Introdução ao novo quadrinho autoral chileno!
/por Marcão Maciel
Em 2020 publiquei AQUI uma pequena listagem de jovens autores italianos nos quais recomendava prestar atenção. Pensei em repetir a dose, desta vez falando de nomes interessantes do quadrinho chileno que por algum motivo ou por outro ainda não receberam o devido reconhecimento. Por critérios de escolha, retirei da lista artistas mais identificados com publicações de cunho humorístico e privilegiei quadrinistas com trabalho autoral.
Encontrar o quadrinho autoral chileno nem sempre é tarefa simples. Claro que quadrinistas de renome como Félix Vega, Francisco Ortega e Gonzalo Martinez têm seus espaços reservados nas livrarias da grande Santiago e arredores. Editoras como Planeta Cómic e Reservoir Books também investem nestes nomes conhecidos, aumentando sua difusão pelos espaços culturais da cidade. Outro fator de dificuldade na busca era que não bastava que o quadrinho fosse autoral, mas também teria de ser, se possível, independente: publicado sem apoio de grandes editoras e baseado primordialmente na liberdade do autor. Em outras palavras, procurava publicações que retratassem escolhas pessoais dos autores sem o controle rigoroso de editores que poderiam tentar domar a visão artística para que ela se adaptasse a um gosto médio e, assim, se mostrasse mais palatável para públicos maiores.
Talvez eu não tenha tido muita competência para encontrar grande variedade de autores, mas o fato é que depois de bater perna pelos principais pontos de revenda de livros e graphic novels, o que percebi foi uma espécie de padronização nos nomes dos artistas e dos assuntos apresentados. Isto ocorre mesmo em livrarias alternativas. Tudo bem. Todos temos contas a pagar e o trabalho com produtos culturais costuma ser movido mais por idealismo que retorno financeiro. Por isso não serei eu a apontar dedos para livreiros avessos a risco. Tampouco tive sucesso nas comic shops, que no Chile são totalmente direcionadas para super-heróis e mangá. Minhas visitas a este tipo de estabelecimento quase sempre beiraram o tragicômico, já que quando perguntava sobre autores locais os vendedores me olhavam como se fosse alienígena.
Outro complicador era encontrar quadrinhos que fugissem do ideário ditadura chilena e seus participantes, como Augusto Pinochet, Salvador Allende e Victor Jara, deixando claro que não quero menosprezar os acontecimentos iniciados em setembro de 1973, que moldaram o Chile moderno. Eu mesmo já escrevi a respeito AQUI. Meu ponto é que gostaria bastante de ver quadrinhos que falassem de outras temáticas, como ficção científica, terror, história dos povos originários, geografia, quotidiano urbano de Santiago, narrativas de caráter pessoal e etc.
Lentamente, consegui garimpar uma coisinha aqui e outra ali. Felizmente Santiago é uma cidade rica em espaços dedicados a cultura e sempre é possível encontrar algum título diferente nos lugares mais improváveis. As feiras de quadrinhos também ajudaram bastante. Uma pena que não consegui ir em tantas delas, mas pretendo corrigir isso.
@catalinabu
Nascida em Concepción, em 1989, Catalina Bu é uma quadrinista com certo renome internacional e conta com expressivo número de seguidores nas redes sociais. Talvez não se encaixe exatamente no perfil de artista independente que defini acima. Entretanto, o fato de estar ausente das principais livrarias de seu próprio país lhe confere certo caráter marginal que muito me interessa. Outro elemento de fascínio é seu estilo artístico, bastante original e peculiar. Em sua mais recente publicação de fôlego “Nadie como tu” (Fulgencio Pimentel, 2023), Catalina dá pistas das razões pelas quais tornou-se tão celebrada.
Contando histórias autobiográficas em tom confessional, Catalina aborda de forma leve temas como traumas de infância, solidão e luto. Tudo entremeado por passagens cômicas e surreais, nas quais a narradora aproveita para tirar um sarro de si mesma. A arte é um capítulo à parte, por ignorar propositadamente características supostamente desejáveis do desenho tradicional, como boa perspectiva e anatomia. O resultado é bastante funcional e eficaz para transmitir a mensagem desejada pela autora. “Nadie como tu” é um gibi de difícil descrição e um tanto enigmático. Talvez esse seja o melhor elogio que poderia tecer à obra e sua criadora.
Catalina não é inédita no Brasil. Sua obra de estreia, “Diário de um Só” foi publicada pela SESI-SP em 2019.
@esperanzagalaxy
A talentosa jovem quadrinista chilena Esperanza Galaxy publica quadrinhos que ressoam na mente dias após a leitura da última página. A autora não está para brincadeira e a temática de suas histórias apresenta grande diversidade de temas e variação de estilos artísticos. Em “Una Lección sobre el Buen Gusto”(2020), somos apresentados a uma dupla de faxineiras espaciais – especializadas em limpar cenas de suicídio – às voltas com um caso inesquecível, na pior acepção da palavra. Com uma coloração digital pesada, repleta de tons macabros, Esperanza lança seu libelo contra a banalização dos assassinatos e a apatia das pessoas diante da crescente contagem de corpos que se observa em várias partes do mundo. Gibi mais que atual em tempos de conflito Israel x Palestina.
Em “al otro lado del lago”(2021), Esperanza reproduz um sonho erótico bastante sensual com doses generosas de fantasia e surrealismo. Com um texto afiadíssimo, no limite entre a prosa e a poesia, destila um conto delicioso, que se aproxima e foge sorrateiramente como uma miragem. Se “Una Lección” é denso e escuro, “al outro lado” é leve e solar, sendo o ponto de contato das obras a habilidade de Esperanza em ilustrar magistralmente seja pesadelos de carnificina ou cenários idílicos de paixão ardente. É uma pena que a tiragem de cada edição de suas HQs seja de 50(!) exemplares. Mais gente merece conhecer seu trabalho.
@sofrenia
Mario Moreno Tapia (Sofrenia) é um dos autores chilenos que parece mais pronto para conseguir seu lugar ao sol. Talvez seja injusto chamá-lo de independente, já que saiu pela casa editorial Cafuné, de porte médio. Sofrenia já possui diversos trabalhos publicados, inclusive dois volumes da saga “Párangon”(de 2019), que será uma tetralogia. Os gibis são parrudinhos – cada um com mais de 100 páginas – e contam a epopeia de diversos povos nativos na luta pela sobrevivência num mundo ameaçado pela exploração indiscriminada de recursos naturais. Ilustrador de mão cheia, Sofrenia faz ecoar sua mensagem ecológica não panfletária num mundo mágico que mistura Senhor dos Anéis e Bone.
Mas talvez o ápice criativo de Sofrenia esteja na coleção ZooLos, esta sim independentezona truzeira. Aqui consegui enfim encontrar o que buscava no quadrinho autoral chileno: histórias sem amarras, viscerais e bem contadas. A publicação, no formato gibizine, mostra casos desconcertantes com animais antropomorfizados. A narrativa e o desfecho, sempre instigantes, brincam com temas demasiadamente humanos, como solidão, memória afetiva e luta por dignidade. Mesmo em poucas (16!) páginas, Sofrenia consegue transmitir tanta sensibilidade que deixaria muito marmanjo fã de Blacksad miando mais que gato pedindo leite. Tomara que Sofrenia lance mais números de ZooLos – por enquanto já são seis – e alguma editora brasileira anime em publicar o compilado.
@tomascisternas
Tomás Cisternas nasceu em Rancagua em 1983. Sempre envolvido com indústrias criativas, já trabalhou como redator publicitário, diretor de criação e professor em oficinas de aquarela. Tomei contato com seu trabalho por meio de “Gafas” (Reservoir Books, 2019), um livro onipresente nas livrarias de Santiago. Tomás tem aquilo que mais me interessa quando procuro por obras de novos autores: narrativas em que somos apresentados a suas imperfeições enquanto seres humanos. Histórias em que o autor se expõe, mostrando medos, angústias e perversões como quem oferece ao leitor um prato de comida.
Gafas é uma antologia de nove histórias que se passam no microverso em placa de Petri criado pelo autor. Os personagens que por ali perambulam são cuidadosamente esmiuçados em suas falhas e contradições pela lente fria do microscópio de Cisternas, divindade máxima dessa dimensão. Esta análise sobre o indivíduo e suas escolhas remete a reflexões sobre a vida contemporânea, arrependimentos e inevitabilidade dos fatos. É uma realidade no melhor estilo Black Mirror em que a fonte dos males não é a tecnologia, mas o horror advindo do viver em sociedade. Destaque especial para a história “Piso 17”, na qual descobrimos/confirmamos que a solidão é a única companheira com quem podemos contar em todos os momentos.
No autopublicado “Gris Verde vol.3” (2021), Cisternas mostra histórias mais autocontemplativas e biográficas, não menos interessantes que as anteriores. Nesta obra, o autor abre espaço para suas obsessões pessoais, como discos voadores, a vida no campo e memórias dos tempos de infância. Salta aos olhos sua técnica de desenho, na qual o preenchimento dos pretos já forma o desenho em si.
No Brasil é comum repetir que “quem procura, acha”. Isso também foi verdade para mim na pátria de Pablo Neruda. Seguirei lutando o bom combate para encontrar a novos quadrinistas locais e quizás não farei uma parte dois deste texto. A caça pelo quadrinho chileno autoral é árdua, mas vale a pena. Bem-aventurados serão aqueles que não desistirem no meio do caminho, porque o próximo bom quadrinho pode estar bem à vista na vitrine do shopping ou escondido na sua livraria de bairro. E se a busca for infrutífera, não há problema, afinal já dizia o bom e velho Lemmy Kilmister: “The chase is better than the catch”.