OBRIGADO LAERTE!

RAIO LASER escreve dois relatos e faz um singelo vídeo a partir do encontro com um dos grandes da HQ mundial.

fotos e vídeo por Artur Brandt


1: A lucidez de Laerte

por Ciro I. Marcondes

Através de bela iniciativa do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Laerte esteve na UnB na última quarta-feira, para a II Jornada de Romances Gráficos. Pedro conduziu uma reportagem levando o grande mestre à nova geração de quadrinistas brasilienses, e fiquei bicando a entrevista, ali entre as apresentações do simpósio e a oportunidade de ter contato com um artista de referência para mim e todos ali presentes. Laerte (60 anos) deve ter passado por um dia um pouco pesado. Bateria de entrevistas (Correio, UnB TV, Raio Laser) e por fim uma fala de quase duas horas para um auditório lotado. Talvez isso tenha contribuído para que ele tenha se expressado de um jeito tão comovente, que misturava trajetória pessoal com intensa inflexão sobre si mesmo e sobre o mundo. Mas suspeito que não foi o stress que o fez desaguar conversa tão boa e cativante, mas sim sua inquietação.



Na palestra, Laerte recuperou sua história como artista e ser humano, falou sobre como o tropicalismo nos anos 60, o ideologismo marxista e a inconformidade com a ditadura o despertaram de um sono dogmático, da grande arte e cultura erudita, do qual ele não conseguia se desprender. Sua trajetória como cartunista foi repensada como um certo acomodamento, e ele partiu para questionar o modelo do que estava fazendo, incluindo seu próprio humor, e elaborar um tipo bem mais pessoal e indagatório de HQ a partir de 2005. Laerte, procurando revisitar seu momento de crise e reestruturação, citou famosa entrevista de Chico Buarque, em que o sambista põe em cheque a validade do formato da canção – historicizando seu próprio labor artístico a partir da passagem do tempo, do envelhecimento e das instigações que permanecem na mente, mesmo após reconhecimento, prêmios, canonização. Laerte refletiu sobre como o próprio modelo da tira cômica de jornal não tinha mais estrutura e escopo semântico para poder dizer coisas efetivas à massa da juventude metropolitana do século 21, parecendo perceber momentos em que os canais de comunicabilidade entre gerações, gêneros, classes sociais se fecham; ou se abrem a partir de revalorações espontâneas, imprevisíveis, surpreendentes.

Para minha alegria, pude trocar algumas ideias com Laerte, e ele me pareceu uma pessoa tímida, cuidadosa, constantemente reverberando um processar interno difuso, autoquestionador. Estava caprichosamente enfeitado e maquiado, parecendo curtir a satisfação de trabalhar delicadamente a própria autoimagem, pouco se importando para as mil vezes que ouve “gênio!”, “brilhante!”, “mestre!”, diariamente (além das perguntas sobre cross-dressing). Como os maiores dentre os maiores artistas, ele parece ser rigorosamente autocrítico, e este é apenas um dos desdobramentos de sua lucidez. Mencionar Beethoven e Norman Rockewll é outro sintoma de que seus referenciais não são necessariamente os mesmos dos seus leitores, e isso justifica o movimento de botar na berlinda a própria arte, refutar a zona de conforto da canonização e o de aposentar os personagens clássicos. Sem arrogância, apenas num processo de clareza sobre o dinamismo turvo pelo qual passa a consciência do artista sobre sua própria arte, ele separa cuidadosamente a constante bajulação carinhosa que recebe dos fãs. Lembra (parafraseando) o cineasta Yasujiro Ozu, um dos grandes: “Tudo que eu sei fazer nos filmes é como fazer tofu. Faço sempre igual, sem ambição de fazer mais que tofu”.


Laerte parecia surpreendido com o fato de reconhecer, nessa altura da vida, a suposta falência do modelo de arte com o qual ele vinha trabalhando (a repetição constante de quem trabalha com a tira cômica), e que o passar do tempo leva a novas configurações culturais, que renascem do esgotamento de outras. Daí suas tiras contemporâneas, carregadas de contemplatividade e sketches absurdos e às vezes abstratos, mas líricos, com pitadas de reflexão pontuada sobre as condições flutuantes da cultura de hoje. Para os acadêmicos que estavam por ali, essa visão do pós-moderno é sempre pensada, mas lida de uma maneira fria, um tanto laboratorial e distante. O discurso de Laerte ontem, digressivo e carregado de autoanálise, me pareceu bem mais lúcido e integrado a tudo isso, em sua maneira errante e natural, do que a própria fala científica. Obrigado Laerte, por ensinar aos professores coisas já havíamos talvez racionalizado, mas nunca sentido desta forma.

Alegria! Alegria!

2: Laerte e outras barbaridades

por Pedro Brandt

Mesmo eu adorando as tirinhas e histórias curtas do Laerte, eu estava doido para ouvi-lo dizer que está em plena produção de uma história longa, com duzentas e tantas páginas —  a exemplo de Cachalote, a parceria de seu filho Rafael com o escritor Daniel Galera. Mas, ao contrário, ele disse que anda sem saco para desenhar e que, se possível, preferia escrever textos para outras pessoas ilustrarem.

Debaixo do braço, eu trazia um exemplar de Piratas do Tietê e outras barbaridades (essa que o Ciro segura na foto), para mim, a melhor coletânea já feita com o trabalho dele (ainda que só reuna trabalhos mais antigos, a maioria — ou todos? — dos anos 1980), justificativa ideal para esse meu desejo de algum dia ver mais histórias longas do cartunista.

Sempre achei os desenhos do Laerte um deleite para os olhos, tanto pelo detalhismo dos cenários, figurinos, objetos em cena e expressão dos personagens, quanto pela narrativa bastante vívida, que muitas vezes nos dão a impressão de estar vendo um desenho animado. O humor de suas histórias faz rir e pensar. "A terceira margem" (“Vocês sabem qual é o segredo do morcego?”), "Lingerie", "A insustentável leveza do ser", "A noite dos palhaços mudos", "Fadas e bruxas"… todas elas estão no livro citado no parágrafo anterior e são apenas alguns exemplos do que de melhor Laerte fez em sua produção vastíssima.

Além de ser um artista incrível, Larte também é uma pessoa incrível. Acho que é possível perceber isso pelas entrevistas. Eu já tinha conversado com ele por telefone em algumas ocasiões, mas encontrá-lo pessoalmente era um sonho antigo. E na quarta passada, na UnB, só confirmei minhas impressões. Laerte é atencioso, paciente e divertido. Ainda assim, acho que não fiz a entrevista que queria com ele. Precisaria de uma tarde inteira — não, um dia inteiro pelo menos — para conversar assuntos dos mais diversos. 


Digo sem medo de parecer exagerado (e aproveito já para me desculpar, pois sei que ele é bastante modesto): Laerte é um dos maiores artistas dos quadrinhos em atividade. No Brasil ou em qualquer lugar. Só posso agradecer por ele ser também generoso o suficiente para compartilhar conosco suas ideias, inquietações e impressões do mundo.

Mimetizando o vídeo que postamos de Hergé desenhando Tintin, Artur Brandt também fez sua homanagem a Laerte:



 

Cachalote: nossa própria Moby Dick


Por Ciro Inácio Marcondes

Sempre gostei da imagem da baleia cachalote. Ela nada em todos os oceanos e é a única baleia que chega a águas profundas, justificando seus lendários (mesmo que nunca propriamente documentados) combates com lulas gigantes abissais. A cachalote, com sua cabeça enorme e respeitável, é uma baleia dentada, e assombra nosso imaginário por ser também carnívora, ainda quem nem de longe se aproxime da agressividade das orcas, por exemplo. Mas é claro que a cachalote traz consigo um maior status cultural porque a mais famosa de todas as baleias – Moby Dick – é uma cachalote, e isso diz muito sobre esta impressionante e monumental graphic novel de Daniel Galera e Rafael Coutinho lançada em 2010. Em Moby Dick, uma inegável obra-prima da literatura americana e universal, o obcecado capitão Ahab passa, junto a um marujo chamado Ishmael, a vida tentando caçar a monstruosa baleia que lhe devorou a perna, sem receio de atravessar as raias da loucura para conseguir seu objetivo.


Cachalote pode ser considerado, de cara, um divisor de águas nas graphic novels nacionais, não porque nossa tradição em HQ não seja rica, mas sim porque nossa atenção com a arte dos quadrinhos sempre se voltou mais para as tiras ou histórias curtas. O trabalho de estreia nas HQs do escritor gaúcho Daniel Galera e de Rafael Coutinho (um desenhista fora do comum) organiza-se claramente, porém, como um projeto de grande estatura, com intenção de desvirginar este pequeno tabu nacional, e entregar ao público uma experiência megalítica e profunda. Vale, neste caso, a experiência literária e o diálogo com o cinema do escritor/roteirista, que acaba mencionando as outras formas de arte escrita/visual em Cachalote sem que esta seja uma pura viagem do melhor que a narrativa em quadrinhos pode oferecer.

A metáfora da baleia é conhecida e parodiada em todo canto, de X-Men a desenhos de qualidade duvidosa, mas raramente alcança sua densidade integral sem o acompanhamento da narrativa impressionista de Herman Melville. Moby Dick é uma travessia sombria pelas contingências da obsessão de um homem vista (e isso é essencial) pelos olhos de outro homem. De certa forma, Moby Dick nos fala sobre o ato de nos pegarmos acompanhando as buscas centrais das outras pessoas, tragados pelo universo alheio, caçando os cachalotes dos outros. Lembro-me de que meu irmão, num templo budista, descreveu a tentativa de se alcançar a meditação com a eficaz imagem daquele que tenta domar um elefante. Daí para pensarmos que a vida de cada um é uma busca por domar seu próprio paquiderme dos mares (o cachalote) e que, como Ishmael, pegamos carona nos paquidermes dos outros, é um passo simples e uma alegoria tão exata quanto angustiante.

É aqui que Galera e Coutinho nos aparecem como Ishmaels de acordo com suas próprias aptidões, usando a arte da HQ para contar cinco histórias paralelas – de angústias, incertezas e decisões a serem tomadas – que se cruzam apenas num tom factual: o cachalote pessoal que cada personagem precisa domar. Esse leitmotiv não é apenas a força propulsora desta HQ em si, mas também transmite a ideia de que nos valemos deste ato de domar, e que, como o playboy tentando empurrar a baleia no fim da história, jamais conseguimos nos livrar deste monstro interno: ele é constante, parte de nós, e nos resolvemos quando fechamos algum tipo de acordo com ele.

Vale, portanto, relacionar as histórias e a maneira com que este painel ao mesmo tempo narrativo e alegórico é construído em Cachalote. Daniel Galera enfilera cinco padrões de angústia: a de um ator chinês internacional entediado com a falta de sentido de sua vida e o suicídio de seu melhor amigo; a de um humilde atendente que ao mesmo tempo é um mestre da bondage erótica e se sente um objeto de sua principal amante; a de um escultor em crise com seu casamento e que resolve entrar num projeto tosco de cinema independente; a de um escritor depressivo que mantém amizade com sua ex-mulher, mas que não consegue superar o fim do relacionamento; e por fim a angústia de um jovem playboy arrogante e detestável, abandonado por todos, solto em uma peregrinação suicida pela Europa.

Triunfo inquestionável

Estas histórias, tão diferentes em suas meras sinopses, são compensadas no tom que os autores utilizam para erguer a HQ, sem letreiros, com franca alteração no valor e tamanho dos quadros, utilizando-se de grande quantidade de ângulos que valorizem a ação pictórica e a capacidade narrativa dos desenhos em si. O realismo fino de Rafael Coutinho, marcado por contrastes sensíveis e significativos de preto-e-branco, destila camadas narrativas, cria ambientes, demarca passagens de tempo, faz brotar sensações. Poucas vezes vi uma utilização tão refinada de tempos mortos, comuns no cinema, mas difíceis de se determinar com precisão em HQ: instâncias temporais imprecisas misturadas a estados psicológicos diluídos.

Soma-se a isso o talento de Galera para criar personagens de profundidade e detalhismo sem que pareçam forçados, valendo-se de diálogos naturais e surpreendentes, com inflexões robustas e filosóficas, inseridos cirurgicamente no esplendor gráfico de Rafael Coutinho. Cachalote é um triunfo, portanto, porque equaliza com honesto e dedicado trabalho artístico os componentes básicos que fundam a história em quadrinhos: a palavra, o espaço gráfico e o silêncio. Nesta HQ é possível que convivam, ao mesmo tempo, quatro páginas emulando as tomadas repetidas de uma filmagem cinematográfica com sutis (mas não desprezíveis) alterações, produzindo inusitado padrão de diálogo entre os dois meios; e também importantes painéis com requadros panorâmicos de página inteira, como pinturas inseridas no meio da HQ, de grande potencial expressivo e também narrativo – basta lembrar a página da troca de olhares entre o playboy na França e a namorada de seu conhecido, de forte impacto emocional e moral, anunciador do que acontecerá. 

Sem respostas fáceis ou didatismo, mas ao mesmo tempo puro em termos narrativos, Cachalote tem os ingredientes certos para uma grande obra artística. O que há de monstruoso nas buscas e escolhas destes personagens é o mesmo que há de humano neles, e é nesse sentido que uma arte visual e voyerística como as Histórias em Quadrinhos pode nos servir de substituto para o olhar meticuloso e observador de Ishmael sobre a busca de Ahab em Moby Dick: somos todos, aqui, testemunhas oculares desta peregrinação humana em direção a seus cachalotes, e o sentido desta busca, ainda que não vençamos esta baleia, não deixa de ser moral e existencial: morremos se deixamos de buscar. É por nadar nestas águas profundas que Cachalote está sendo recebido como obra-prima dos quadrinhos, e nos resta esperar que isso inspire novos trabalhos do mesmo nível.