O eterno gato por lebre


 por Lima Neto

Olá Leitores! Começo este post afirmando que tentei não escrevê-lo por muito tempo.


Desde que o escritor Grant Morrison colocou seu ponto de vista em relação às patentes inclinações gays do conceito de Batman, na revista Playboy, passando pelo apoio “pessoal” do presidente Obama ao casamento igualitário e chegando, finalmente, ao casamento de Estrela Polar e a recentíssima reencarnação do Lanterna Verde original Alan Scott como um herói homossexual – não acreditei que este assunto deveria ser uma pauta, ou melhor, não queria engrossar a super-exposição que um assunto como esse acaba recebendo, mesmo sendo um defensor da causa LGBTS e entusiasta da inclusão social nos quadrinhos Marvel e DC. 



Joel Schumacher: já sabia
No entanto, o odor de algo podre que emana desses atuais eventos aliado à reação geral do público, tanto na rede mundial quanto ao vivo na minha loja, somado à cobertura “Praça é Nossa” que a imprensa brasileira costuma dispensar para ambos os temas – quadrinhos e homoafetividade – me convenceram a escrever algumas linhas e colocar no papel virtual algo dos meus pensamentos a respeito, e minha profunda irritação.



Para começo de conversa, nenhum destes eventos está relacionado com a melhora do dia-a-dia da população Lesbica Gay Bissexual Transexual Simpatizante do mundo.  Nenhum. No máximo eles podem ser encarados pela esfera das homoafetividades apenas como uma melhoria na representatividade. Mas o que está sendo cobrado neste escambo é algo bem mais valioso.  O fato é que as exigências desta fatia da sociedade são um prato cheio para oportunistas e moeda de troca para políticos tentando se reeleger.  E política é a palavra que amarra todos estes eventos. 



Meet your maker!
Não precisa ser um fã de quadrinhos DC e Marvel para saber que estas duas empresas, que já tiveram brilhantes momentos de criatividade no passado, hoje são apenas produtoras rigorosamente controladas de matéria prima para a indústria de cinema, constantemente ordenhadas pelas mega-empresas de mídia às quais elas pertencem: Warner e Disney. Vale lembrar que até pouco tempo, antes dos filmes de super-heróis venderem bilhões em bilheteria, tanto Marvel quanto DC não despertavam o interesse dessas corporações e gozavam de uma liberdade, restrita, mas enorme comparada com os padrões de hoje. 



Quem sofreu bastante com isso foi a casa de Super-homem, que teve que rebootar todo seu universo para  que seus personagens se adaptassem ao mercado mais “amplo” do cinema.  A Marvel, por outro lado, era uma empresa também relativamente autônoma até ter sido comprada pela Disney.  Resumindo, elas sempre foram uma indústria que segue a lógica do mercado, e agora são mega-indústrias. Some a esse panorama empresarial o apoio oportunista de Obama e o que temos é um surto de casamentos e saídas do armário que ocorrem de modo artificial sacrificando a boa leitura em favor de um golpe de marketing. Quando os holofotes estiverem virados para o outro lado, Estrela Polar voltará ao limbo onde estava escondido e Alan Scott provavelmente terá uma morte heroica.  

Obama: defensor de frascos e comprimidos?



Isso... até "morrerem de AIDS"?
Explicando. Estrela Polar foi o primeiro super-herói homossexual assumido da história, e sofreu bastante por isso sendo transformado até em fada após correr o risco de morrer de AIDS (afinal não é assim que todo gay morre?). Até há pouco tempo ele era um membro dos X-men, grupo de heróis que são uma metáfora para todos os outsiders da sociedade, e nunca se ouviu falar de um namoro sério ou de algum Kyle. Enquanto isso, na DC, o golpe de marketing e ação pasteurizante chamado New 52 abriu um leque de oportunidades a serem exploradas, faltando apenas um bom motivo.  Aí entra Obama e seu motivo e de uma hora para outra o obscuro Estrela Polar se casa e um herói de uma outra realidade é vendido como um “herói seminal da DC”. E é importante diferenciar, Alan Scott, o Lanterna Verde original “não saiu do armário” pois sua versão novo 52 que estreou nos EUA sempre foi assumidamente gay.  Se o escritor James Robinson – que no passado brilhou comandando as aventuras de Starman -  havia planejado re-introduzir Alan Scott como homossexual ou se essa foi uma decisão tomada apenas após o discurso de Obama, não importa. No fringir dos ovos tudo não passa de uma jogada e mais uma exploração do desejo humano de milhões de leitores de serem levados a sério como cidadãos.



Esclarecendo. Não tenho nada contra o casamento de Estrela Polar ou um Lanterna Verde gay, mas a maneira com que foram executadas essas histórias expõe as fundações mercantilistas mercenárias que tentam vender um eterno gato por lebre para aqueles que as sustentam desde suas fundações. Tanto Marvel quanto DC já tiveram momentos de extremo respeito ao seu público LGBTS em quadrinhos como o ótimo Jovens Vingadores e o casal Wiccano e Hulkling e, na DC, com personagens como Renné Montoya – a Questão -  e Kate Kane – a Batwoman . Personagens e histórias pautadas em um bom enredo e uma boa construção que vieram à tona através do desejo de seus criadores de criá-los e não pela obrigação oportunista de atrair clientes para a feira.  



É urgente, sim, que a representatividade social seja uma prioridade para qualquer meio de comunicação de massa. A indústria cultural é um fenômeno responsável por uma significativa parcela não apenas da educação do indivíduo quanto da própria maneira deste ver o mundo.  Representar, nos quadrinhos, nas novelas, nos jornais, uma realidade pautada na diversidade social é uma autêntica ação afirmativa que em muito ajuda, não apenas no alívio de tensões entre parcelas da sociedade, mas também na formação de indivíduos psicologicamente saudáveis e integrados a uma comunidade diversificada. Por outro lado, quando esta mesma ação é feita por motivos ulteriores comprometidos apenas com o mercado, o resultado é a invalidação das possibilidades integradoras, efetivamente aumentando o abismo entre estas parcelas sociais, ambas ressentidas por fazer parte de mais uma falácia de um capitalismo cada dia mais descarado.



Porém, deixando para trás toda essa confusão que é sintomática de um quadrinho industrial que tenta agradar crianças e adultos, mas que resulta apenas na exposição de material inapropriado para os primeiros (e friso aqui o forte conteúdo sexual constrangedor e a violência gráfica exagerada que a nova DC vem imprimindo em seus quadrinhos) e na infantilização dos segundos, nos EUA existem opções de bons quadrinhos gays que são produzidos por artistas do meio, porém com um considerável apelo ao público heterossexual: Criado por Ed Luce, o quadrinho Wuvable Oaf é uma mistura eclética de quadrinhos mainstream e underground. O personagem principal é uma espécie de urso, que no meio gay é como se chamam seus representantes grandes e peludos, que tem super força e outras características esquisitas (como fazer crescer os pelos do corpo em segundos e exalar um cheiro que atrai todos os gatos nas proximidades) e que se envolve em uma bizarra trama ao se apaixonar pelo líder de uma banda de “grind-disco” local. Muitas referências musicais, de Smiths a uma infinidade de bandas de Death Metal e participações especiais de personagens Marvel e DC disfarçados são um prato cheio para os fãs de quadrinhos, independente da orientação sexual. Outra boa pedida é Spandex, uma HQ inglesa de super-heróis sobre um grupo formado apenas por membros LGBTS e liderados por Liberty, uma travesti com uma roupa feminina que lhe dá super poderes.  



Para terminar este artigo, reitero: viva a diversidade! Queremos mais super-heróis gays sim! E mais super-heróis negros e asiáticos e índios; e super-heroínas que não são apenas gostosas de pouca roupa para a satisfação onanista de alguns. Mas que estas mudanças aconteçam porque seus criadores percebem que existe uma urgência para isso e não para transformar necessidades genuínas de minorias em mais uma mercadoria sem alma para ser vendida a qualquer custo. E se você sabe escrever, ou desenhar, faça você mesmo o quadrinho que você gostaria de ler. Este, sim, é o melhor meio de aumentar a diversidade nas HQ´s e evitar que mega-corporações se apropriem de suas carências para transforma-las em golpes de marketing.

Spandex