Paralelas - Vingadores e Liga da Justiça: Crise Secreta
/por Marcos Maciel de Almeida
A sessão Paralelas da Raio Laser surgiu com o objetivo de comparar gibis, possuidores ou não de alguma conexão. Os escolhidos da vez são duas minisséries. A primeira mostra o confronto da Liga da Justiça contra a Sociedade Secreta de Supervilões, publicada em JLA #195-197 (1981). A segunda é a famosa Saga de Korvac, também conhecida pelo nada atraente nome de Saga de Michael, lançada em Avengers #167-168 e 170-177 (1978). A ideia aqui é tentar entender o que rolava nas revistas dos principais supergrupos DC/Marvel no final da década de 1970, estabelecendo pontos de convergência e divergência. Detalhe que não pode ser negligenciado é o fato de que ambos os títulos eram desenhados por aquele que é considerado o papa dos gibis com superequipes, ninguém menos que George – me gustán camisas havaianas – Pérez.
O contexto da época, na Marvel, envolve a ascensão do garoto problema Jim Shooter ao posto de Editor-Chefe. Dotado de perfil executivo e não particularmente afeito ao desejo de agradar a maioria, o novo manda-chuva tinha postura crescentemente autoritária, que muito contribuiu para atrair para si a ira da maior parte do staff da editora.
Segundo Sean Howe, autor de Marvel Comics - A História Secreta, a fase de Shooter como escritor dos Vingadores servia como um manifesto do que deveria ser o gibi Marvel ideal: muito bate-papo e quadros de tamanho pequeno/médio que enfocariam nos uniformes coloridos, além de um ritmo frenético alternando entre aventura e humor.
Tendo assumido o título dos Vingadores no número 156, Shooter foi responsável por uma fase considerada interessante na história dos heróis mais poderosos da Terra. Foi no seu “run” que conhecemos o agente especial do governo Peter Gyrich (talvez um alter-ego de Shooter, dada sua propensão por controle e antipatia natural) e a noiva robótica de Ultron, Jocasta. Considera-se, entretanto, o ápice desse período a chamada Saga de Korvac. A história, que se arrasta por longos dez números, mostra os Vingadores, auxiliados pelos Guardiões da Galáxia, enfrentando Michael Korvac, um humano do futuro que se tornou um dos seres mais poderosos do universo após ser transformado pela tecnologia de Galactus. Eu tinha boas lembranças da série, desde quando a li pela primeira vez pela Editora Abril. Mas, como diria um amigo meu, às vezes a gente confunde memória afetiva com memória afetada. Revisitar o material depois de velho não foi bacana.
A história não é, convenhamos, envolvente. O jogo de gato e rato entre Korvac e os Vingadores é lento e não chega a empolgar. As motivações de Korvac, para muitos um Deus bem-intencionado, não são convincentes. Ele dizia que queria remodelar o universo para torná-lo mais livre, mas não move uma palha para fazer algo nesse sentido, preferindo ficar olhando para o teto e desfilando de shortinho pela casa durante o decorrer da trama.
A mini da Liga da Justiça também não possui maiores aspirações intelectuais além do entretenimento puro e simples, mas diverte bem mais, dada a sua despretensão. Enquanto o gibi da Marvel busca uma suposta seriedade ao debater o direito à vida de um ser quase divino que buscava uma “terceira via”, o da DC preza pela zoeira. Senão vejamos. O plano do malvado Ultrahumanóide, um dos meus vilões favoritos pelo fato de ser um cérebro avantajado transportado para o corpo de um gorila albino, é eliminar todos os super-heróis da Terra 2. Mas como fazer isso? Segundo seus cálculos, bastaria retirar de circulação cinco heróis da Terra 1 e outros cinco da Terra 2 que o universo, para fins de retornar ao equilíbrio, automaticamente apagaria da existência todos os benfeitores da Terra 2. Trata-se de uma trama ridícula e inverossímil? Sim, mas é exatamente o que buscamos num gibi de supers nas tardes solitárias de segunda-feira. Já escrevendo a JLA há pelo menos três anos, o prolífico argumentista Gerry Conway sabia costurar boas tramas sem abrir mão de elementos nonsense. O gibi satisfaz ainda por apresentar diversos personagens lado B do universo pré-crise. Gente fina, elegante e sincera como Signalman e Rag Doll. Delícia.
Claro que o gibi da Marvel também tem espaço para sandices, como no momento em que os Vingadores têm de descolar um busão no meio da rua para poder chegar na casa do vilão. Trash sem ser vulgar.
Cria da Marvel, Conway estava se saindo bem ao seguir a cartilha que os executivos da DC apregoavam: tentar “marvelizar” a editora do Superman para que ela tentasse estancar a sangria relativa à sua perda de mercado provocada pelo crescimento acelerado de sua rival. Assim, Conway tentou colocar uma narrativa mais dinâmica nas histórias, aumentando a interação entre os personagens, que deveriam se mostrar mais humanos e falíveis. A descida do pedestal dos seres quase divinos da DC era essencial para que houvesse maior identificação com os leitores. Efeito claro dessa política foi a progressiva alteração nas vozes narrativas de cada personagem, deixando para trás os tempos em que os balões de fala entre os heróis podiam ser trocados sem maiores prejuízos. Por meio destes artifícios, Conway conseguiu tornar os heróis do Universo DC seres humanos mais palatáveis, conferindo-lhes maior tridimensionalidade. Conway também mostrou-se fiel discípulo do método Shooter de fazer quadrinhos: ritmo vertiginoso, alternância entre tensão e humor e grande atenção a aspectos estéticos, como a mise-en-scène.
Já o próprio Shooter se via às voltas com devaneios de outra natureza. Segundo Sean Howe, o chefão da Marvel tinha por hábito inserir nas tramas um tema recorrente: divindades perseguidas, como Korvac. Em Avengers 175, o vilão é descrito como alguém “capaz de fazer sutis alterações na realidade, gradualmente tomando controle e corrigindo o caos, curando a injustiça que a civilização tinha acumulado sobre um universo em frangalhos”. Quando os Vingadores caem para cima do sujeito ele afirma: “Eu sou um Deus! E eu seria seu salvador”. Se outros enxergavam nesse discurso a megalomania de Shooter, o autor via apenas um herói acuado cujo único defeito era querer trazer ordem para a galáxia.
A arte de Pérez em ambos títulos, como sempre, está um desbunde. Para além das cenas de confrontos épicos que o norte-americano faz com maestria, existem cenas de pura lisergia, como aquelas dedicadas ao Pirata Psíquico e ao confronto multidimensional entre Korvac e Águia Estelar. A disposição dos quadros, embora convencional, abriga imagens com angulações vertiginosas e incomuns, conferindo grandiosidade às páginas. Coisa fina.
Produzidas na antessala da era da desconstrução do gênero super-heroístico, os gibis da Liga e dos Vingadores divertiam ao exibir os últimos vestígios da inocência que seria para sempre chacoalhada com a chegada das obras seminais de Alan Moore, Frank Miller e outros. Vistos em retrospecto, são o retrato fiel de uma época em que a DC começava a acordar para o perigoso crescimento da Marvel, que abocanhava – talvez de forma irrefreável – a maior parte do market share. A “marvelização” da DC também se mostraria tendência irreversível que acompanharia – em maior ou menor medida – a editora de Superman e Batman por anos a fio. Revisitar este material vale a pena – além de motivos relativos à curiosidade mórbida – como registro do zeitgeist de uma época em que a ingenuidade do gênero dos super-heróis estava prestes a ser esmagada, com efeitos nefastos para a indústria como um todo. Tudo isso cortesia de uma série de autores que fez uma leitura equivocada das obras icônicas dos anos de 1980. Mas essa é outra história.
Referências
TUCKER, Reed. Pancadaria: por dentro do épico conflito Marvel vs DC. Fábrica 231, 2018.
HOWE, Sean. Marvel Comics: The Untold Story. Harper Perennial, 2013.