Valentina para além do erotismo
/por Marcos Maciel de Almeida
Criada em 1965 por Guido Crepax, Valentina é considerada um dos ícones do quadrinho italiano e mundial, fama plenamente justificada. Afinal, poucas vezes a nona arte foi tão vanguardista e moderna. Pode-se afirmar que Valentina é um gibi precoce – não em semanas, mas em décadas – para época em que foi publicado. Seja pelo seu caráter arrojado, libertário ou mesmo transgressor, o fumetto continua, ainda hoje, a inspirar geração após geração de leitores e quadrinistas.
Valentina surgiu como coadjuvante na série Neutron, publicada na revista Linus. Seu grande carisma e sex appeal fizerem com que, rapidamente, se tornasse a estrela, relegando o então protagonista, Philip Rembrandt, ao papel de personagem secundário.
Conhecendo o gibi, o que mais chamou minha atenção foi sua maturidade no tratamento de temas que – até hoje – são considerados tabu. Naquele momento, a sociedade dos anos 60 apenas engatinhava em áreas como direitos humanos, liberdade sexual e emancipação feminina. Eventos importantes, como o episódio da “queima dos sutiãs” e as grandes manifestações estudantis francesas, por exemplo, só ocorreriam no final da década. E mesmo hoje, em pleno século 21, mulheres ainda lutam para alcançar condições sociais e trabalhistas que só os homens possuem. Se ainda estamos apenas nos acostumando a ver mulheres independentes e em posições de liderança, pode-se começar a imaginar o impacto das primeiras aparições de Valentina.
Para início de conversa, ela tinha sua profissão (fotógrafa) e não ficava na sombra de seu namorado. Fugindo do estereótipo de moça indefesa, resolvia seus próprios problemas, o que não impedia que algumas aventuras fossem solidariamente estreladas pelo casal. Indo além, Valentina tinha uma postura bastante liberal em relação a sexo. Sentia-se livre para solicitar e se recusar a fazê-lo. Ou seja, passava longe do papel de mulher submissa e obediente, sempre disponível para saciar as vontades do parceiro. Dando as costas para qualquer puritanismo hipócrita, ficava à vontade para usar as roupas e acessórios que quisesse, ignorando quaisquer juízos preconceituosos e limitadores. Trocando em miúdos, Valentina - leia-se Crepax - soube ousar em uma época em que as liberdades individuais ainda eram um ideal tão inalcançável quanto utópico.
Aproveitando o gancho, impossível não mencionar o visual inspirado na alta costura de Milão, Meca da moda mundial. As roupas boladas por Crepax são marcantes e estilosas, mostrando um autor com olhar atento para o mundo ao seu redor. Certamente os modelitos de Crepax foram fonte de inspiração para artistas de diversas áreas, num processo de retroalimentação com efeitos positivos para todos os envolvidos. Até caras como eu, que não são muito chegados no universo das vestimentas, têm de tirar o chapéu para o trabalho de figurino realizado na série.
Crepax influenciou quadrinistas do mundo inteiro, incluindo gente do calibre de Frank Miller e Esteban Maroto. A arte do italiano é uma fusão de elementos oníricos e realistas tão sensacional que beira a perfeição. Seu estilo era imbatível fosse em páginas ricas de detalhes ou em ilustrações livres. Era daquelas mentes incansáveis e irrequietas que não podiam deixar um espaço em branco. Em alguns momentos seu trabalho remete a fractais, já que quadros – cada vez menores – vão preenchendo formas diversas com uma riqueza avassaladora, capaz de hipnotizar leitores novatos e veteranos.
Paralelamente, também seduz ao desenhar capas e splash pages. Quando se dedica ao traço livre, o artista nos convida a adentrar a máquina insana que ele chama de mente. Em desenhos leves, mecânicos e monstruosos vemos Valentina ser arrastada por tentáculos e mil tipos de engenhocas, sem perceber que fomos nós leitores aqueles engolidos pelo magnetismo das formas do mestre italiano.
As histórias são abertas e dão margem a inúmeras interpretações. O elemento básico da narrativa é surrealismo onírico. Sonhos são recorrentes e nunca se sabe se realmente ainda estamos dentro deles, muito menos quando foi que entramos. Tudo muito de acordo com os sonhos do mundo real, que não costumam apresentar cartões de visita. Esse ambiente nebuloso e instável é a matéria-prima da produção de Crepax, onde o certo é incerto. Mais que uma reflexão narrativa, a leitura deste quadrinho pode ser descrita como uma experiência sensorial, essencialmente etérea e fugaz.
Muito já foi dito sobre as diversas camadas de leitura que o gibi propicia. As mais famosas delas dizem respeito ao fato de que as aventuras de Valentina seriam a representação dos fetiches e delírios secretos que habitam corações e mentes. Faz sentido. A HQ tem símbolos e referências sexuais em profusão, escancarados para a investigação de qualquer discípulo de Freud, não por coincidência autor de A interpretação dos sonhos. E no território privado da mente humana, livre de pudores e melindres, há espaço para exposição de todas as fantasias que estão normalmente escondidas. Assim, no universo de Valentina abundam personagens com trajes sadomasoquistas e libido selvagem. Nessa terra sem lei, é proibido proibir. Mas não espere erotismo gratuito nessas paragens. Nesse oásis de sonho e ilusão tudo é feito com uma elegância quase poética.
As diversas angústias e tensões tão inerentes à condição humana são muitas vezes apenas sugeridas. Exemplo: a partir do momento em que Philip e Valentina ficam sabendo que esperam um bebê, passam a enfrentar uma série de provações e sacrifícios, que incluem monstros, clones, assassinatos e bruxas. Tudo isso para simbolizar os medos e inseguranças tão comuns aos pais de primeira viagem. Momentos como esse mostram a dificuldade em classificar Valentina. Chamar de gibi erótico é empobrecer uma publicação que – na verdade – não possui rótulo algum. Uma prova disso é que revistas com fim meramente masturbatório – não que haja nada errado com elas – não costumam mostrar as consequências do ato sexual. E em Valentina as coisas não são bem assim, como o nascimento de seu filho veio para demonstrar.
É por essas e outras que acredito que a temática de Valentina vá muito além da diversão onanista. O erotismo em Valentina serve como plataforma para, além de proporcionar prazer visual, permitir que o leitor se reconheça como ser passível de dor e desejo. Ou seja, que se aceite como ser humano falível e imperfeito. A câmera da fotógrafa Valentina está constantemente voltada para o leitor, que se enxerga na lente como se estivesse diante do espelho. Apesar de toda a carga psicológica presente no gibi, o alvo principal da análise não é a protagonista, mas aquele que está do outro lado da quarta parede. Adentrar o mundo de Valentina é uma viagem de autoconhecimento. A percepção das próprias reações ao que é mostrado podem ser mais úteis que uma sessão de terapia. E não há motivos para que nossas perversões sejam reprimidas. Valentina, como se vê pelo seu semblante sempre sereno e complacente, não está aqui para julgar, muito pelo contrário.
Sonhos que desembocam em pesadelos e vice-versa. Clones, alienígenas e bruxas taradas. Valentina mistura tudo isso num caldeirão de sensações tão inesperadas quanto bem-vindas. O resultado pode gerar efeitos como ansiedade, excitação, desespero ou dor. E isso pode gerar bastante prazer. Só depende do referencial.
Contando com quase três décadas de publicação, apenas uma pequena parte da – longa – trajetória da maior criação de Crepax foi publicada no Brasil. E aí está um pecado tão ultrajante que deixaria até Valentina enrubescida.