Flores, véu e grinalda

por Pedro Brandt

Lembro quando, em 1997 ou 1998, conheci o Gabriel Góes na aula de desenho do saudoso professor Marel, no Espaço Cultural Renato Russo, mais conhecido na época apenas como “508 Sul”. Ele chegou com uma pasta cheia de desenhos e eu e os outros alunos ficamos embasbacados com o que vimos. Naquele momento, tive a certeza de que Gabriel seria um desenhista profissional – o que se confirmou alguns anos depois. Os desenhos dele, desde a adolescência, se distinguiam por uma identidade muito marcante, pela maneira como ele conseguia absorver influências diversas dos quadrinhos e da cultura pop e devolver tudo aquilo com uma cara inegavelmente própria, imediatamente reconhecível como sendo dele.

E acompanhando o trabalho do Gabriel ao longo do tempo, pude perceber como o desenho dele está em constante mutação, sempre apresentando algo de novo em seu traço, seja para ilustrar algo delicado ou tosco, grosseiro ou refinado – muitas vezes, tudo isso ao mesmo tempo.

No sábado, 24 de maio de 2014, os polos opostos de sua personalidade como desenhista poderão ser conhecidos no mesmo evento. Na ocasião, o artista brasiliense, 33 anos, lançará dois trabalhos, Vestido de noiva, sua segunda parceria com o roteirista e cartunista carioca Arnaldo Branco adaptando uma obra de Nelson Rodrigues, e Flores, o primeiro gibi individual de Góes depois de diversas colaborações em publicações coletivas (como Samba, Kowalski e outras).

Abaixo, seguem alguns comentários sobre as duas obras e, mais adiante, entrevista com os dois autores. Se você ler isto aqui a tempo, não deixe de prestigiar o evento no sábado, com a presença de Gabriel e do Arnaldo, que virá do Rio de Janeiro para o lançamento. 

LANÇAMENTOS - VESTIDO DE NOIVA E FLORES

Sábado, 24 de maio, às 16h, no Sindicato (705 Sul, bloco A, casa 35), Brasília-DF. Acesso livre. Informações: (61) 3202-5255.

Dos palcos para as páginas

Segundo texto de Rodrigues para o teatro, Vestido de noiva, na época, chegou a ser considerado impossível de ser levado para os palcos, dada a complexidade do texto, cuja trama se passa em três planos narrativos. Coube a um experiente encenador e ator polonês radicado no Brasil, Ziembinski, tal missão, cumprida com sucesso a partir de montagem de 1943, responsável tanto por alavancar a carreira do escritor como por contribuir decisivamente para a modernização do teatro brasileiro.

É de tirar o chapéu que Arnaldo Branco e Gabriel Góes tenham encarado fazer a adaptação para os quadrinhos de Vestido de noiva. Até porque, o resultado desta nova parceria entre os quadrinistas reforça o quão difícil é esse tipo de processo. Góes, aqui com um desenho em preto e branco que volta e meia acena para Charles Burns (mas, como dito no começo do texto, sempre sendo Góes), conta a história como se o leitor a estivesse assistindo no teatro, com muitos planos abertos, vendo todo o palco. Um palco simples, de poucos adereços cenográficos, tal qual numa peça.

Muitas das cenas foram construídas em cima de fotos ou poses encenadas por amigos e amigas, como numa fotonovela. O recurso funciona como uma faca de dois gumes: ganha-se na apresentação visual de corpos e rostos, mas perde-se em dinamismo e expressão.

Vestido de noiva é uma peça que demanda muito dos atores. E a construção narrativa da HQ se apoia mais no texto do que nas atuações, o que acaba por atenuar um pouco a carga bad vibe do texto de Nelson Rodrigues – que, contudo, não perde o impacto e continua uma tijolada na cara, mostrando o ser humano como ele realmente é por debaixo das aparências. 

Em comparação, eu diria que a adaptação da dupla para Beijo no asfalto consegue manter com mais fidelidade o clima sufocante e hostil do universo rodriguiano. História à parte, Vestido de noiva é mais instigante ao olhar.

Pesadelo pós-adolescente

Quem acompanha a Raio Laser sabe que, volta e meia, estamos comentando por aqui publicações diversas da produção zineira pós-contemporâneo brasileira, cenário marcado, em sua grande maioria, por muita vontade, alguma experimentação, boas doses de porralouquice, nonsense e, infelizmente, nem sempre algo interessante a mostrar. Mas é necessário disposição para se deixar surpreender, pois no meio do lixo também nascem flores.

E por falar nelas... Flores, numa rápida folheada, parece mais um desses quadrinhos esquecíveis, com desenhos infantis, lido em questões de segundos. Se eu esbarrasse com ele inadvertidamente, não daria bola. Pior: o julgaria pela capa. Mas como já cantava Bo Diddley...  Curioso que eu mencionei mais cedo que o desenho de Góes tem algo de inconfundível, mas talvez eu não reconhecesse sua autoria em Flores. Ponto pro artista que, mais uma vez, comprova sua versatilidade. Os desenhos aqui só parecem toscos, mas são frutos de uma desconstrução consciente, da busca por um minimalismo espontâneo que, quando utilizado de maneira inteligente (vide Arnaldo Branco) resultam em algo cuja beleza está ao mesmo tempo escondida e exposta.

Flores é uma leitura rápida, mas pode gerar demoradas reflexões. Ao longo de suas páginas, Gabriel Góes apresenta uma série de pensamentos que assombram muita gente. Em resumo, o gibi pode ser apresentado como um breve e descompromissado retrato sobre o doloroso processo de se tornar adulto. Temos aqui um protagonista engolido pela rotina do trabalho entediante, que encontra refúgio, entre arrependimentos e responsabilidades, em devaneios sobre sexo e outros prazeres (como ouvir aquele disco preferido) da juventude recém-perdida. Tudo isso colocado de maneira implícita e aberta a interpretações. Talvez nem tenha sido a intenção do autor. Prefiro acreditar que sim. Envelhecer, todos sabem – ou saberão –, é uma barra. E, como canta a banda Apanhador Só, talvez seja melhor despirocar.

ENTREVISTAS

As adaptações em quadrinhos de clássicos da literatura se tornaram recentemente um filão – aparentemente lucrativo – no mercado editorial brasileiro. Como vocês avaliam a carreira de Beijo no asfalto? Têm ideia de quantos exemplares foram publicados e quantos foram vendidos? Vocês receberam algum feedback de leitores, professores ou mesmo dos herdeiros do autor?

Arnaldo: Fomos contratados para escrever apenas pelo adiantamento – uma praxe quando a família do autor está envolvida no processo, então não acompanhamos muito o desempenho nas lojas. Sei que os herdeiros gostaram e o governo comprou algo em torno de 25 mil exemplares para distribuir em bibliotecas pelo país, curti bastante ser um bestseller assim de tabela. Não fiquei muito a par das reações também, a crítica parece ter gostado o suficiente para não ficar reclamando desses quadrinistas se metendo na obra imortal do Nelson.

Gabriel: Foram 25 mil cópias do Beijo, fora a versão pocket que vendia nas bancas. É tipo um disco de ouro se comparado com as mil ou duas mil cópias dos títulos da SAMBA e outros independentes. Deve ter muito moleque por ai que chegou no teatro do Nelson pelos quadrinhos.

A escolha de adaptar Vestido de noiva para os quadrinhos é um tanto ousada, dada a complexidade do texto. A proposta veio da editora ou de vocês? Outro título do escritor está nos planos?

Arnaldo: Veio da editora. Se fosse por mim, talvez escolhesse alguma outra peça, talvez Anjo negro, Senhora dos afogados ou qualquer uma das "tragédias cariocas".

A narrativa de Vestido de noiva passeia pelo plano da alucinação, da realidade da memória. Imagino que deve ter sido bastante desafiante pensar em como narrar isso em quadrinhos. Como foi esse processo de preparação para adaptar a peça para HQs? Além do próprio texto, o que mais serviu como base? E o que vocês diriam que foi mais desafiador durante o processo?

Arnaldo: Usamos um esquema de cores e estamos contando com a inteligência dos leitores, às vezes uma aposta arriscada, hehe. Eu tinha sugerido o uso do estilo do desenho de Roberto Rodrigues, irmão do Nelson – no livro contamos um pouco da história da família Rodrigues até a estreia de Vestido de noiva no Teatro Municipal – para marcar o plano da alucinação, mas o Gabriel preferiu usar só em um quadro. E gosto também da ideia de confundir o leitor um pouco, obrigá-lo a prestar atenção, voltar a página, desistir da leitura etc.

Gabriel: Nos quadrinhos passear por planos diferentes não é novidade, acontece bastante de usarem requadro de "nuvem", paletas diferentes para passado e presente, o clássico sépia para representar o passado. Pra mim, o tempo e quantidade de páginas são sempre um desafio. O mais legal foi adicionar o plano da realidade onde retratamos o próprio Nelson enquanto escrevia a peça.

Se não me engano, vocês dois moravam no Rio quando produziram Beijo no asfalto. No caso de Vestido de noiva, a distância foi mais um desafio na produção da HQ?

Arnaldo: Continuo morando no Rio, o Gabriel está em Brasília agora. Não, porque mandei todas as sugestões de referências junto com o roteiro – e as nossas reuniões na época do

Beijo no asfalto eram mais desculpas para beber. Na verdade dessas eu sinto falta.

Gabriel: A distância não foi um problema. Minha dificuldade foi o prazo, eu não queria fazer chutado e estourei o prazo umas cinco vezes, o pessoal da editora deve me odiar.

Quanto tempo você levou para preparar o roteiro da adaptação?

Arnaldo: Quatro meses – mas podia ser bem menos, o processo foi interrompido por uma mudança interna na editora.

Quanto tempo levou para desenhar as quase 70 páginas da HQ?

Gabriel: Levou quase um ano entre produzir fotos, desenhar e tratar e ficar satisfeito com o resultado.

Gabriel, você tem a capacidade de mudar bastante seu estilo de desenho de um trabalho pro outro. Como foi a escolha do estilo que acabou sendo escolhido para Vestido de noiva? Fez muitos estudos até chegar nele? Quem diria que são suas principais influências para esta HQ?

Gabriel: Optei por fotografar modelos para capturar a linguagem corporal e biotipos diferentes, além de resultar numa atuação mais sutil e feminina. Me influenciei em elementos visuais de Gritos e sussurros, do Bergman, e da montagem original do Vestido de noiva, do Ziembinski.

Você já tinha ilustrado alguma HQ usando pessoas como modelo? O que você achou desse processo?

Gabriel: Eu uso bastante foto nas minhas ilustrações, tenho muita dificuldade em desenhar carros, por exemplo. Algumas pessoas têm o dom de desenhar de memória um carro em qualquer ângulo concebível, eu não, eu uso fotos e acho que o importante é que a ilusão de que aquela mancha no papel signifique um carro, o mais importante é a pessoa conseguir ler aquele determinado símbolo.

Arnaldo, você já gostava da obra do Nelson Rodrigues antes de trabalhar nas adaptações de Beijo e Vestido? O que mais te chama a atenção no texto dele? E, em especial, no texto de Vestido de noiva? Dentro dessas características, o que acha mais difícil no processo de adaptação do texto original para as HQs?

Arnaldo: Muito – li todas as peças, romances e tudo o que recuperaram do trabalho dele para a imprensa. Gosto de tudo, das imagens, da adjetivação, do humanismo do cara.

Vestido de noiva foi uma leitura estranha para mim porque foi precedida pela fama do texto – era a peça que fez a carreira dele – e achei muito hermética pra justificar tanto sucesso (não estou reclamando, muito obrigado turma de 1943). O mais difícil é cortar qualquer frase, até as vírgulas são geniais.

Gabriel, como você costuma apresentar Flores?

Gabriel: Flores é o meu primeiro livro individual, é sobre um homem que tem um passado, uma obsessão, um emprego e que se encontra diante de uma decisão.

Flores é sobre estarmos todos juntos como uma máquina, sobre o caos e os medos mais antigos do homem, é sobre a redenção. Foi originalmente publicado em capítulos semanais no revistasamba.com e veio da experiência do fluxo criativo do projeto FABIO (http://fabiozines.blogspot.com.br) e da necessidade de ter que produzir um capítulo novo toda quarta-feira no blog da SAMBA.

Vocês gostam de trabalhar em parceria? Com quem mais das HQs brasileiras gostariam de trabalhar? Por que?

Arnaldo: Gosto de trabalhar em parceria, ainda mais com o Gabriel que acho um dos melhores desenhistas brasileiros. O que não gosto muito é de lançamento de livro. Sou péssimo fisionomista e dou vários vexames. Se pudesse escolher, acho que adaptaria um livro mais obscuro, como Os ratos, de Dyonélio Machado.

Gabriel: Gosto de trabalhar com o Valente, vamos terminar as 100 edições do FABIO, também com o Arnaldo, quem sabe fazemos mais um do Nelson, Anjo negro seria massa.

O que você acha mais legal nessa movimentação dos novos quadrinhos brasileiros? Dessa galera, quem são seus autores favoritos (e por que?). E o que, na sua visão, ainda falta acontecer? Arnaldo, acha que faltam bons roteiristas?

Arnaldo: Acompanho e acho que estamos em uma fase sensacional. Diego Gerlach, Alexandra, Elcerdo, Bruno Maron, Ricardo Coimbra, Chiquinha, Stêvz, Danilo Beyruth, praticamente todos os Rafaéis (como tem Rafael fazendo quadrinho). Gosto por vários motivos, até porque todos têm estilos bem diferentes. E não acho não – tem até gente mandando mal, mas ninguém que esteja no currículo escolar obrigatório ou algo assim, é só não ler. 

Gabriel: Eu gosto da liberdade desse momento, acho que devemos aproveitar para produzirmos nosso quadrinhos mais inspirados, devemos aproveitar a visibilidade que é oferecida pelas diferentes mídias e também o crescente interesse do público por autores novos. Stêvz, André Valente, Gerlach, Eduardo Belga, Rafael Coutinho, Rafael Cica, DW, LTG, Mateus Acioli, Bruno Maron, Berguer, Pedro D'Apremont, Heron Prado, são caras que desafiam as convenções e impulsionam os quadrinhos a novos rumos, entre outros que com certeza eu deveria ter citado. O que falta para o novo quadrinho é um mercado mais sólido e lucrativo, com mais oportunidade para os envolvidos, o quadrinista deveria poder viver de quadrinhos no Brasil.

Arnaldo, como é trabalhar com o Góes? Gabriel, como é trabalhar com o Arnaldo? O que vocês gostam um no trabalho do outro?

Arnaldo: É tranquilo, é como passar a bola para um jogador fora de série. O que mais gosto é o fato dele não economizar nanquim.

Gabriel: Eu gosto de como o Arnaldo responde entrevistas, gosto de como escreve e até mesmo de como ele desenha.