Rapidinhas Raio Laser #04

E as aguardadas quickies estão de volta, com pouca alteração no formato além do título em português (o que pareceu mais conveniente) e a estreia de resenhas rapidíssimas (para zines e coisas de leitura muito rápida). Lembrem-se: as resenhas são voltadas para o mercado (in)dependente e podem surgir coisas de anos anteriores que estavam encalhadas aqui. Muito do que a gente resenha nos foi enviado pelo correio. Então, não dê mole (se tiver coragem): mande seu material para a Raio Laser no seguinte endereço:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070

por Ciro I. Marcondes

Menina Infinito Nº 1Fábio Lyra (Beleléu, 2015, 36 p.): os quadrinhos de Fábio Lyra seguem um certo padrão: são singelos, com seu traço um tanto duro (sem sombras e gradações), entulhados de referências de bandas indie, noise e shoegaze dos anos 80 e 90, e um pouco lacônicos.

Menina infinita, sua nova série pela Beleléu, não foge à regra e, em meio a citações a Death From Above, Ride, Eugenius e Jesus and Mary Chain, somos inseridos dentro de uma apática festinha de apartamento marejada por este tipo de referência, com gente (já nem tão) jovem explorando as possibilidades afetivas deste ambiente já desgastado e um tanto melancólico, buscando romance xôxo e umas brejas quentes. Se o resultado não é ruim (há uma delicadeza e um humor sutil – para iniciados – que cativam), também carece de urgência. Muito curtinha, a revista não engrena não apenas pelo tamanho, mas pelo apego excessivo ao banal, algo que não acontece nos dramas íntimos de Adrian Tomine, ou nas tramas rocambolescas de Jayme Hernandez, que são claras inspirações.

Menina infinito ainda está longe de seus mestres, peca um pouco por uma quadrinização sem ambição e talvez tenha mais referências que conteúdo, mas ainda está na número 1, e, quando se trata de séries, sabemos que o piloto é sempre um parto difícil. A ver as edições restantes.

Baratão 66 – Bruno Azevêdo e Luciano Irrthum (Beleléu, 2013, 193 p.): em termos de romance gráfico, Baratão 66 é a grande pedida no quadrinho brasileiro contemporâneo. Não tem pra ninguém. Hilário, cheio de recursos, enraizado num ambiente profundamente brasileiro, esta HQ é tudo que o quadrinho de ativismo ingênuo, o quadrinho blasé/minimalista, o quadrinho punk/doido sem referência e o quadrinho sentimental-vinte-e-poucos-anos não são. Ou seja, o roteiro de Bruno Azevêdo, que gira em torno de uma família de mulheres que gerenciam um puteiro em São Luís, vai contra quase tudo que têm sido as tendências do quadrinho brasileiro. Do delineamento psicológico dos personagens, aos seus nomes, à composição dos coadjuvantes, ao timing do humor, à engenhosidade da trama, e até à multiplicidade de registros multimídia (cartas, fotos, postais), Baratão 66 dá o tom exato de como se fazer uma leitura do Brasil em quadrinhos. É o encontro de dois mundos: o da visita à cidadezinha brasileira e seu bestiário de putas, taxistas, michês, policiais e políticos mentecaptos, com uma problematização social do Brasil que está lá como substrato, mas não passa incólume, sempre em chave de ironia. Como se fosse o encontro de Angeli com Érico Veríssimo, ou algo que o valha.  Há baixaria na medida certa, há referências e easter eggs para os que gostam, e há uma arte meio inspirada em cordel, mas sem perder a leveza do pop, que não nos deixa desgrudar os olhos. Uma preciosidade talhada na safadeza e na estultice brasileiras. 

Aerolito Nº 2 e 3 – Lucas Marques, Bruno Prosaiko, Túlio Mendes, Cauê Brandão (Semear, 2014 e 2015, 48 p. cada): a Aerolito é uma nova publicação de jovens quadrinistas brasilienses interessados em narrativas de maior fôlego e histórias mais elaboradas, quase sempre com um pé no insólito e coisas extraordinárias, mas os temas variam bastante. Tive a satisfação de escrever a apresentação da número 1. O acabamento é ótimo, e as capas, paródias de pinturas famosas, são divertidas, cheias de cores e intenções vibrantes. Se na número 1 as histórias ainda careciam de maturidade e traziam um aspecto um tanto amadorístico, nos números seguintes há uma melhora realmente visível, mesmo que pontuada por growing pains, coisa de quem tá começando. O destaque vai para a qualidade autoral do traço carismático de Bruno Prosaiko, que trabalha histórias de verniz mais surrealista. Falta aos roteiros, porém, um equilíbrio entre ambição de (falsa) “profundidade” às histórias e um resultado efetivo nesse sentido. Mesmo “sérias”, estas histórias ainda soam infantis. Melhor partir logo para a fantasia juvenil e desvairada.

Também um tanto desequilibrado, Lucas Marques alterna o traço, o estilo e os temas a cada edição, dando a impressão de ser um artista um pouco desorientado na sua busca por um caminho, sendo confuso e poluído em “Mister Lonely”, mas acertando na mosca no traço limpo, caricatural e despojado na ótima “Rarimish, o messias”, a melhor história de todas as Aerolito. O humor pode ser uma boa. Já Túlio Mendes, atrás dos outros, precisa melhorar a ação e o dinamismo tanto dentro dos quadros quanto entre eles (e soltar o traço!), para fazer as histórias fluírem melhor, além de abandonar quaisquer pretensões de histórias muito “adultas”. Não é um desperdício do seu tempo ler o trabalho destes erráticos quadrinistas, mas há um salto ainda entre o que estas histórias oferecem por trás de sua suposta ousadia e a envergadura do projeto editorial. 

Pigmaleão – Diego Sanchez (Circuito Ambrosia, 2014, 52 p.): e eis que o quadrinista carioca Diego Sanchez, anos depois da “treta de 2012”, retorna às páginas de Raio Laser. Zoações à parte e zero de ressentimento de ambas as partes (o cara é gente boa), temos em mãos este delicado, intuitivo e esotérico Pigmaleão, um salto quântico em relação ao que ele havia apresentado em Peixe fora d’água. Aqui, temos uma história de requadros sem arestas cuidadosamente costurada em torno da iconografia do Tarô de Marselha, a partir de sonhos dentro de sonhos de um jovem processando um relacionamento irreparável em seu inconsciente profundo. Se o tema não é lá dos mais originais (o mito de Pigmaleão para a fantasia masculina da mulher ideal também acabou se tornando um clichê), Sanchez nos conquista com a beleza minimal de seus desenhos (lembra o francês Lewis Trondheim), com o movimento delicado e sinuoso das diagonais de seus quadros, com os intervalos e silêncios que exemplificam sua maturidade narrativa, com o erotismo refinado a partir do qual elabora afetos e mágoas. Memórias inventadas são um bom tema para um tipo de arte que embaralha imagens em diversos níveis e plataformas, e neste ambiente Sanchez encontra porto seguro para expiar seus tormentos e inquietações. 

Coral – Taís Koshino (Selo Piqui, 2015, 22 p.): seria injusto criticar Coral apenas pelo amadorismo de seus desenhos. Certo, Taís Koshino não é uma desenhista profissional, mas, até aí, críticas a um estilo rude e até grosseiro poderiam ser levantadas contra desde Gary Panther, passando por Arnaldo Branco, e até a Henfil ou Wolinski. A questão mesmo é que a excelência nos desenhos deixou de ser pré-requisito para se fazer quadrinhos, goste-se disso ou não.

Coral é o trabalho mais maduro da autora, em sua busca silenciosa por autoconhecimento, em sua experimentação com as divisões e cores dos quadros, com a espessura do lápis, tudo eivado com um tom escapista e melancólico. Temos, por exemplo, a bela exploração de um certo discurso indireto livre em quadrinhos, marcado pelos planos em primeira pessoa, que terminam num quadro magritteano. Sem estardalhaço e sem recursos apelativos, a autora vai cavando sua subjetividade radical na cena dos quadrinhos independentes brasileiros, por meio da poesia e da abstração. Mesmo assim, ainda falta a Coral um norte que a livre da esterilidade do teimoso dadaísmo aleatório e da aversão ao próprio leitor no momento em que a produção de sentido se faz mais necessária. E, neste caso, produzir uma arte simplesmente naïf não ajuda. 

Velhaco’s – André Aguiar (TocasTudios, 2013, 14 p.): Velhaco’s é uma aventura bate-pronto cheia de fuleiragem misturando universos do skate, do cyberpunk, do antropomorfismo, do videogame vintage, etc. A coisa é curta e rasante como um esporro, e o desenhista e roteirista André Aguiar não economiza nas tintas rabiscadas, como se se aproveitasse de uma arte-final de improviso, para narrar a história de dois maloqueiros na missão doida de salvar um gatinha de robôs, policiais, coisas assim. É como se o filme Warriorstivesse um spin-off underground na revista Animal. Se o resultado parece tolo e esquecível, é porque não tinha como ser diferente. O punk não pode ser eterno. 

GoróLuiz Berger (Org., Gordo Seboso, 2013, 76 p.): histórias de bebedeira. Esta simples premissa poderia ser motivo de esta publicação de 2013 ser nada mais que pura tosqueira. Porém, um bom punhado dos autores do gibi resolveu usar a birita como gatilho para criar situações pitorescas, histórias policiais e até reflexões existenciais. Editado por Luiz Berger, o rei da escatologia, Goró de certa maneira demonstra como o quadrinista brasileiro contemporâneo consegue se virar em qualquer situação, topar qualquer empreitada, transformar merda em ouro. Abraham Diaz, por exemplo, cria espécie de True Detective dos mendigos birituns numa história, cheia de recursos, de traição, espionagem e morte. Eduardo Belga tem aqui um de seus trabalhos mais impressionantes em quadrinhos, levando o conceito de “porre” para além de qualquer limite, num texto que nada deve a um Pedro Juan Gutiérrez. No final, esmagados pela night de sexo dantesco, pela consciência moral e pelo excesso de “Ph de buceta”, o leitor é esmigalhado junto com autor e personagens.

O quadrinista Victor Bello traz a melhor contribuição da revista, “Mijo de Cristo tem poder”, possivelmente uma das histórias mais profanas jamais publicadas. Com quadrinização minuciosa e bem feita (digna de um Daniel Clowes bananense), o autor conta a história de um padre que faz uma cachaça com o mijo de Cristo. Os detalhes são escrotérrimos, com gags infames em timing perfeito. Vale mencionar ainda a boa contribuição do americano Josh Bayer, que, numa história rabiscada e um tanto preguiçosa, recobra aleatoriamente sua relação com festas regadas a bebida e com o álcool em si. Segura o suficiente para trazer mais consistência à revista, que poderia dispensar algumas pin ups e outras histórias curtas e rasas que são puro filer. Mesmo assim, vale tomar uma cerva pra celebrar.

Know-Haole Nº 2Diego Gerlach (Vibe Tronxa, 2013, 14 p.): Gerlach é um quadrinista punk e sua linguagem é a da mais pura malacaiagem das ruas, uma coisa febril e violenta, onde os personagens parecem estar sempre sob efeito de tóxicos estimulantes, noiados e sem rumo. O leque de referências aparece por toda história dos quadrinhos e desenhos, com paródias de Droopy, Dick Tracy e Disney, passando por coisas mais underground. Gosto de dizer que ele dá a mesma pala crackeira do Gabriel Góes e seu irrefreável Kowalski, e também que me lembra a dupla espanhola Gallardo e Mediavilla, de Makoki, algo extraído diretamente da estética alucinada dos anos 80. E esta década é referência para Gerlach. Suas histórias são de encontros fortuitos e desvairados nas ruas, com tipos urbanos bizarros, linguagem de mala e abreviações de internet, e muito de suas qualidades está em embaraçar estas referências todas num estilo inconfundível.

Know-Haole 2 traz algum do seu melhor material, com as histórias entrecruzadas de Gilso, um cachorro de rua que se fode numa treta com outro mendigo; e a de Charlindo, um pato loser que tem um colapso nervoso ao tomar um choque elétrico. A história funciona como um furacão alucinado de visões turvas e impressões doentias das coisas. Mas atenção: é quadrinho de rua, é quadrinho de doidão. Sem pudores por aqui.

A Última Bailarina – Guilherme de Sousa (Korja dosQuadrinhos, 2014, 52 p.): não é que este seja um trabalho especialmente ruim. Ele tem algum carisma e um conceito: três personagens pitorescos (um ursinho de pelúcia machão – onde eu vi isso? –; uma garota bailarina abobalhada e ingênua; e um unicórnio efeminado) precisam resistir a um apocalipse zumbi. Os desenhos são “fofos” (ainda que muito pobres em composição e cenário) e algumas gags funcionam (ainda que com problemas de ritmo), mas os problemas se sobrepõem: primeiro, QUEM aguenta mais histórias genéricas com zumbis, seja em chave de ironia ou não? Segundo: personagens grosseiramente estereotipados, sem se definirem enquanto adultos ou infantis. Terceiro: cacoetes de animação, com uma história que anda em círculos procurando preencher o espaço de 15 minutos de duração. Enfim, por quê lançar um livro luxuoso, com boa impressão e gramatura, com este material, eu tenho minhas dúvidas. 

Rapidíssimas (zines):

GaiolaMorgana Mastrianni

(Independente, 2013, 12 p.): misturando influências de expressionismo e teatro kabuki, a autora tece uma intrigante narrativa muda sobre máscaras (literais e metafóricas), tangendo o inconsciente feminino em eficiente simbolismo em quadrinhos.

Re/Forma – Luís Aranguri (Aparato/Independente, 2014, 10 p.): o quadrinho abstrato ainda é uma novidade conceitual no Brasil, mas o trabalho (simples e efetivo) de Luís Aranguri inspira a imaginar (guardadas as proporções) o que Kandinsky ou Mondrian poderiam ter pensado sobre o meio. Aqui, o autor provoca um esfacelamento gradual do espaço em quadrinhos a partir do próprio uso da leitura sequencial e de seus recursos, produzindo um quadrinho que se autossabota, um antiquadrinho.

Pirata Perna Curta

Nº 1 – Chico, Thiago Fagundes, Lucas Feat, Mayra (Pirate Books/Independente, 2015, 14 p.): à parte um bom conto cáustico de Lucas Feat, o material desse zine parece coisa de iniciante, um tanto insípido, lembrando tiras amadoras de Facebook, com pin-ups dispensáveis e quadrinhos muito destoantes entre si. A intenção é um espírito meio Mad, mas o resultado tá mais pra Will Tirando.

Quer Dançar? – Guilherme de Sousa (Independente, 2013, 32 p.): uma história muda e amalucada que envolve sexo casual, um feto largado no esgoto e a proliferação de uma raça de homens-crocodilo num estilo meio Marcelo Cassaro funciona muito melhor do que a empreitada mais “ambiciosa” do autor (acima). Eis o caminho.