SE O BRASIL ACABAR, "DEPOIS QUE O BRASIL ACABOU" ESTARÁ LÁ PARA EXPLICAR TUDO

por Márcio Jr.

Cada um que escolha seu marco temporal, mas para mim o Brasil começou a acabar nas manifestações de 2013. Me lembro de estar nas ruas e sentir aquele odor nauseabundo. Odor de fascismo. De lá pra cá, só toco: o golpe em cima da Dilma, o deplorável governo do traíra Temer e a “eleição” do demônio genocida. O odor de 2013 se tornou o ar que respiramos. 

Brasil: junho/2013

Vira e mexe, me pego pensando besteira. No futuro – se existir futuro, lógico –, como as pessoas saberão o que aconteceu? Com certeza, não será pelas manchetes dos jornais do período. O retrato mais fiel do Brasil da última década está poucas páginas adiante, nas charges e tiras de quadrinhos. Já fiz essa experiência: é ali que está registrado tudo aquilo que eu vi diante dos meus olhos.

João Pinheiro não está nas páginas dos jornais. Deveria. Mas também não é algo tão necessário. Oriundo da quebrada, o sujeito sabe que Wellinton parado vira bolsa de madame. Ou seja, o cara anda jogando seus molotovs de nanquim por todos os cantos: zines, sites, gibis independentes. Guerra de guerrilha, camarada. De modo que Depois que o Brasil acabou – antologia que reúne essas granadas quadrinísticas espalhadas por páginas de baixa tiragem – é um serviço de primeira necessidade que a editora Veneta nos presta.

A Cavalo de Teta – publicação independente capitaneada pelo próprio João e que conta com o melhor escrete do Partido Quadrinista do Brasil, isto é, Gerlach, Schiavon, MZK, Evandro Alves e Rafa Campos Rocha – é fonte da maior parte do ouro compilado no livro. “Cloro Maldito” é uma pequena obra-prima que liquidifica Cinema Novo, Marvel Comics e esquerda cirandeira. Jamais devemos perder de vista que João Pinheiro é um beatnik da perifa. Se fosse cineasta, estaria vagando ali pela região da Boca do Lixo. Duvida? Leia “Fome Animal” e depois me conte.

Preta Maravilha contra a União Golpista é outra pedrada que mostra o quanto João é um quadrinista único. A personagem – que logo voltará a dar as caras em HQ desenhada pelo grande Álvaro Maia – é negra e feminista, mas não cai na cilada do identitarismo puro e simples. Assim como seu autor, ela sabe que o caminho é um só: a Revolução. (Com “erre” maiúsculo e cabeças rolando.)

Mas não pense você que o trabalho de João Pinheiro se garante unicamente pelos temas. Como acontece nos artistas de verdade, forma e conteúdo não se dissociam. Daí o privilégio de ver estas HQs em formato avantajado (19 x 26 cm). O traço cru e vigoroso do quadrinista funciona como minas terrestres, explodindo página após página. E é fundamental ressaltar algo que eu já havia dito antes: João Pinheiro é um raro e legítimo herdeiro da melhor tradição do quadrinho popular brasileiro. O seu desenho traz o DNA de mestres como Julio Shimamoto, Elmano Silva, Itamar Gonçalves e mesmo Nico Rosso. Se fosse um pouquinho mais velho, estaria ao lado dessas lendas nos gibis de terror que por décadas entupiram nossas bancas de revista.

Em “Farol de quebrada”, umas das HQs em cores do álbum, João termina dizendo: “(...) vou pra laje e fico que nem um farol olhando pras coisas do alto. Um farol que não é visto. Um farol que não serve pra orientar ninguém.” Sinto dizer, mas nessa você errou feio, meu chapa. Depois que o Brasil acabou é um documento imprescindível dos apocalípticos tempos vividos na pátria-mãe (nada) gentil. E se o Brasil acabar de vez, a explicação estará toda ali, esmiuçada em suas 112 páginas, aguardando alguém que de fato queira entender o que aconteceu.