alan Moore. Pulemos essa parte. Se você ainda tem dúvida sobre ler ou não Miracleman eu te digo: vá na fé, irmão. Mas eu entendo quem ainda não se deixou pegar pela série. Ao folheá-la, percebe-se que a arte não é o forte da HQ. Alan Davis, Gary Leach e os outros desenhistas que passaram pela série eram todos novatos na época, com estilo pouco definido e sem polimento. O que não empaca o ótimo roteiro de Moore, repleto de reviravoltas e surpresas, e a fluidez dos episódios, garantindo o bom entretenimento e a curiosidade para voltar à banca no mês seguinte. Os ingredientes viagens no tempo, conspirações governamentais, alienígenas e super-heróis (inseridos num contexto mais realista) são velhos conhecidos, mas Moore cozinha-os com seus temperos mágicos e leva-os para um nível superior. Logo na edição # 2 tem um acontecimento envolvendo Mike Moran (o Miracleman) e seu antigo pupilo Johnny (sem spolier) que me ganhou na hora. Mas (que chato, sempre tem um “mas”!), vendida por quase R$ 8, as edições deixam um tanto a desejar. Lá pela edição # 5 eu percebi estar sendo “meio” enganado. A impressão é que paga-se muito para ter apenas meia revista de Alan Moore (ou, o “roteirista original”, como ele está creditado) e o resto com histórias clássicas sem nenhum sabor, rascunhos (quem quer rascunho de desenhista meia boca?!) e pinups que nada acrescentam. Que venha logo um encadernado com apenas o filé!

8 - A SAGA DO MONSTRO DO PÂNTANO - LIVRO 4 - Alan Moore, Stephen Bissette, John Totleben, Stan Woch (DC Comics / Panini, 1985-6 [2015]): Tal qual em Spirit ou em Sandman, muitas das melhores histórias em O Monstro do Pântano têm o protagonista apenas como coadjuvante (ou nem isso), dando espaço para personagens secundários brilharem. O livro 4 de A saga do Monstro do Pântano, que engloba o ciclo Gótico americano, tem muito disso. Enquanto acompanhamos o protagonista em um percurso pelos Estados Unidos em busca de autoconhecimento, somos apresentados ao hippie Chester e suas experiências alucinógenas, ao grupo de jovens de Dança dos fantasmas e, principalmente, ao irritantemente carismático John Constantine. Ao contrário das tolas histórias de Creepy, aqui temos feitiços, casas mal-assombradas, manifestações sobrenaturais, psicopatia e demência usadas para máximo efeito. A arte de Stephen Bissette, John Totleben e Stan Woch são todas de uma personalidade visual esquisita, feia até. Mas essa feiura, esse exotismo gráfico, em determinado momento da leitura se tornam algo tão natural e próprio de cada história que funcionam como o complemento ideal para os roteiros de Alan Moore.

9 - SETON – UM NATURALISTA VIAJANTE – VOL. 1: LOBO, O REI DE CURRUMPAW – Jiro Tanigushi e Yoshiharu Imaizumi (Futabasha Publishers / Panini, 2004 [2008]): A simples menção de Jiro Tanigushi na capa de um quadrinho deveria ser o suficiente para atrair a atenção do leitor. Uma pena que pouquíssimo material do autor japonês tenha saído no Brasil.

Seton é um deles. Aqui, Tanigushi atua “apenas” como ilustrador e os roteiros são de autoria de Yoshiharu Imaizumi. Seton é inspirado na vida de Ernest Thompson Seton (1860-1946), pioneiro do escotismo e homem com forte admiração pela vida selvagem. Cabe a ele tentar capturar “O lobo”, líder da matilha que aterroriza os rebanhos da região de Currumpaw (EUA). Diferente da maioria dos quadrinhos de caubói, focados no embate de justiceiros e criminosos, Seton se foca na relação do homem com a natureza de maneira sensível e respeitosa. A narrativa tem fôlego tanto para as sequências de ação (que, pela dinâmica dos quadros, tem o pique dos animes), quanto para o drama. Fãs de Caninos Brancos(Jack London) e Princesa Mononoke (Hayao Miyazaki) têm de conhecer a obra. A despeito de suas qualidades, o mangá vendeu pouco e apenas o número 1 (de quatro) foi publicado pela Panini no Brasil.

10 - OS PASSAGEIROS DO VENTO #2 – O PONTÃO – François Bourgeon (Glénant / Meribérica / Liber, 1980): Pobres piratas! A pirataria, antes um gênero de aventura que rendeu incríveis livros, filmes e histórias em quadrinhos nos últimos tempos foi resumida a Jack Sparrow! Sendo assim, voltemos aos clássicos. Autor de Os passageiros do vento, o roteirista e desenhista francês François Bourgeon é do tipo que transporta o leitor para dentro de suas histórias. Faz isso com engenhosos roteiros, minuciosas pesquisas de época e dando a seus personagens uma vivacidade autêntica. Além disso, seu traço inconfundível (seus homens e mulheres têm feições bastante particulares) e a reconstrução fidedigna de barcos, armas, castelos, roupas e objetos de época acrescentam ainda mais à experiência intensa de leitura da obra. O mote de O pontão é o resgate engendrado por Isa e sua amiga Mary para resgatar Hoel de um navio (o tal “Pontão”) utilizado como prisão. Além da aventura, o relacionamento entre os personagens, todos donos de personalidades marcantes, dão bom ritmo à narrativa e impulsionam a história para o próximo episódio, de modo a deixar o leitor sedento por mais.