Momento bizarro da HQ: Homem-Aranha na Bloch Infanto Juvenil
/Por Marcão Maciel
Entre 1975 e 1979, o Homem-Aranha foi publicado no Brasil pela Bloch Infanto Juvenil, braço da Bloch Editores, por sua vez parte do poderoso conglomerado de mídia Grupo Bloch, que envolvia concessões de rádio, TV e publicações diversas, como as famosas revistas Manchete e Ele & Ela. O gibi do amigão da vizinhança durou 33 edições e – embora tenha feito bastante sucesso – para mim será sempre lembrado como um dos momentos mais surreais das HQs no Brasil. Erros de revisão, traduções malucas e escolhas editoriais equivocadas resultaram numa receita indigesta que até hoje provoca arrepios em quem opta por (re)ler o material. A editora também publicou outros títulos da Marvel e de outras grandes norte-americanas, mantendo um padrão de qualidade – no mínimo – questionável. Por razões de falta de tempo, optei por falar apenas das edições do Homem-Aranha a que tive acesso. Não foi uma experiência agradável. Para que tenham ideia do que estou falando, cheguei a sentir saudade do formatinho da Abril.
Em média, um gibi norte-americano possui 22 páginas. O do Homem-Aranha da Bloch continha 3 histórias e 68 páginas. Não é preciso ser nenhum gênio da matemática para perceber que o gibi brazuca tinha muitas páginas cortadas, já que o produto nacional tinha anúncios, seção de cartas e páginas de cunho cívico, como as dedicadas ao Capitão Aza, herói da Aeronáutica, que servia para agradar as sensibilidades dos milicos de plantão. Eram os tempos da Ditadura e era necessário pagar o dízimo para os milicos, já demonstrava Silvio Santos com a sua “Semana do Presidente”, momento mais modorrento dos domingos no SBT.
As mutilações das edições originais não eram restristas às páginas, claro. Balões de fala sumiam sem deixar vestígio e até mesmo o falante Homem-Aranha parecia estranhamente taciturno. A quantidade de cortes era tão grande que comprometia a compreensão da história. Personagens surgiam repentinamente, apenas para desaparecer sem explicações nas páginas seguintes. Os remendos nos diálogos e na arte eram simplesmente canhestros e transformavam a trama numa colcha de retalhos ininteligível, desprovida de qualquer lógica. Já os erros de revisão eram inadmissíveis e seriam motivo para demissão por justa causa em qualquer empresa minimamente séria.
As escolhas editoriais provocavam mais calafrios que os planos econômicos dos anos de 1980. Peter Parker e Mary Jane de cabelos azuis(!), Capitão Stacy e JJ Jameson com madeixas loiras, Abutre com o uniforme marrom… Juro que gostaria de entender o que acontecia na redação da Bloch naqueles tempos. Pelo visto a droga era das boas.
Certamente a filosofia “flower-power” da época comandava os corações e mentes da equipe editorial, fato evidenciado pelas geniais e “hors-concours” traduções utilizadas. Era um festival de aburdos, ops, absurdos tão grande que conquistava pelo fato de ser tão nonsense quanto cômico. Nada contra – muito pelo contrário – com os tempos do amor livre, mas precisava colocar a palavra “transa” a cada duas páginas? Às vezes penso que tudo foi obra de um grupo de funcionários que – em razão dos baixos salários – resolveu ao menos ter um pouco de diversão no trabalho, tentando encaixar nas bocas dos personagens as gírias mais estapafúrdias que pudessem bolar.
Jamais na história da tradução dos quadrinhos mundiais uma página conseguiu chegar aos pés da que veremos abaixo – publicada na edição 33 de Homem-Aranha –, merecedora de emolduramento. Coincidência ou não, foi o último número da revista. Talvez já sabedores do final irreversível do gibi, os tradutores tenham botado pra quebrar, celebrando um canto de cisne temperado com a maior quantidade possível de deboche e escárnio. No duelo entre Aranha e Viúva Negra, a recém convertida heroína chega mandando um: “Já vi que você é de fritar bolinho, Cabeça de Teia!”. Não satisfeita, emenda com: “Dizem que você faz e acontece. Eu queria curtir a tua jogada”. O fechamento não poderia ser mais sensacional: “O Homem-Aranha é a maior pilhéria!”. Para não ficar por baixo, nosso herói responde com: “Segura a barra, maninha!”. Difícil imaginar diálogo mais memorável em toda a trajetória da Marvel e DC no Brasil. Se não tivesse a revista em questão, também duvidaria que isso aconteceu, mas segue a prova do crime.
O sentimento que fica em relação ao trabalho da Bloch é ambíguo. Por um lado é nítido o desleixo por parte dos editores. Por outro, a ousadia dos tradutores que optaram por criar diálogos tão doidões não deve ser menosprezada. Críticos diriam que estou esperando demais de um produto feito para ser descartável, especialmente em meados dos anos 70. Pode até ser, mas acho que os personagens da Casa das Ideias poderiam ter recebido mais carinho no país dos “90 milhões em ação, pra frente Brasil, salve a Seleção!”.