Em memória de Athos Eichler Cardoso

por Oto Reifschneider

Em memória do amigo Athos, que nos deixou em 19 de dezembro, escrevo essas linhas. E por que motivo conto todas essas histórias, detalhes do que nos uniu e nos afastou? É que esses movimentos são a matéria própria da vida.

Foi pesquisando a bibliofilia no Brasil que estreitei os laços com um grupo de estudiosos que se reunia em frente ao Armazém do Livro Usado (em Brasília), do amigo livreiro Jorge Brito, aos sábados pela manhã. A prosa girava sempre em torno de livros e cultura, além da inexorável passagem do tempo. Eu era o mascote, imagino. Estava para completar meus 30 anos de idade, todos os demais nos seus 60/70 anos. Uma década depois, reclamariam de minha virada dos 40: nosso grupo já não tinha mais nenhum jovem! Essa questão da idade se repetia em nossas conversas, a conclusão sempre a mesma: a velhice pode ser ruim, mas a alternativa é pior.

De minha parte, a idade desses meus amigos tomei sempre como um trunfo pessoal, uma fonte infinita de conhecimento, que me completava sempre que nos encontrávamos. Se a juventude tem viço, a velhice tem profundidade, sabedoria. Meu querido amigo Athos Eichler Cardoso era figura chave e essencial para a dinâmica de nossos encontros. Gaúcho, militar, nascido em 1934, tinha orgulho de ser brasileiro, da história de nosso país. Gostava, no entanto, de ser chamado pelo nome, ou até professor, não de coronel. Além dos livros e artigos que escreveria, Athos teve seu lado cinematográfico, no início dos anos 1970, sendo roteirista de filmes super 8 em Recife produzidos por Osman Godoy. Ao se aposentar, cursou jornalismo e passou a pesquisar academicamente sua antiga paixão pelos quadrinhos e literatura de massa. Frequentador de sebos, colecionador, tinha grande interesse por histórias seriadas, policiais e de aventura.

Athos se afundou em pesquisas de tal forma que acabou por publicar um álbum que se tornaria referência básica para a história dos quadrinhos no país: As Aventuras de Nhô-Quim & Zé Caipora: os primeiros quadrinhos brasileiros 1869-1883. A pesquisa, organização e escrita do trabalho tomou oito anos, sendo editado em 2002. Já em 2009, ele publicaria Memórias d'O Tico-Tico: Juquinha, Giby e Miss Shocking. Ambos foram editados pelo Senado Federal. Tivesse mais tempo, seus estudos de folhetins, fascículos, HQs, revistas de emoção e livros de bolso teriam um impacto ainda maior – agora esse papel nos cabe.

Me explico: em 2016 resolvemos estruturar um projeto sobre alguns aspectos importantes, e visualmente impactantes, da Era de Ouro dos Quadrinhos no Brasil. Convidei, para nos acompanhar na empreitada, Pedro Brandt. Tivemos encontros e conversas mil – o projeto foi entregue e aprovado no FAC (Fundo de Apoio à Cultura, da Secretaria de Cultura do DF). Nesse período, ele concedeu uma entrevista à UNBTV – Um olhar sobre os fascículos (disponível online, assim como parte significativa de sua produção). Certo dia, no meio do processo, o prazo premente, escrevi ao Athos dizendo que havia tentado ligar para ele por diversas vezes, mas que ninguém atendia. A resposta começou da seguinte forma:

Caro amigo,

Lembro que o total da idade do casal aqui  é de 164 anos de idade. Ela de andador, eu de bengala. Estando no quarto dos fundos a ida até o telefone que fica na sala constitui-se prova olímpica de 50 metros.

Era espirituoso, sem dúvida. Jovial, apesar dos inúmeros problemas de saúde pelos quais passaria a partir de então. Montada a equipe, ficamos aguardando os trâmites finais de financiamento do projeto, coisa que só ocorreu no final de 2017. Athos não quis entender que era necessário esperar, que a equipe toda tinha e dependia de outros trabalhos (o mundo da produção cultural não trata como deveria seus agentes) e me pedia:

Você precisa começar a se concentrar no projeto. O tempo voa...

A  prioridade é o livro por mil e uma razões. A primeira é que eu posso morrer a qualquer hora..

Meu prazo de validade está vencido.

Quanto a digitalização completa da coleção, lembro que são 2000 exemplares. Cada um com 16 páginas. 32.000 digitalizações.

Talvez seja o caso de digitalizar as capas. Os artigos e reportagens mais importantes, consentâneos com os aspectos sociais, políticos e econômicos do período.

O tempo voa...

Tenha em mente o Jaboti !!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Meu amigo tinha razão – o tempo se foi. E que tristeza não ter completado antes o projeto! Foi elaborando esse texto que encontrei algo para me sentir melhor: notei que seus projetos de maior vulto tiveram um tempo mínimo de gestação de sete anos: ainda estou em tempo. Juntamo-nos, em nossa megalomania e perfeccionismo (digo sem a menor vanglória), e tentamos fechar um projeto dessa monta num tempo impossível. Impossível, na verdade, pelas circunstâncias, pois centenas de capas foram digitalizadas e boa parte dos textos escritos, mas a questão da saúde tornou-se um empecilho intransponível. Pensando bem, intransponível foi mesmo a barreira ideológica surgida, cuja força nenhum de nós previra. Ainda em 2017, Athos me escrevera:

Tenho fé que o livro, numa hora em que o ponteiro da ideologia gira para o meio dia, será um enorme sucesso.

Não prestei atenção ao comentário. No entanto, a 1º de outubro de 2018, quando Athos me escreve o seguinte, e começa um bombardeio de propaganda ideológica, de meia-verdades, é que a questão se materializa:

Livro terá tendências de centro-direita.

Respondi com uma risada, um “kkkkk”, pois sabia que até para o “inimigo” ele votara. Argumentei que nosso o livro seria um estudo histórico, sem tomar partido da atual política, mas se havia iniciado um embate sem vencedores. Uma pena. É que somos nossas circunstâncias, a fuga é difícil, o questionamento, doloroso. Ao longo desse último ano, Athos mudou novamente seu olhar, mas o tempo – esse longo e cruel tempo de pandemia – não permitiu uma reaproximação tão necessária, que nos faria tão bem, a todos os envolvidos.

Voltemos ao nosso amigo, às origens. Athos, filho de militar, seguiu a carreira, assim como dois irmãos. Era o caçula. Foi criança durante o esforço de guerra do Getúlio Vargas, período que marcou sua geração com a ênfase dada na formação do brasileiro como tal. Serviu no Sul, em Brasilia, no Nordeste e na Amazonia, no Acre. Como homem de aventuras que era, transparecia seu orgulho por ter servido no norte do país, região que o encantara, com suas belezas e dificuldades. Sua vida, plena de emoções – algumas inenarráveis – o levou a escrever o volume O que é aventura para a coleção Primeiros Passos. Grande entusiasta da hemeroteca digital, credito a ele meu interesse em pesquisar essa fonte incrível que é a coleção de jornais e revistas da Biblioteca Nacional – tento sempre que possível fazer com que novos pesquisadores compreendam o potencial da hemeroteca.

Para pensar em sua formação como colecionador, coisa que Athos relatou ter se iniciado na década de 1960 e se intensificado na de 1980 - num mundo ainda de incursões aos sebos e correspondência por cartas – é preciso frisar que seu pai, Pedro Messias Cardoso, fora um grande numismata. Encontramos uma entrevista de 1970 sobre sua coleção, na qual afirma ter começado aos 30 anos de idade por influência de um amigo (vale a leitura do artigo “Por um punhado de moedas”, de Pedro Chaves). Athos, portanto, cresceu menino vendo seu pai colecionar: buscar, trocar, cuidar, negociar, pesquisar. O valor de colecionar, assim, lhe era claro, e caro.

Outro assunto sobre o qual muito conversamos, e que desejo tenha o melhor fim possível, é o destino desses acervos montados com tanto empenho pelos colecionadores, como o seu – que possa ser preservado e pesquisado ou, ao menos, que sirva para alimentar novas coleções. É justamente onde descansa sua biblioteca, no Brasília Radio Center, que nos encontramos, no mais absoluto acaso, pela última vez. Isso em 2019, antes da pandemia. Athos tomou um susto, pensando que tínhamos marcado um encontro, sendo que ele seguia para outros programas agendados. Estávamos Pedro Brandt, que tirou a foto, e eu. Nosso amigo fará falta nos encontros de sábado, capitaneados pelo Jorge Brito, encontros esses que estávamos para retomar. Ele agora é parte de nossas memórias, e de todas as memórias que continuará a criar nos leitores de seus livros.

Oto Dias Becker Reifschneider é pesquisador, galerista e bibliófilo

Brasília, 22 de dezembro de 2021