A Canção de Orfeu Negro: quando Neil Gaiman encontra Tom Jobim e Vinícius de Moraes
/por Marcos Maciel de Almeida
“Tristeza não tem fim, felicidade sim...” O verso da clássica canção “Felicidade”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, dá o tom do filme franco-ítalo-brasileiro “Orfeu Negro”, de 1959, dirigido por Marcel Camus. A película, baseada na peça teatral Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes, foi um grande sucesso no cinema, recebendo a tríplice coroa da Sétima Arte, tendo vencido o Oscar, a Palma de Ouro de Cannes e o Globo de Ouro.
A saga de Orfeu inspirou (e segue inspirando) produções artísticas em diversas áreas, como a literatura e as artes plásticas. A lenda do personagem foi recriada e adaptada para várias realidades e formas de expressão, revelando-se um ótimo exemplo de uma criação que conseguiu transcender o meio original (religião/mitologia grega) para se tornar narrativa bastante disseminada, de caráter praticamente universal. Também nos quadrinhos o mito foi recontado por Neil Gaiman na popular maxi-série Sandman, como veremos adiante.
Não sei se incorro em spoiler ao relembrar esse conto já milenar, mas a lenda trata do encontro - e posterior perda - do maior amor de Orfeu, Eurídice, picada por uma cobra ao tentar fugir de um sátiro mal-intencionado. Sem aceitar seu destino, Orfeu move céus e terra e consegue reencontrá-la novamente, perdendo-a de novo, desta vez exclusivamente por sua culpa. A trágica história ressoa fortemente por tocar em aspectos essenciais da condição humana: fatalismo, inconformismo e arrependimento.
Orfeu é o músico por excelência, discípulo de Apolo. Ao cantar e tocar a lira encanta seres racionais e irracionais, fazendo com que se dobrem a seus desejos. Segundo algumas vertentes da mitologia, sua música conseguia alcançar até mesmo objetos inanimados e mudar o curso de rios. Interessante notar quem foram os “Orfeus” brasileiros escalados para criar a trilha sonora tanto da peça quanto do filme: gente do quilate dos supracitados Tom e Vinícius e Luís Bonfá, autor da tocante “Manhã de Carnaval”. A música é quase um personagem à parte do filme, transportando os ouvintes para uma dimensão paralela na qual somos presa fácil para os acordes hipnóticos de um Orfeu imaginário.
O filme começa literalmente com um estouro. A explosão de música é envolvente e chama o espectador para a dança. Tenho para mim que os fanfarrões escritores do famoso episódio dos Simpsons no Brasil certamente assistiram à película. Tem um momento no desenho em que Homer pergunta para Marge como chegar no hotel, recebendo como resposta: “Homer, aqui no Brasil basta seguir uma fila de conga que você chega em qualquer lugar”. E o filme é bem isso. As pessoas - em grande parte fantasiadas - não caminham, só gingam numa euforia desvairada e contagiante. Em qualquer lugar, no morro, na rua ou no bonde, todo mundo está cantando e dançando, como num quadro surrealista altamente convidativo.
Interessantes também são as transposições do mito para a realidade nacional. O cachorro Cérbero vira “Severo”. As bacantes – grupo de mulheres praticantes de rituais selvagens/bárbaros comumente associadas a Dionísio – são as várias amantes do Orfeu brasileiro que, consumidas pela energia dionisíaca do carnaval, partem para cima do protagonista com sangue nos olhos. Outra adaptação marcante é a do mundo dos mortos, visitado por Orfeu na busca por Eurídice. A representação carioca é certeira: nada menos que uma repartição pública inundada de papeis velhos e inúteis. O alerta de “Caronte” para Orfeu não é muito alentador: “Não é nos papeis que se encontram os desaparecidos, pelo contrário. É lá que eles desaparecem”.
Já a publicação do gibi “A canção de Orfeu” (Sandman Special, de 1991) foi um acontecimento não por causa de Orfeu ou pela busca por Eurídice, mas sim pelo interesse dos fãs em conhecer outro desaparecido, o irmão do Deus do Sonho. Neil Gaiman havia prometido revelar a identidade do integrante secreto da família dos Perpétuos e cumpriu. Mas tinha uma pegadinha, claro: colocou o nome do sujeito em grego e – numa era pré-internet – a galera teve que se desdobrar para descobrir que Olethros significava Destruição. O motivo da reunião familiar foi o casamento de Orfeu que foi estabelecido como filho de Morfeu. Foi uma escolha feliz de Gaiman, especialmente considerando que “Orfeu” tem etimologia ligada ao termo “órfão” e que a identidade do pai de Orfeu na mitologia ainda é tema de debate. Sem mencionar, obviamente, a ótima sacada da dualidade sonora Morfeu/Orfeu.
O desfecho da saga de Orfeu tem conexão com a história bíblica narrada em Gênesis 19. Nas imediações de Sodoma, envolta em fogo e enxofre, um anjo adverte a família de Ló de que eles deveriam ir embora da cidade sem olhar para trás. A esposa de Ló não resiste e, ao voltar-se para trás, é instantaneamente transformada numa estátua de sal. Já Orfeu, num fugaz momento de vitória no mundo dos mortos - em que consegue encontrar Eurídice - é avisado por Hades que deverá deixar o local sem olhar para trás, que sua amada o seguirá. Mas, se não seguisse essa ordem perderia sua amada para sempre. Orfeu, demasiadamente humano, fraqueja e, ao tentar confirmar que Eurídice ainda o seguia, olha para a retaguarda apenas para ouvir o grito de desespero da mulher, tragada de volta para o mundo inferior.
São várias as interpretações do mito. Uma delas diz que o grande problema de Orfeu foi se recusar a aceitar a morte da amada e tocar a vida para frente. Sua insistência em “olhar para trás” revelou ser sua grande desgraça, pois destruiu a chance de vislumbrar qualquer futuro. Sua existência pós-Eurídice resumiu-se, então, a um eterno dissabor e frustração. Outra percepção da história diz respeito à necessidade de controlar os impulsos. Orfeu não foi capaz de manter sua racionalidade e obedecer à solicitação de Hades. Vencido pela ansiedade, pagou o preço mais caro que poderia. Nada mais apropriado – e irônico – que fosse assassinado pelas bacantes, seres inebriados por puro instinto animalesco e luxúria.
“Tristeza não tem fim, felicidade sim...” é o canto que ecoa no fim do gibi e do filme, depois que a poeira baixou. A alegria passou e a tristeza é infinita. Ninguém mais dança, somente uns pobres-diabos que se recusam a aceitar o fim. A euforia e as cores vibrantes do carnaval e do casamento já se foram, dando lugar a melancólicos tons de cinza. Cinza também é a cor da quarta-feira que chegou, cobrando caro o preço de todos os excessos dos foliões. Tal qual como no mito de Dionísio, também as bacantes despertarão deste carnaval eterno/efêmero, numa ressaca de arrependimento e torpor que poderá se repetir no próximo verão.
Para não deixar o final muito depressivo, o diretor optou por colocar algumas crianças tocando e dançando, para dar um tom de esperança. Bem apropriado. Quem já leu Sandman sabe que a esperança tem papel de protagonismo. É isso aí. Em tempos sombrios, como os atuais, só nos resta olhar para frente.