Imperdoável: Quando o Super-Homem roda a baiana
/por Marcos Maciel de Almeida
Uns dois anos atrás eu fiz uma comparação, na seção “Paralelas”, entre Imperdoável e Império, dois gibis do gênero super-herói escritos por Mark Waid. Tendo lido apenas os oito primeiros números de Imperdoável, decidir terminar a saga inteira esses dias (são trinta e sete edições) e acho que ainda tenho uma ou duas palavrinhas para dizer sobre essa história, que especula os acontecimentos de uma Terra em que o Super-Homem local perde as estribeiras e se torna inimigo público número um.
Mark Waid não é novato nos quadrinhos e se notabilizou por ser um escritor mais que competente. Foi ele o responsável por transformar Wally West num Flash decente, cimentando as bases para que o personagem se tornasse um dos portos seguros do Universo DC após o falecimento de Barry Allen. Também estão na conta de Waid a importante minissérie Reino do Amanhã, feita em parceria com Alex Ross, e uma fase muito interessante do Demolidor, desenhada por Chris Samnee. Típico exemplo do nerd que escolheu como profissão trabalhar com o que mais gosta, Waid usou seu conhecimento quase enciclopédico sobre super-heróis para desenvolver suas aptidões como escritor. Possui como características a habilidade para criar histórias envolventes e bem amarradas, bela construção de personagens e uma “leveza” que homenageia afetuosamente os comics da Eras de Ouro e Prata. Ninguém mais apropriado, portanto, para contar como seriam os acontecimentos que fariam o herói mais clássico de todos os tempos virar a casaca.
Para quem não sabe, Imperdoável narra o processo de transformação do Plutoniano, herói baseado no arquétipo do Super-Homem, de um sujeito pacato e boa-praça num facínora com requintes de sadismo, capaz de deixar qualquer Josef Mengele verde de inveja. A primeira edição já começa com um soco na boca do estômago ao mostrar o Plutoniano caçando um a um seus ex-colegas do grupo Paradigma, espécie de Liga da Justiça daquela realidade. A tensão resultante da sensação de “ninguém está salvo” é um dos pontos altos do gibi. Como fazer para conseguir escapar de um sujeito capaz de ouvir tudo e de te encontrar rapidamente em qualquer parte do mundo? É um jogo de gato e rato que nos faz acompanhar a perseguição de um ser quase divino a outros personagens bem mais humildes no tocante a superpoderes. Mal comparando, seria como assistir a um adolescente mal-intencionado tentando destruir um formigueiro, estando na ingrata posição de ter de torcer pelo bem-estar físico dos insetos.
Macaco velho das HQs, Waid sabe que uma boa história de super-heróis não se leva a sério. Desafiando as leis da física e da natureza, Waid lança mão de uma série de análises tão ridículas quanto divertidas. Exemplo disso é a explicação sobre a origem dos poderes do Plutoniano, que não derivam propriamente de seu corpo, mas de sua capacidade de alterar a realidade. Bem apropriada, portanto, é a pergunta de um dos personagens debruçado sobre a questão: porque um sujeito capaz de alterar as probabilidades e ver através do tempo estaria preocupado em prender ladrões de banco? Hilárias também são as participações do justiceiro Volt, inconformado com o fato de que normalmente os heróis negros só recebem poderes relacionados à manipulação da eletricidade. Tudo isso sem contar a revelação, no mínimo inusitada, do motivo da fixação do gênio criminoso Modeus (um equivalente do Lex Luthor) pelo Plutoniano.
Por meio de flashbacks podemos verificar como se deu o processo de “queda em desgraça” do Plutoniano. Nem mesmo o mais escoteiro dos heróis é capaz de aguentar encheção de saco em tempo integral. Ter a capacidade de escutar o que acontece em todo o mundo é uma aparente benção que se transforma em maldição no momento em que se percebe que os pedidos de socorro não cessam, afinal a humanidade está sempre numa situação de emergência infinita.
Com o sucesso da série Waid decidiu criar um título spin-off, chamado Incorruptível. O problema é que o personagem principal, um ex-vilão regenerado chamado Max Damage não convenceu ninguém. Sua participação é tão medíocre que ele nem chega a atuar nos capítulos decisivos. Aliás, suas aparições configuram o ponto baixo de Imperdoável, pois soam forçadas, dando a impressão de que o objetivo era somente surfar na onda da série principal.
Um dos grandes méritos de Waid é pensar fora da caixa. Sim, o gênero dos super-heróis transformou-se num deserto de ideias há muito tempo, mas Waid mostra que ainda existem boas histórias para ser contadas, fugindo do maniqueísmo modorrento de sempre. Ao apresentar um grupo de heróis desesperados tentando derrotar alguém que é invencível, Waid nos faz perceber, indiretamente, porque as histórias do Super-homem são normalmente tão tediosas quanto preencher a declaração anual do imposto de renda: não há desafio para ele. A graça estaria, na verdade, em imaginar meios para conseguir derrotá-lo.
Fenômeno não tão recente, os grandes estúdios perceberam que os quadrinhos são celeiro fértil para novas produções cinematográficas e televisivas. De olho nesse filão, os escritores sacaram que vale muito mais a pena fazer apenas o feijão com arroz na Marvel e DC e guardar a cereja do bolo para publicar em editoras que permitam que eles retenham os direitos sobre a obra. É o caso de Waid e seu Imperdoável, lançado pela Boom Studios! Dadas as cifras milionárias normalmente envolvidas nas vendas dos direitos de adaptação não é de se estranhar que cada vez mais autores recorram a esta alternativas. Alguém pode culpá-los?
Os cinco encadernados de Imperdoável foram publicados no Brasil pela Editora Devir entre 2018 e 2021. Não são a oitava maravilha do mundo, mas divertem.
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