POR DENTRO DO TORONTO COMIC ARTS FESTIVAL 2023

Após cinco anos cobrindo festivais e eventos de quadrinhos na Holanda, França, Bélgica, Alemanha e Portugal para o canal Eurocomics e na Raio Laser, o raiúca Bruno Porto faz sua estreia no mais badalado festival do Quadrinho independente do Canadá.

por Bruno Porto

O TCAF - Toronto Comic Arts Festival 2023, que aconteceu entre 28 e 30 de abril, comemora exatas duas décadas desde a realização da sua primeira edição, em 2003. Acontecendo inicialmente a cada dois anos, o festival tornou-se um evento anual a partir de 2009, quando passou a ocupar o fantástico prédio da Toronto Reference Library, a maior e mais visitada unidade do sistema municipal de bibliotecas públicas, localizada em um dos pontos mais centrais da cidade. O objetivo do festival é promover as histórias em quadrinhos para o grande público, focando a diversidade de vozes de seus autores. Pelo que pude observar este ano, o TCAF tem sido muito bem sucedido neste sentido. Desde 2016, o evento atrai por volta de 25.000 visitantes nos dois dias — um fim-de-semana — em que acontece.

Mesa redonda sobre pequenas editoras com Annie Koyama, Zainab Akhtar e Patrick Crotty; apresentação das quadrinistas quebequenses Boum, Julie Delporte, Lee Lai, Ariane Cloutier e Tania Mignacca; os quadrinistas canadenses Michael Cherkas (autografando sua série Silent Invasion) e Chester Brown (distribuindo seus fanzines).

Já arriscando-me em uma análise levemente simplista, achei o público muito mais próximo ao dos festivais europeus que frequentei — que abrangem de crianças já alfabetizadas até pessoas da terceira idade que compreendem HQs como meio legítimo de valor artístico — do que o público-alvo de Comic Cons. A essência do evento me pareceu ser a pessoa do quadrinista, não personagens ou editoras, e a obra que ela produziu naquele momento.

TCAF no sábado pela manhã.

Não que não acontecessem intercessões. Havia profissionais locais que atuam na indústria estadunidense de quadrinhos de Super-Herói, como Ryan North, atual roteirista das HQs do Quarteto Fantástico e Star Trek: Lower Decks (e com passagens premiadas com Eisner e Harvey Awards por Garota Esquilo e Hora da Aventura), e Jason Loo, que já desenhou HQs do Quarteto, Homem-Aranha, X-Men e acabou de escrever uma minissérie do cão Cosmo dos Guardiães da Galáxia. Embora fosse possível encontrar alguns desses títulos nas suas mesas, a ênfase (inclusive na divulgação) era totalmente voltada para os trabalhos autorais dos quadrinistas, como as graphic novels Danger and Other Unknown Risks e Slaughterhouse-Five (em que North colabora, respectivamente, com a novaiorquina Erica Henderson e o catalão Albert Monteys), e os gibis independentes d’O Lamentável Homem-Largato, em que Loo narra as aventuras do “super-herói mais razoável de Toronto”.

Loo e North em suas mesas, e um painel sobre o ofício de roteirista com Jim Zub (Conan, Rick & Morty), North, J.Torres (Teen Titans Go, Batman Nightwatch) e Mark Askwith (O Prisioneiro, Batman Black & White.)

A programação do TCAF 2023 era composta por um dia — a sexta-feira 28, das 8h às 17h — voltado para profissionais, seguido de dois dias aberto ao público, das 10h às 17h, com uma riquíssima lista de mesas redondas, debates, palestras, workshops e mentorias acontecendo simultaneamente em cinco ou seis espaços diferentes… isso tudo em meio a uma feira com mais de 200 mesas espalhadas por três andares da biblioteca. Apesar da presença relativamente discreta de editoras renomadas, como a estadunidense Fantagraphics e a canadense Drawn & Quarterly, e algumas gibiterias locais, a maioria das mesas era ocupada por artistas e pequenas editoras independentes, em sua vasta maioria canadenses. Alguns quadrinistas sem mesa, como o estadunidense Robert Sikoryak e o canadense Seth, autografavam nas mesas das editoras (mas mesmo os que tinham sua própria banquinha faziam isso em horários específicos). Além da programação na Toronto Reference Library, aconteceram outras atividades espalhadas pela cidade antes, durante e depois do fim-de-semana, como mostras de filmes, festas, lançamentos em gibiterias, sessões de desenho ao vivo, palestras e uma feira online.

E eu lá sou louco de não pegar uma dédicace do Seth para a Dandara Palankof?

O QUE EU FIZ

Com o tablóide da programação em mãos, tracei uma estratégia que se resumia a chegar cedo e sair tarde nos dias 29 e 30, assistir as palestras e mesas redondas de pessoas que queria conhecer, e rodar, durante os intervalos, as mesas para tentar ver o máximo da produção presente. Obviamente, não foi bem assim. Acabei circulando pela feira no segundo dia, principalmente depois que deixei meu filho nas atividades da programação infantil. Ele fez uma oficina de roteiro de quadrinhos com o supracitado Ryan North e assistiu a apresentação da graphic novel Stealing Home — sobre um menino nipo-canadense cuja família é confinada em um campo de concentração em seu próprio país após o ataque japonês a Pearl Harbor— feita pelos autores J. Torres e David Namisato.

J. Torres e David Namisato apresentam a graphic novel Stealing Home; Artur produz recordatórios e diálogos para páginas de quadrinhos do Homem-Aranha e Garota Esquilo originalmente escritas por Ryan North.

Minha provavelmente muito distorcida impressão do que vi pelas mesas é que os gêneros mais presentes na produção do quadrinista independente daqui são o chamado Slice of Life — HQs de cunho pessoal em diversos níveis autobiográficos — e o Terror Fantástico, com aquele eventual pezinho na Ficção Científica. Com certeza estou generalizando bastante, mas é o que fui encontrando mais pelos corredores, embora definitivamente tivesse de tudo um pouco. Também fiquei com a impressão de que apesar de muitos “quadrinhos para gente grande”, grande parte das obras era direcionada para o público infanto-juvenil. Não me surpreendi em encontrar, como nas feiras de quadrinhos brasileiras, muitos produtos derivados dos quadrinhos, como adesivos, prints, bottons, almofadinhas, etc. A publisher Peggy Burns, da editora canadense Drawn & Quarterly, confirmou que a maioria do autores independentes ganham mais dinheiro com merchandising do que com os livros em si. Mas percebi dois diferenciais em relação ao que observo no Brasil: a quantidade de HQs oferecidas era maior ou igual a de produtos e, com raras exceções, os produtos em sua maioria eram de personagens das próprias HQs, não fan-arts de propriedades intelectuais de terceiros.

Toril Orlesky, Shawn Kuruneru, Derek Laufman e Ramón K Pérez: diversidade de gêneros e estilos.

Uma das mais agradáveis surpresas foi conhecer os quadrinhos experimentais do inglês Martin Vaughn-James (1943-2009), tema de discussão de uma mesa redonda. Os críticos e jornalistas Jeet Heer e Sean Rogers conversaram com o quadrinista canadense Seth sobre a coletânea The Projector and Elephant, publicada ano passado pela New York Review Comics (com textos e pesquisa dos dois primeiros, e design do terceiro), contendo raros trabalhos de arte sequencial que o inglês produziu na primeira metade dos anos 1970 em Toronto, onde viveu entre 1968-1977. Essa semi-obscura produção, que causou grande estranheza ao então jovem Seth, foi discutida com entusiasmo pelos integrantes da mesa tanto do ponto de vista da motivação e influências do artista como da possível recepção do público da Toronto de 50 anos atrás, e a decisão de se dedicar integralmente à pintura à partir da década de 1980.

Heer, Seth e Rogers discutem Martin Vaughn-James; Paul Kirchner autografa The Bus.

Um belo encontro inesperado — porque não havia lido seu nome no mapa das mesas — foi com o estadunidense Paul Kirchner, autor de The Bus, tira surrealista publicada na revista Heavy Metal entre 1978-1985 (e publicada anos passado no Brasil como Ônibus pela Risco Editora, com tradução de Érico Assis). Simpaticíssimo, batemos um longo papo enquanto ele cuidadosamente autografava os dois volumes de The Bus que comprei. Em meio a falarmos sobre diferentes tipos de festivais de quadrinhos e os públicos que os frequentam, ele contou que vendera quase todas as artes da tira de uma vez só nos anos 1990, e como a obra foi redescoberta.

“Eu meio que tinha parado de trabalhar para a Heavy Metal, estava fazendo muitas outras coisas. Aí pensei que aquela história tinha terminado, você sabe... Um dia, uma pessoa veio à minha casa e comprou quase todos os originais, pagando bem barato… Um erro, né? Eu pensava que aquilo ali já tinha dado o que tinha que dar”, contou. Cerca de quinze anos atrás, com o surgimento das redes sociais, as pessoas passaram a postar tiras do Ônibus. “Eu tinha uma pilha de exemplares do livro, que eu comprei da editora quando ela estava fechando por 75 centavos cada… Aí olhei na Amazon e as pessoas espatavam pagando 150 dólares por estes livos, meu Deus! Comecei a vendê-los por cinco dólares!”, ri ele. “Então essa editora francesa [Editions] Tanibis entrou em contato querendo reeditar o título. Foi o primeiro livro deles, e fizeram um trabalho tão bom, ficou muito melhor que o que a Ballantine [Books] tinha feito [em 1987]”.

Outra conversa ótima foi a que tive com o cartunista R. Sikoryak, conhecido por suas provocantes e inteligentes paródias em quadrinhos, como Terms and Conditions, uma adaptação não-autorizada do contrato de usuário do iTunes, com 100 páginas desenhadas cada uma no estilo de uma tira ou quadrinista conhecidos. Após apresentar a palestra “Remixing the past, present, and future of comics”, sobre seu processo de trabalho, gentilmente aceitou sentar comigo para que eu pudesse entrevistá-lo para meu doutorado sobre a forma que utiliza a tipografia e demais elementos gráficos das capas de revistas antigas como apoio para a construção de suas mensagens. De quebra, me mostrou as então inéditas HQs que fez para o livro The Making of Another Major Motion Picture Masterpiece, de Tom Hanks, que seria lançado na semana seguinte. O romance conta os bastidores da produção fictícia de um filme de Super-Herói, baseado em um personagem de quadrinhos underground dos anos 1970 inspirado por uma HQ de guerra de 1947. As três HQs — tem também uma espécie de quadrinização do filme — em estilos distintos foram feitas por Sikoryak.

Sikoryak discorreu sobre como seu cérebro se vale da cultura vernacular para produzir paródias de quadrinhos antes de me mostrar suas HQs em parceria com Tom Hanks.

WORD BALLOON ACADEMY

Na sexta-feira que antecedeu o fim-de-semana aberto ao público, aconteceu a Word Balloon Academy, um dia de palestras voltadas para o aprimoramento profissional de quadrinistas, editores e outros integrantes da cadeia de produção de quadrinhos.

Com inscrição obrigatória e gratuita (para mensurar o café da manhã e coffee breaks servidos aos participantes), a programação da Word Balloon Academy era composta por duas séries paralelas de apresentações de cerca de meia hora + quinze a vinte minutos para perguntas. Optei por acompanhar as atividades relacionadas à produção de roteiros para quadrinhos, acostumado que estou de ver o desenho ser o foco das atenções em festivais, exposições e cursos. Tanto as apresentações sobre roteiro para HQs curtas (Horror Comics in Six Pages or Less, com a quadrinista independente Joy San) como a direcionada a séries ou graphic novels (Writing Comics Without Knowing All the Answers: Long-form Comics Techniques, com o quadrinista e designer de games Benjamin Rivers, da Bancy & Co.) foram muito bem estruturadas. Ambos listaram as vantagens e desvantagens de cada formato (para o leitor e para o autor), que sistemas costumam usar e, exemplificando com análises de desconstrução de seus trabalhos, como saem de enrascadas.

Detalhes da palestra de Ben Rivers, a quadrinista Joy San e a mesa redonda Fully Uncensored: The Business of 18+ Comics.

As HQs de Terror de San, por exemplo, costumam seguir uma sequência — que ela definiu como Set up / Incident / Rising Action / Climax / Falling action / Resolution — em que se estabelece rapidamente a cena + local + personagens, acontece um incidente, que irá gerar uma ação, seguida por um momento decisivo, uma última ação e, por fim, a resolução da situação. Isso pode ser visto, por exemplo, em sua HQ The Party em que um aparentemente tradicional chá de bebê termina de forma sanguinolenta. “Eu foco em uma idéia central forte, e construo a narrativa em torno dela, confiando que o leitor vá chegar às suas próprias conclusões”, disse ela. Segundo a quadrinista, em uma HQ curta não há tempo para se “construir mundos”, e muitas informações são deixadas como não-ditas.

Já a técnica que Rivers revela utilizar é calcada na tradicional estrutura de três atos (que não é muito diferente da usada por San) em que um incidente inicial leva a um ponto importante em que se estabelece um conflito, seguido por problemas que aumentam a tensão até uma virada, e o final. Para ele, é importante o roteirista ter uma ideia bem clara sobre essa divisão, e conhecer seus personagens. Rivers não apenas escreve uma biografia para cada personagem — que não necessariamente vai transparecer na história mas justifica a personalidade que cada um tem — como define papéis que eles assumirão para que a trama se desenrole. Usando sua série Sorry, I Love You como exemplo, ele designou quais personagens são o Protagonista, o Interesse Amoroso, o Mentor, o Questionador, etc. “Se eu preciso que o Protagonista tome alguma atitude na narrativa, uma conversa com o Mentor num papo de bar é o que ele precisa para mudar de ideia, por exemplo”. Para ele, ao final de cada cena o Protagonista tem que ter alcançado algum objetivo, e o leitor tem que ter aprendido ou descoberto algo novo.

Aspectos técnicos do roteiro de quadrinhos também foi o cerne da aula-magna que a pesquisadora, editora da HighWater Press e colaboradora do The Comics Journal Irene Velentzas apresentou. Sua palestra Comics Script Editing Best Practices sobre estrutura de roteiro e como este é necessário para o editor entender a viabilidade daquela HQ revelou uma eficiente abordagem do processo editorial de quadrinhos. Distanciando-se do diletantismo, insere o roteirista de quadrinhos como integrante relevante de um sistema que visa a consistente publicação de boas HQs.

Segundo ela, cada página bem formatada de roteiro equivale a uma página de quadrinhos, e o custo médio de confecção visual desta página é de 300 dólares. Assim, em quadrinhos, espaço não é só dinheiro, mas também tempo pois cada página de roteiro vai ser trabalhada quatro vezes: esboço, lápis, arte-final, e cores. Passa por vários exemplos, e menciona um roteiro que recebeu com um trecho específico desnecessariamente muito longo: “Será que uma sequência de quatro páginas contando um sonho vale mil e duzentos dólares?”, ponderou. Foi possível reduzir para duas.

Outra preocupação de Velentzas é com a verborragia das falas e recordatórios, pois “visualmente, balões de diálogos são grandes áreas brancas que interferem na arte”. Embora cada caso seja sempre um caso, recomenda não usar mais de 15 palavras (em inglês) por balão, e não mais de três balões por requadro. Ela cita como um bom exemplo o post Comic Script Basics do designer e letreirista de quadrinhos Nate Pieko, recomenda o livro Filth & Grammar: The Comic Book Editor's Secret Handbook, de Shelly Bond — que, entre outras coisas, editou Sandman e foi vice-presidente da Vertigo —, e estimula o uso de tabelas que permitem a rápida visualização do número de páginas e de quadros por página (bem como uma coluna com uma única frase que resuma seu conteúdo).

Respondendo a perguntas da plateia, disse que não quer receber HQs prontas, finalizadas, preferindo um roteiro bem estruturado que permita ao editor a possibilidade de mudanças, em prol do produto final, junto ao roteirista. Ao invés de gastar meses desenhando uma HQ que não sabe se será aceita, Velentzas sugere que o roteirista proponha um roteiro, com duas ou três páginas de arte (se a intenção é também ser o ilustrador), mas sem apego excessivo — até porque a editora pode preferir passar a incumbência da arte para outro desenhista. “Se você não tem um histórico conhecido no mercado, não tenho como saber se você cumpre prazos, é alguém fácil para se trabalhar ou se aquelas páginas de amostras de arte levaram seis meses para serem feitas”.

Vários tópicos sobre pitches e a construção de uma relação de trabalho entre quadrinistas e editoras abordados por Valentzas foram complementador pela veterana Peggy Burns, publisher da renomada editora canadense de quadrinhos Drawn & Quarterly, tanto na mesa redonda sobre o mercado local de editoras independentes quanto em sua palestra sobre contratos e direitos de autor.

A editora Peggy Burns falando sobre contratos e debatendo o mercado independente.

Na conversa com editores das independentes Renegade Arts Entertainment, Conundrum Press e Silver Sprocket, ela deixou bem claro como a D&Q avalia as HQs para publicação: lendo as próprias HQs. “Não queremos seu pitch, não queremos ler resenhas sobre seu trabalho!, diz ela. Mostre-nos, ou mande-nos, seus PDFs, seus zines, o que for! Publicamos muitas submissions, mas precisamos ver o trabalho pronto, para ver se encaixa em algum projeto nosso”. Uma dica que ela deu que foi consenso entre os integrantes da mesa é pesquisar bem o catálogo da editora da qual o quadrinista pretende se aproximar: “Familiarize-se com o que ela publica, quem são as pessoas que trabalham lá. Uma das coisas boas do TCAF, inclusive, é isso: toda minha equipe está aqui, estamos rodando e olhando o que está sendo produzido”. Outra dica foi publicar em antologias, por ser mais fácil para o trabalho chegar aos olhos de uma editora, e para que vejam “se você sabe fazer [quadrinhos] direito”.

Durante sua generosa palestra, Burns foi desde o primeiro contrato da D&Q, há 35 anos, com a quadrinista Julie Doucet (“costumava ser um aperto de mãos sobre a máquina de xerox para registrar o acordo”) até acréscimos recentes (como a necessidade de se atualizar o endereço do quadrinista por motivos de imposto) e outros pontos que foram surgindo no meio do caminho: “Se não incluíssemos que o autor tem a palavra final sobre a capa do livro ninguém iria querer assinar conosco!”, argumenta.

Além de descrever o processo de trabalho a partir do momento que o quadrinista assina o contrato com a editora, ela explicou em minúcias que direitos são cedidos (em relação ao idioma e aos locais de venda, por exemplo), como é pago o adiantamento, a importância da existência de cláusula de término se uma das partes não estiver fazendo sua parte, e os diferentes tipos de royalties pagos aos autores. Para ela, o quadrinista nunca deveria aceitar menos de 6% do preço de capa, e se este valor for fixo, não é um bom sinal: na D&Q os royalties estão contratualmente atrelados a cada edição, e o percentual aumenta gradualmente a cada nova tiragem, sendo, em média de 8% a 14%. “Sim, com o tempo o autor ganha mais que a editora”, explicando que valor líquido que fica para a editora costuma ser em torno de 12%. Nesse sentido, ela recomenda atenção, por exemplo, com a data de lançamento das edições em diferentes acabamentos. Se o livro, geralmente lançado em capa dura, já estiver a caminho de render um percentual maior para o autor, publicar uma nova edição em capa flexível poucos meses depois pode prejudicar o retorno financeiro que o autor teria.

Convivendo com a produção local, os catálogos internacionais da Fantagraphics e da New York Review Comics.

Ainda nos meandros financeiros, Burns explicou os motivos dos royalties pagos diminuírem quando o título é vendido nos EUA, como a D&Q pratica percentuais sobre os direitos de publicação como e-books, em antologias, em edições com objetivos educativos e edições estrangeiras. “E nunca, nunca, ceda os direitos para filme e tv”, enfatiza. Uma editora, ou um agente literário, geralmente não possui contatos com a indústria audiovisual, então “não saberia direito o que fazer com aquilo. Você cederia seus direitos para alguém que não sabe o que fazer com seu trabalho?”, complementa.

Entre outros pontos que considera importantes, ressalta uma cláusula que explicite que o copyright é do autor — e que é obrigatório que esta informação esteja em todos os exemplares do livro, incluindo aquelas edições em outros idiomas que venham a ser negociadas — bem como outras sobre as quantidades mínimas obrigatórias de exemplares que a editora irá fornecer ao autor (a cada edição ou nova tiragem) e para a imprensa, antes do lançamento.

Por último, ela recomenda que se o quadrinista achar que precisa, sim, ele deve buscar um agente. Mas ela reforça que precisa ser um agente especializado em quadrinhos, que LEIA quadrinhos, principalmente da editora aonde você quer ser publicado. “Os tradicionais agentes literários não lêem quadrinhos. Editores [de quadrinhos] leem, por isso estamos aqui. Para eles, “Quadrinhos” é um gênero!”, afirma. Ela recomendou dois links: Model Trade Book Contract para fazer seu próprio contrato, e An Author’s Guide to Agency Agreements para se contratar um agente.

TCAF no domingo pela manhã.

Outro aprendizado interessante sobre o mercado de editoras independentes canadenses foi ver como elas trabalham a distribuição de seus produtos além das livrarias. Isso inclui quadrinhos digitais, pois estão plenamente conscientes que existe uma geração que lê em tablet e não vai ler impresso. Outra estratégia é buscar pontos de venda como cafeterias, salões de tatuagem e sex shops em Nova York: “Não vamos entrar em 300 lojas, mas em vinte bons locais que farão a diferença para alguns de nossos títulos”, disse o editor da Silver Sprocket. “Aliás, qualquer um de vocês pode comprar diretamente das nossas editoras! Basta entrar no site, se cadastrar como um negócio e comprar uma caixa de livros com 50% de desconto!”.

Outra apresentação direcionada para o lado de negócios dos quadrinistas foi a do presidente da plataforma canadense de financiamento coletivo Crowdfundr.ca, David Barach. Depois de apresentar motivos para se promover o crowdfunding de uma HQ e um passo-a-passo de uma campanha, ele recomendou algumas estratégias para se trabalhar o público que você conquistar. Para ele, a manutenção e ampliação desse público é fundamental para a continuidade da carreira de um profissional de quadrinhos.

Entre outras sugestões, está a de utilizar o sistema de envio das plataformas de financiamento coletivo para frequentemente enviar para os apoiadores algo que eles possam compartilhar com seus amigos — como uma HQ em PDF, por exemplo — que faça com que essas pessoas eventualmente também se interessem em seguir você. “Mas, recomenda ele, cultive o público, não a plataforma. Na descrição do projeto, bem como em todas as comunicações que fizer a partir da plataforma, sempre encaminhe o usuário para o seu site”. Isso vale tanto para a plataforma de financiamento como páginas em redes sociais. “Não fique refém delas”, adverte.

O programa do TCAF 2023 e David Barach dismistifcando o financiamento coletivo de quadrinhos no Canadá.

Alguns dados tirados das campanhas do Crowdfundr.ca podem ser específicos para o Canadá — como quinta-feira ser o melhor dia para se lançar uma campanha, e sexta-feira para terminar — mas me pareceram interessantes. Que o percentual de projetos bem sucedidos cresce com a inserção de imagens (sobe 21%) e de um vídeo (outros 13%) na campanha já era algo que imaginava, mas achei interessante descobrir que as campanhas que publicaram três updates ganharam outros 33% de chance de serem bem sucedidos. “E se forem feitos 4 updates?”, alguém perguntou. Aí já não faz diferença, foi a resposta.

Ao invés de uma certa mística natural sobre os trabalhos apresentados vistas em palestras e mesas voltadas ao grande público, o clima visto na Word Balloon Academy foi de total cumplicidade e de egos zerados: todos estavam ali para se ajudar, e nenhuma pergunta era deixada sem uma resposta clara. “Nosso tempo acabou mas estou disponível aqui no canto da sala para quem quiser tirar alguma dúvida ou fazer uma pergunta específica” era a frase final de todos os palestrantes. E diferente da perspectiva de negócios que observei em festivais europeus, onde é mais comum se ter representantes de editoras negociando licenciamento de títulos entre si ou sessões de análise de portfólio por editores, aqui a tônica é o fortalecimento do quadrinista como profissional, para que a cena toda se torne mais profícua e eficaz — e efetivamente uma indústria consistente. Esse tipo de iniciativa, aliás, seria extremamente benéfica se incorporada aos eventos brasileiros de quadrinhos.

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