A morte, sempre
/por Ciro I. Marcondes
Elijah faz parte da polícia filosófica e não pode morrer. Não que ele seja um imortal invulnerável, ou que não possa envelhecer. Elijah simplesmente vive em um mundo onde os seres humanos podem construir clones de si mesmos (“ecos”) que guardam em si todas as memórias precedentes, como a cópia de um arquivo de computador. Se um eco morre, os outros, como backups, carregarão as memórias e cópia idêntica do corpo físico daquele que faleceu, trazendo extensão e continuidade eternas às pessoas, que podem morrer apenas se decidirem matar todos os seus ecos.
É dentro desta lógica de imortalidade calculada em base de dados que se passa a incrível história de Os últimos dias de um imortal (Les derniers jours d’un immortel, Futuropolis, 2010), produzida por dois talentos da BD francesa atual: o desenhista Gwen de Bonneval e o roteirista Fabien Vehlmann, que realizam trabalhos juntos desde os anos 90, quando se conheceram na cidade de Nantes. Este trabalho, talvez o mais ambicioso da dupla, esteve na seleção oficial de Angoulême em 2011, e é uma das obras mais criativas que vi em ficção científica recentemente. Singela, clean, introspectiva, cheia de pequenos apontamentos para as causas humanas, Os últimos dias de um imortal é uma graphic novel para ser lida e relida em suas várias possibilidades e penetrabilidades, como se cada enfoque (filosófico, antropológico, jurídico) dos temas abordados pela HQ fosse uma lente diferente que demandasse atenção exclusiva do leitor.
Elijah vive num mundo utópico e obedece a uma espécie de federação galáctica que controla as diversas espécies de alienígenas que precisam conviver a partir de suas brutais diferenças: fisiológicas, culturais, orgânicas, existenciais. Em um mundo ordenado e funcional que é operado por tecnologias que lembram magia, e em que os seres humanos podem desfrutar de uma imensa variedade de comportamentos culturais (como por exemplo se metamorfosearem em outros corpos para prática de sexo esportivo!), a função da polícia não deve deixar de ser filosófica. Para resolver crimes ancestrais, querelas arcaicas e impasses de profunda dimensão, um policial como Elijah deve ser um homem sereno, dotado de habilidades diplomáticas e conhecimentos de filosofia e antropologia. Em Os últimos dias de um imortal, o crime é um conceito que tange o pensamento filosófico, e não jurídico. De alguma forma, associando a motivação da criminalidade à proposição ética, e não estatística, esta HQ se aproxima de uma obra como Crime e castigo. Numa sociedade utopial, é legítimo voltar às ambições e motivações mais arraigadas para que o crime seja entendido como dedobramento de seus primeiros princípios, e sirva como complemento desta mesma sociedade.
Os últimos dias de um imortal vai desenvolvendo estes temas de maneira morosa, no traço limpo e quase juvenil, num preto-e-branco azulado, de Bonneval. A narrativa privilegia espaços abertos, modernistas, grandes quadros silenciosos, e diálogos lacônicos, ensimesmados. Em sua visão futurista soft, vamos passeando por obras de arte voadoras, espécies com um só espécime, seres que se comunicam pelo paladar, além de uma gama incrível de criaturas exóticas, como se Star Wars resolvesse dar verdadeira dimensão cultural ao seu variado número de monstros. Este aspecto, antropológico (ou antropobiológico, já que estamos falando de culturas não-humanas), soma-se ao debate diplomático e a uma ontologia da morte para cultivar verdadeiro leque de profundidades interessantes que os desdobramentos da trama são capazes de provocar.
Vale explicar: o cenário desta HQ, com seu estoicismo estético, já seria por si só uma forma provocativa e ampla de se registrar a arte dos quadrinhos, mas o roteiro de Vehlmann acaba se concentrando em aspectos ainda mais envolventes. Em primeiro lugar, Elijah vê seu melhor amigo, com que cultiva uma relação de profunda simbiose, subitamente optar pela morte, eliminando seus ecos e lentamente sumindo da memória daqueles que o conheciam. Aqui, uma instigação bastante original sobre a memória se instaura: Elijah sofre não apenas por perder o amigo, num mundo onde a mortalidade se torna cada vez mais rara, mas também por perder a memória sobre esse amigo, revelando a contradição principal dos afetos humanos: sofremos com a memória porque optamos por mantê-la, e a mantemos porque precisamos dela como alicerce de nossa própria mortalidade. Em um mundo de imortais, memórias são inúteis, porque desgastantes, e Elijah sofre com os desdobramentos desta contradição.
Sci-fi em aporia
A morte, aqui, portanto, seja a morte física ou a morte da memória, acaba encontrando-se em profundo estado de aporia, ou seja, um estado do impossível ou do impraticável (segundo Aristóteles), a divisa de onde não se pode ver a fronteira, o locus em que se instala a não-passagem, o espaço do não-ser. A aporia, portanto, é onde repousa o problema, o eterno intermediário sobre o qual não há solução, sobre o qual se reproduzem as intermitências da vida, um espaço a ser invadido, mas nunca compreendido, nunca contornado, nunca solucionado. Em conferência proferida em 1992, Jacques Derrida, em um belo texto, coloca a morte como a principal aporia, aquilo sobre o qual não podemos jamais falar. “Minha morte, ela é possível ?”, interroga-se o filósofo, como se, como evento fenomênico, fosse impossível falar-se da própria morte como se fala da morte do outro, já que a morte do outro pode ser observada, mas a de si próprio, não.
Neste caso, vale lembrar a belíssima passagem de Os últimos dias de um imortal em que Elijah recupera as memórias de um eco seu que morre devorado pelos temíveis seres Aleph: memórias traumáticas, de terrível dor e sofrimento, que levarão o protagonista a ressignificar a morte e a tomar drásticas decisões na continuidade da história. Todo este debate a respeito do desaparecimento da mortalidade leva à ideia de que este também seria o desaparecimento da aporia principal de todo o pensamento, desfazendo a aporia da morte mas criando outra, a aporia da imortalidade. Desta maneira, é neste jogo improvável entre morte e imortalidade que repousa o principal delineamento filosófico de Os últimos dias de um imortal. O que não é, afinal, a morte?
Esta questão encontra ressonância também no pensamento tardio de Jean Baudrillard (“A ilusão vital”), para quem nossa obsessão com o prolongamento da vida retoma um desejo de nossos ancestrais unicelulares, cuja carga genética era inteiramente reproduzida na divisão binária, tornando eles virtualmente imortais, exatamente da mesma forma que os “ecos” da HQ. Esta busca por uma imortalidade binária e estéril (Baudrillard chama o surgimento da divisão sexuada de “maior revolução da história”) parece ser justamente um dos últimos questionamentos da HQ. O impasse final de toda esta problemática parece ser, justamente, a resposta (impossível) da questão: desejamos/precisamos da morte?
Todo este debate, somado à crise antropológica/diplomática entre os seres Ganédons e Aleph (chegando a resvalar no terrorismo) que recai sobre a figura de Elijah, faz de Os últimos dias de um imortal uma ficção-científica toda especial, toda artisticamente entalhada, e humanisticamente perpassada. Diferentemente da BD clássica (Godard, Ribera, Forest, Druillet), que privilegia a space-opera e aventuras de fantasia, aqui temas uma renovação radical, adequada aos tempos atuais e necessária dos quadrinhos de ficção científica, voltada para um dos princípios do gênero, ainda tão translúcido: a ficção-científica deve colocar a humanidade em situações éticas impossíveis no mundo atual, mas verossímeis em um futuro presumido, e capazes de trazer respostas para perguntas de nossa época.
Não seria isso o mesmo que colocar em aporia?