REMARQUE, TARDI E SAM MENDES: TRÊS LEITURAS SOBRE UMA CATÁSTROFE

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por Ciro I. Marcondes

Pouco antes de mergulharmos num sombrio terreno de incerteza e morte graças à pandemia vigente, eu trabalhava na ideia de costurar três pequenas críticas para narrativas sobre a Primeira Guerra Mundial. Minha intenção era, vejam só, levantar um conjunto de reflexões sobre a morbidez do período, que inclui também a Revolução Russa e a gripe espanhola. Aqueles anos entre 1914 e 1918 inauguraram um século (o 20) de uma maneira brutal como jamais se havia visto. Por exemplo, imagine que a França trouxe soldados da Indochina e do norte da África, na época suas colônias, não apenas para combater e morrer (foram mais de 50 mil), mas especialmente para fazer o trabalho que ninguém imagina. Afinal, quem cavava as fossas, as valas para cadáveres e as próprias trincheiras da guerra?

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Entretanto, para além do aspecto geopolítico e colonial desta guerra, as três narrativas que vou analisar (decidi levar o projeto adiante) fazem convergir as ideias a respeito do humano que resta, ou de como manter seu cérebro operando na adrenalina, na miséria e nas condições extremas a que aquele homens (em sua maioria, rapazes recém saídos da adolescência) eram submetidos no front. As três narrativas caminham junto do soldado, procuram desvelar que tipo de passatempo realizavam para sobreviver. Alguns fabricavam pequenos objetos feitos de restos de ogivas; outros se masturbavam ensandecidamente para fotografias velhas; outros brincavam de tiro ao alvo com os ratos gordos de quem deveriam proteger a escassa comida. São histórias horripilantes, de vidas interrompidas em meio a uma luta pela sobrevivência que era pior do que qualquer descrição do inferno.

A Primeira Guerra Mundial sempre me exerceu fascínio por funcionar como esse portão apocalíptico para o século 20. A disposição espacial da trincheira em si, enquanto arquitetura, também contribui para atestar a condição de passagem: serpenteada, labiríntica, putrefata, é o lugar dos ratos, do gás mostarda e da morte. O escritor alemão Erich Maria Remarque sobreviveu à guerra para publicar, onze anos depois, o que durante muito tempo foi a obra de referência sobre a experiência do soldado: Nada de Novo no Front (Im Westen nichts Neues, 1929). É um romance aterrador, que aloja num monólogo simples e claro, limpo, inúmeros paradoxos observáveis das nações e dos indivíduos envolvidos no conflito. Publicado em 1993, mas cujas primeiras histórias datam de 1983, Era a Guerra das Trincheiras foi a primeira investida robusta, na forma de um álbum detalhista e inigualável, do quadrinista francês Jacques Tardi, sobre esta era. Por fim, 1917 (2019), filme do britânico Sam Mendes, encena ação absoluta numa linha visual conduzida pelo diretor de fotografia Roger Deakins, revelando o corpo-a-corpo das trincheiras num memorável falso plano-sequência.

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Cada uma destas obras, em mídias distintas, busca elevar o aspecto fúnebre e tanático da Primeira Guerra a uma forma de arte que mais aceite o trauma do que busque sublimação. Talvez esta seja nossa condição diante do futuro incerto do momento atual.

Nada de Novo no Front - o corpo sobrevivente

Erich Maria Remarque

Erich Maria Remarque

De certa maneira, a narrativa criada por Erich Maria Remarque para seu personagem Paul Bäumer continua sendo a definitiva sobre a Primeira Guerra. Ela meio que carrega o gesto fundacional, que será tocado por todos que abordarem esta história, para sempre. Para Tardi, foi uma leitura confessa. Para 1917, alguma inspiração é (literalmente) visível. O livro sofreu perseguição durante o período do terceiro reich: era considerado subversivo, porque pacifista. Remarque escreve com precisão e clareza, mas nunca com frieza. Seu personagem vale-se de um fluxo de consciência que se alterna entre a extrema tensão e uma postura indagadora. Isso pode ser percebido no detalhamento em que informa o leitor a respeito da indumentária dos soldados, da maneira como barganhavam um pedaço de pão (que guardavam no bolso, sujo de sangue) ou cagavam (em latas, às vezes jogando cartas), de histórias de homens mortos por estilhaços, homens mortos pelo fogo amigo, de cavalos mortos que, levados aos céus após a explosão de uma ogiva, passam a apodrecer em cima das árvores.

Remarque nos inunda de informações miraculosas, algumas técnicas (para sobreviver durante uma batalha, era importante se jogar num buraco de ogiva, já que os canhões raramente acertavam exatamente o mesmo lugar de novo), outras de puro horror: os rostos enternecidos e azuis dos mortos pelo gás mostarda; a brutalidade do hospital militar, com seus “quartos da morte”, reservados àqueles que não tinham mais possibilidade de sobrevivência; o furor da batalha, onde os homens são vertidos em pulsões inesgotáveis em direção ao puro e simples apego à vida (mesmo que ela nada valha), como descreve esta bela passagem:

“Nossos rostos não estão nem mais pálidos, nem mais corados do que antes; não estão mais tensos nem mais relaxados, e, no entanto, estão diferentes. Sentimos como se o contato de uma corrente elétrica alvoroçasse nosso sangue. Isto não é só força de expressão; é um fato. É front, a consciência de estarmos na linha de frente, que estabelece este contato. No mesmo instante em que as primeiras granadas assobiam, quando o ar estremece sobre os tiros, insinua-se, repentinamente, uma expectativa mal reprimida em nossas veias, em nossas mãos, em nossos olhos, um esperar mais vigilante, uma consciência mais intensa do nosso ser, um estranho aguçamento dos sentidos. O corpo, de repente, fica preparado para tudo.”

Preparado para tudo, este corpo vira testemunho e ponto nevrálgico de todas as questões concernentes à guerra no momento do soldado: é ele (o corpo) que se esfacela, no meio dos arames que limitam os fronts, e precisa ser retirado, podre, nos dias seguintes, porque o odor incomoda os sobreviventes. Não deixa de ser carregada de horror caligaresco a passagem em que os soldados alemães travam uma batalha no cemitério, e precisam usar o caixão dos mortos como defesa contra a possibilidade de morrer. No final, novos mortos são enterrados pelas ogivas, e velhos mortos desenterrados pelas explosões. Se sobreviver, esta frágil compleição que é o corpo é responsável por resgatar a mente da lobotomia que a sabota durante os anos de guerra.

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Não à toa, as cenas que mais se imprimiram nas minhas recordações desse romance não são os relatos da descida ao inferno, mas dois pequenos momentos em que o protagonista Paul sobe, digamos assim, para respirar. O primeiro deles ocorre quando ele e seu amigo Stanislaus Katczinsky decidem invadir uma cidade situada entre dois exércitos para capturar um leitão que lhes garantisse a melhor refeição da campanha. Pode parecer supérfluo e até irracional para certa (confortável) mentalidade burguesa imaginar que aqueles homens poderiam perder a vida por arriscar ter uma refeição com dignidade. Porém, pelo que se percebe destas narrativas, a guerra vira uma espécie de jogo ou roleta russa constante, onde prevalece a lei de Bob Dylan em Like a Rolling Stone: “when you got nothing, you got nothing to lose.” A passagem, narrada com austeridade autojustificada, que mostra os soldados comendo leitão assado ao som dos canhões à distância, tendo eles escolhido a paz por alguns minutos, é uma das mais poeticamente ricas do livro.

O segundo momento é quando Paul recebe uma licença para voltar à sua casa durante duas semanas, após um par de anos na guerra. Incapaz de reconhecer a vida de civil novamente, ele se dá conta de que cada minuto no front draga sua alma de referências, e seu corpo torna-se, enfim, traumático, pois ele só identifica a não-civilização como lugar de seu estar-no-mundo. Não surpreende que, quando o romance vai se aproximando do final do conflito e os alemães percebem que vão perder a guerra, uma intoxicante atmosfera de desencanto e de perda de seu “eu profundo” toma conta do protagonista. Ele reconhece, em meio ao caos e às cinzas, uma borboleta voando, e se pergunta por que a natureza busca a morte, por meio da vida.

No final da guerra, recrutas recém-convocados da escola, sem qualquer treinamento, eram lançados diretamente ao front para serem abatidos como moscas, num último ato de desespero dos generais alemães. Pode-se dizer que o corpo de Paul caminha sem alma para se transformar, futuramente, no corpo de Erich Maria Remarque, que procurou traduzir uma poética da morte (a borboleta em meio aos cadáveres) numa pulsão pela paz (seu próprio romance).

Era a Guerra de Trincheiras - imersão no trançado da morte

Jacques Tardi é um dos maiores ilustradores da história das histórias em quadrinhos. Seu estilo de desenhar, que parece uma exótica mistura de Francis Bacon com Will Eisner (porém certamente indefinível em palavras), é saudado pelas feições vampíricas de seus personagens. Vejam o rosto de Adèle Blanc-Sec. Há um estranho (e profissional) uso da deformação em Tardi. Se ele faz um ombro maior que o outro, vai desenhar a farda do soldado exatamente como ela era na Primeira Guerra. Fiquei postergando um texto sobre Adèle durante anos, e agora me recai a dura tarefa de falar sobre o lúgubre Era a Guerra de Trincheiras (C'était la guerre des tranchées, 1993. No Brasil saiu pela Nemo em 2011).

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O autor dedica o livro a seu avô, que lutou no conflito e lhe forneceu material verídico sobre a Guerra. Parte desse trabalho foi publicado na fundamental revista (À Suivre), e o jeito anedótico dos contos/histórias relatados combinam com o aspecto procedural do álbum como um todo. Era a Guerra de Trincheiras foi minuciosamente pesquisado, em relatos e livros, e Tardi consultou também historiadores para arrebatar numa narrativa que tem, em seus méritos, especialmente aspectos visuais.

Diferentemente de Nada de Novo no Front, o álbum de Tardi não é uma visão pessoal do autor/personagem, não possui um drive neste sentido. É claro, aqui reconhecemos também aspectos abomináveis que matam a curiosidade pelo mórbido: a história de um soldado corso fuzilado pelos seus aliados, por não saber falar francês; a de um soldado que passa uma noite com as mãos enterradas nas vísceras de um cadáver, pensando ser lama; de um soldado caçador de ratos, de outro que fabricava esculturas com restos de ogiva. Há a chocante história da ordem dada aos soldados franceses para fuzilarem mulheres e crianças belgas (ou seja, aliados) que estavam sendo usadas de escudo pelos alemães. O horror da guerra abunda no grafismo realista e fotograficamente detalhado de Tardi, e nisso as obras são semelhantes.

Porém  a diferença é não apenas a falta de foco em Era a Guerra das Trincheiras, mas o entrelaçamento narrativo caótico que o autor francês dispõe ao parear a disposição de suas histórias com a forma dos arames das trincheiras em si. A pesquisa visual/conceitual de Tardi é brutalizada na cara do leitor, que precisa encarar verdadeiros olhares vindos diretamente da morte nas faces de seus cadavéricos soldados. Ao mesmo tempo, há uma profusão de cenários: a terra de ninguém, as cidades esmagadas pela catástrofe, as dolorosas memórias daqueles soldados. Homem, civilização, barbárie, cataclisma e outras ideias extremas convivem na passagem constante desses requadros dispersos, que completam nossa atenção sem que efetivamente percebamos.

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Pois é assim a forma que Tardi escolheu para criar esta ambiência - como se concentrasse na ideia de paisagem - capaz de nos capturar no aspecto asfixiante da guerra. Muitas páginas são compostas por apenas três grandes requadros retangulares e horizontais, alternando tempo e espaço, e trazendo à tona uma pioneira sensação de imersão e tridimensionalidade nos quadrinhos. Mesmo o excessivo uso de recordatórios e balões explicativos não prejudica o contato com as formas do mal e da natureza que se infiltram na atmosfera desse quadrinho.

Curiosamente, algo na direção deste efeito de imersão que Tardi coloca em Era a Guerra de Trincheiras tentou ser recriado na forma de falso plano-sequência no antes badalado 1917, de Sam Mendes.

1917 - o anticlímax

Após ler as duas obras mencionadas acima, confesso que fiquei com certa ansiedade para conferir 1917, uma espécie de “missão filmada” da Primeira Guerra rodada em glorioso plano-sequência pelo recém oscarizado e lendário diretor de fotografia Roger Deakins. A direção ficou a cabo de Sam Mendes, uma promessa de diretor-autor que envelheceu tão bem quanto Conor Oberst ou Steve Forbert envelheceram para se tornarem o “novo Bob Dylan.” Quer dizer, havia por que se desconfiar, mas eu ansiava ver aquilo que lera em Nada de Novo no Front (tensão e adrenalina a ponto de explodir as veias do cérebro) e Era a Guerra de Trincheiras (um sentimento desolador e definitivo) pulsar em cores numa imensa tela de cinema. Me interessava calçar as botas do soldado e concretizar, quase como uma visita holográfica ao passado, o ciclo que havia iniciado lendo o primeiro livro.

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No entanto, como foi para tanta gente, 1917 revelou-se asséptico. De uma certa forma, é um filme que carrega o mérito de fazer emergir novamente um tipo de “câmera-olho” vertoviana que espreita e fareja a realidade ampliando nossa percepção a parâmetros ultramodernos. Impossível não se sentir jogando Call of Duty ou o que seja, quando as imagens fluem como rio e te empurram, mesmo que a contragosto, para o espaço ocupado pelos soldados em missão. Mendes já havia experimentado com formas “alternativas” de registro em seu outro (e inteiramente diferente) filme de guerra Soldado Anônimo (Jarhead, 2003), usando auto filmagens dos soldados com câmeras digitais primárias.

Neste sentido, 1917 é impecável em mapear a topografia da guerra: vemos como se dormia nas trincheiras, vemos como se armavam as armadilhas com explosivos, vemos como se morria esfaqueado. As cenas de combate corpo-a-corpo, por isso mesmo, são graficamente impactantes, mas nada perto da desolação incalculável, próxima de uma febre que lhe ferve o sangue, que se abate sobre Paul Bäumer quando mata a punhaladas um soldados francês no lamaçal de um buraco de bomba, em Nada de Novo no Front. A morte na literatura vira conceito, enquanto no cinema é apenas mais uma imagem que empurramos pra frente.

Com tudo efetivamente visível, 1917 acaba pecando por carência de algo mais intermitente. Poucos são os momentos em que a ação nos dá o direito de respirar - vale anotar a ressalva da magnífica cena dos soldados atravessando, em plano geral e à contraluz, a “terra de ninguém”, inflando o caráter épico do filme. Sendo essencialmente mais sensitivo e imersivo do que propriamente narrativo, o filme de Mendes logo “entrega o ouro” sobre o que sua linguagem tem a capacidade de dizer. Ou seja: não há algo que compense, como o caos narrativo de Tardi, ou a visão introspectiva do narrador no romance de Ramarque. 1917 entrega tudo, mas não diz nada.

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O excesso do visível, aqui (comum ao cinema; discreto nas outras artes analisadas) - e isso inclui os tons dourados da fotografia de Deakins -, satura a capacidade do filme em comunicar a guerra. Neste sentido, mesmo que o “efeito Call of Duty” dure um certo tempo, chega o momento em que míngua e ficamos entediados. O que é muito diferente do agônico efeito de imersão de Tardi em seus “quadrões.” 1917 é tão “hot” (no sentido de McLuhan) que perdemos qualquer capacidade de participação no mundo. Estamos amarrados à poltrona, perto do cinema, mas longe de guerra.

De qualquer forma, o filme de Mendes ajuda a compreender o conflito que há pouco completou 100 anos e que mergulhou o mundo em incerteza e crise profunda. Se ele lembra a desesperança atual, talvez tenha sido um bom preparo, efetivamente, realizar essa triangulação de obras justamente no começo deste apocalíptico 2020.