LASERCAST #54: A INTERNACIONALIZAÇÃO DO QUADRINHO BRASILEIRO
/O projeto Brasil em Quadrinhos, iniciativa promovida desde 2019 pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) em parceria com a Bienal de Quadrinhos de Curitiba, vem obtendo resultados inéditos e avanços promissores na divulgação de autores e HQs nacionais, conectando quadrinistas, editoras, dinamizadores culturais e festivais internacionais nas Américas, África, Ásia e Europa. Adentrando seu quinto ano de existência, o projeto tem articulado exposições, co-publicações, encontros comerciais e a distribuição de catálogos — em Português, Inglês, Francês e Espanhol — reunindo mais de uma centena de autores e obras em quadrinhos nacionais produzidas na última década em diversos gêneros, estilos e linguagens.
Recém chegados de uma histórica participação na também histórica 50ª edição do Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, na França, a coordenadora de projetos da Bienal e do projeto Brasil em Quadrinhos do MRE, Luciana Falcon, e o jornalista, tradutor e curador dos catálogos Brasil em Quadrinhos, Érico Assis, conversaram conosco sobre os esforços de internacionalização do Quadrinho Brasileiro, políticas públicas, auto-censura, o papel das editoras brasileiras, e as estratégias traçadas para que leitores de comics, bande dessinée e historietas passem a ler também histórias em quadrinhos.
Participaram do episódio: Pedro Brandt, Bruno Porto, Marcão Maciel, Márcio Júnior e os convidados Érico Assis e Luciana Falcon.
Edição: Eder Freire.
Disponível em: SPOTIFY, APPLE PODCASTS, GOOGLE PODCASTS, CASTBOX, ANCHOR, BREAKER, RADIOPUBLIC, POCKET CASTS, OVERCAST, DEEZER
Uma combinação de produção nacional — original, influenciada ou mesmo reapropriada — e reedição estrangeira — ininterrupta e principalmente de origem estadunidense — tem se mostrado presente em todas as etapas da formação do mercado brasileiro de histórias em quadrinhos. Embora a vasta produção estrangeira tenha sido reiteradamente acolhida no país ao longo do século passado, o contrário raramente aconteceu. Até o final dos anos 1980, a presença no exterior de histórias em quadrinhos produzidas por brasileiros foi dispersa e em grande parte resultado de esforços individuais.
Por ocasião deste episódio do Lasercast, registramos a seguir alguns marcos dos percursos além-fronteiras do nossos quadrinhos, dos anos 1940 até 1986, quando acontece a ida de uma delegação de quadrinistas brasileiros justamente ao 13º Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême. Embora não tenha sido ali que o mundo descobriu a totalidade da nossa produção quadrinística, a verdade é que a partir dos anos 1990 o passaporte do Quadrinho Brasileiro tem sido carimbado com cada vez mais frequência — história essa que, aliás, também precisa ser contada. (BP)
Lançada no suplemento de quadrinhos do jornal paulistano A Gazeta, a tira policial A Garra Cinzenta (1937-1939), de Francisco Armond e Renato Silva (1904-1981) é publicada entre 1944-1947 na revista belga Le Moustique, traduzida como La Griffe Grise. Aparentemente, havia a noção de que a HQ seria mexicana, pelo personagem título usar uma máscara de caveira que remetia ao Dia de los Muertos.
O gaúcho João Batista Mottini (1923-1990) atua entre 1946-1962 no mercado argentino de historietas (bem como de ilustração editorial e publicitária) desenvolvendo HQs de Aventura, Policial, Humor e Faroeste — como Aurelio El Audaz, Ellos, Quintín Duvall, Aventuras de Bordón, Cruz Calavera e Cara de Tigre, além de quadrinização de obras literárias — em títulos como Patoruzito, Patoruzú e Suceso. A partir do final dos anos 1950, produz também HQs de Guerra e Faroeste — como Guerilleros e Buck Jones — para revistas inglesas e livros de bolso franceses.
A distribuidora de tiras estrangeiras APLA - Agência Periodista Latino-Americana leva à Argentina, Chile e México a tira de Aventura Morena Flor (1948-1951), criação do quadrinista haitiano André LeBlanc (1921-1998) para o jornal carioca Diário da Noite durante o período em que o autor viveu em Niterói, entre 1944-1956.
Tendo atuado desde a década de 1940 em editoras como RGE (ao lado de Flávio Colin, Benício, Edmundo Rodrigues e Primaggio Mantovi, entre outros), EBAL (onde quadrinizou o romance A Moreninha), Outubro (com HQs de Terror) e Garimar (onde quadrinizou aventuras do seriado da Tv Tupi O Falcão Negro), o mineiro Gutemberg Monteiro (1916-2012), muda-se em 1964 para os EUA para ghost-desenhar capas e tiras de Batman e Fantasma, HQs de terror da Warren, gibis de Brasinha e Gasparzinho e, assinando como Goott, as páginas dominicais de Tom & Jerry.
As décadas de 1960-1970 registram tímidas publicações no exterior de três grandes referências nacionais. A partir de 1966, Mauricio de Sousa arrisca os primeiros passos para a publicação e o licenciamento internacional de seus personagens, passando a frequentar o Festival de Lucca, na Itália, e indo ao Japão e Estados Unidos. Dezesseis números de Fratz & Freunde (Cebolinha e amigos, Alemanha) são publicados entre 1975-1979, três números de Frizz & Friends (novamente Cebolinha e amigos, Inglaterra) por volta de 1975, e oito números de Glada Gänget (Turma Feliz, Suécia), Jeppe og Gjengen (Cebolinha e sua turma, Noruega) e Pløkkerne (Os Estacas, Dinamarca) entre 1977-1978.
Já contando com certo prestígio como ilustrador e cartazista entre sofisticadas revistas europeias como a suíça Graphis e a francesa Plexus, Ziraldo chega a publicar cartuns em uma edição da estadunidense MAD Magazine em 1967. Na época que morou em Nova York, entre 1973-1975, Henfil (1944-1988) tem sua tira Os Fradinhos (rebatizada como The Mad Monks) distribuída pelo Universal Press Syndicate em jornais dos EUA e Canadá durante poucos meses.
No extremo oposto deste panorama, há quadrinistas brasileiros ainda praticamente desconhecidos no país — como o paulistano Wilson Vieira, o mineiro Sergio Macedo, o carioca Luis Eduardo Oliveira (que assina LEO) e o pernambucano Jô Oliveira — que publicam efusiavamente na Europa a partir dos anos 1970.
Wilson Vieira foi o primeiro desenhista brasileiro a trabalhar para a italiana Sergio Bonelli Editore, nos anos em que viveu na Itália, entre 1973-1980. Neste período, desenhou HQs de Faroeste, Aventura e Super-Herói, entre outros gêneros, publicadas em revistas como Kiwi, Amok, Pecos Bill, Il Monello, Intrepido, Diabolik, Tarzan, Dusty e Collana Telefumetto. Mesmo após retornar ao Brasil, onde continuou trabalhando como desenhista e roteirista de quadrinhos, seus trabalhos continuaram a sair em revistas como Collana Cow-boy.
Radicado na França entre 1974-1982 — e desde então na Polinésia Francesa — Sergio Macedo tem ilustrações e quadrinhos em dezenas de revistas europeias (Galaxie, Horizons du Fantastique, Actuel, Circus, Métal Hurlant, Neutron, Horizon du Fantastique, SexBulles, Pilote, Totem, entre outras), além de diversos álbuns de Ficção Científica e de temáticas indígenas e esotéricas premiados na Europa e Estados Unidos.
Também tendo emigrado para a França — onde encontra-se desde 1981 — o desenhista e roteirista LEO é outro que dedica-se com grande sucesso ao gênero da Ficção Científica, frequentemente incorporando a temática ambiental em suas HQs. Contabilizando mais de vinte séries diferentes de quadrinhos publicadas na Europa, um dos seus trabalhos mais recentes para o Brasil é a capa da antologia nacional de quadrinhos de Ficção Científica Intempol - Agora.
Outro nome cujo trabalho como quadrinista é mais reconhecido em países como Itália, Grécia e Argentina desde meados da década de 1970, é o do artista gráfico Jô Oliveira. Radicado em Brasília desde 1976 — após retornar de seus estudos em comunicação e artes gráficas na Hungria, onde ficou entre 1969-1975 — foi um dos realizadores da primeira revista em quadrinhos da cidade, a Risco. No ano passado, Jô nos concedeu uma longa entrevista falando sobre sua carreira, sua experiência internacional e o que ainda está guardado à espera de publicação: é o Lasercast #42, chamado Jô Oliveira: Do Cordel ao Cangaço.
Nesse período, a maior singularidade dos aparentemente incompatíveis mercados brasileiro e europeu cabe ao franco-brasileiro Alain Voss (1946-2011). Tendo ilustrado diversas capas de discos — de coletâneas de rock para a gravadora Polydor até os seminais LPs Jardim Elétrico e Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets dos Mutantes— e algumas HQs publicadas por pequenas editoras, Voss estabelece-se na França entre 1972-1981. Lá, continua a trabalhar para o mercado fonográfico e passa a colaborar com as revistas Métal Hurlant, Mormoil e Charlie. Tem também álbuns editados pela Les Humanoïdes Associés, incluindo Adrénaline, vencedor do Grand Prix no Festival d'Aix-en-Provence em 1982. No seu retorno ao Brasil, continua a publicar esporadicamente na Europa, em meio a trabalhos de ilustração editorial e eventuais colaborações com efêmeras antologias nacionais de quadrinhos. Voss é bastante lembrado no episódio #8 do Lasercast entitulado Histórias em Quadrinhos e Rock'n Roll.
Em 1986, a 13ª edição do Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême recebe uma delegação composta por Ziraldo, Mauricio de Sousa, Jô Oliveira, Laerte, Angeli, Luiz Gê, os irmãos Chico e Paulo Caruso, um jovem Mike Deodato (ainda assinando como Deodato Filho, mas já havendo publicado na alemã Schwermetall) e o jornalista Ricky Goodwin, então na diretoria do Instituto de Artes Gráficas da FUNARTE. Realizada a reboque da visita do ministro da cultura francês Jack Lang ao Brasil no ano anteiror, a iniciativa foi promovida pela FUNARTE em parceria com a Associação Cultura Franco-Brasileira Tico-Tico, “uma ONG formada por jornalistas brasileiros e franceses fanáticos pelos quadrinhos brasileiros”, conta Ricky Goodwin, com apoio da Varig. Um texto do editor e cartunista Ota (1954-2021) publicado no Jornal do Brasil dois dias antes do início do evento lista ainda diversas exposições que seriam realizadas no festival, apresentando a produção dos quadrinistas presentes e de outros como Henfil, Flávio Colin, Edgar Vasques e Santiago, bem como as publicações O Tico-Tico, Pererê, O Bicho e Balão, entre outras.
Segundo Ricky, esta viagem — que em seguida se estendeu ao IX Congresso Internacional de Quadrinhos e do Fantástico, na Itália, acrescida de Vasques e Santiago — rende publicação de alguns trabalhos de Angeli, Luiz Gê, Jô Oliveira e Paulo Caruso, além de Mauricio de Sousa, que badalava seu Pelezinho por conta da Copa do Mundo daquele ano no México. “Houve ainda uma exposição de quadrinhos brasileiros em Paris, na virada de 1986 pra 1987, e a realização no Brasil da Quadrinhoteca 86, com a participação de artistas brasileiros e franceses, como Jacques de Loustal e Jacques Tardi”, evento que, relata ele, foi um embrião das Bienais Internacionais de Quadrinhos do Rio de Janeiro de 1991 e 1993.
Referências:
- Três artistas e um único caminho, por Rodolfo Zalla (Calafrio n° 26, 1985)
- Nossos quadrinhos vão a França, por Otacílio D’Assunção Barros (Jornal do Brasil, 22.01.1986)
- Entrevista com Sergio Macedo, por Humberto Yashima (Bigorna, 20.10.2007)
- Faleceu o quadrinhista brasileiro Gutemberg Monteiro, por Toni Rodrigues (Universo HQ, 14.12.2012)
- Entrevista com LEO, por Luiz Beira (BDBD, 19.01. 2014)
- Entrevista com Wilson Vieira, por Eduardo Baranowski (Diabolik O Rei do Terror, 19.06.2015)
- The legendary mutations of French comic artist Alain Voss (04.05.2018)
- Um pasmo radiante, por Benett (Plural, 30.07.2019)
- Dia do Desenhista: O Brasil na Bonelli!, por Ricardo Elesbão Alves (Confraria Bonelli, 15.04.2020)
- Um cartunista brasileiro em Nova York, por Marcelo Orozco (Século Pop, 23.09.2020)
- Circulações artísticas no Cone Sul: notas preliminares sobre João Mottini e o mercado argentino de quadrinhos durante a Guerra Fria (décadas de 1940 a 1960), por Ivan Lima Gomes e Leonardo Pires Nascimento (Caravelle #116, 2021)
- André LeBlanc na Comiclopedia Lambiek (atualizado em 24.09.2022)
- Mauricio & Companhia (Ucha Editorial, 2022)
Links mencionados no episódio:
Bienal de Quadrinhos de Curitiba
Raio Laser & Eurocomics no Festival de Lyon 2022
Raio Laser & Eurocomics no Festival de Angoulême 2022
Difusão do Português através das Histórias em Quadrinhos Brasileiras
Érico Assis no Festival de Angoulême 2023
Érico Assis no Lasercast #06 Quem critica os críticos?
Lasercast #42 Jô Oliveira: Do Cordel ao Cangaço