Um sobrevoo sobre a história dos quadrinhos da Rio Gráfica e Editora
/por Bruno Porto
Os arquivos secretos da RGE: A história da primeira grande editora de quadrinhos do Brasil (Noir, 2021), de Roberto Guedes, é uma edição limitada que foi oferecida em uma espécie de “venda casada” com Sr. Maravilha: A biografia de Stan Lee, do mesmo autor, como recompensa exclusiva para os apoiadores da campanha de financiamento coletivo realizada no ano passado.
Como já havia saciado minha curiosidade por Lee com as biografias True Believer: The Rise and Fall of Stan Lee (Crown, 2021) de Abraham Riesman e Jack Kirby: O criador dos Deuses (Noir, 2017) do próprio Guedes, admito que meu interesse eram mesmo as “histórias saborosas e desconhecidas dos bastidores da editora… [e da] criação de títulos que marcaram gerações, como Kripta, Sítio do Picapau Amarelo, Festival HB, Tex e Dico, o Artilheiro entre tantos outros”, como anunciado no Catarse. Afinal, as outras duas grandes editoras brasileiras de quadrinhos do século passado, EBAL e Abril, já haviam sido abordadas em profundidade em outros livros, que apenas tangenciavam a RGE. No entanto, infelizmente, ainda não foi desta vez que a trajetória dos quadrinhos publicados pela editora carioca, fundada oficialmente há 70 anos, ganhou seu registro definitivo.
A obra de exatas 100 páginas não foge da configuração comumente observada nas biografias de editoras, em que relatos factuais sobre seu percurso, seus protagonistas e contextos sócio-econômicos são entremeados com descrições das publicações em si e, às vezes, de seus personagens — tem-se, portanto, parágrafos aqui e ali sobre Flash Gordon, Fantasma, Mandrake, e outros eventualmente pouco conhecidos dos leitores de hoje. Independente do conhecimento prévio sobre quadrinhos que o provável leitor traga consigo, o livro não pode prescindir deste tipo de informações, e esse equilíbrio é conduzido muito bem por Guedes, principalmente na primeira metade do livro.
Essa primeira parte nitidamente teve como fonte principal a mais completa pesquisa sobre a história dos quadrinhos no país publicada em formato de livro, A Guerra dos Gibis: a Formação do Mercado Editorial Brasileiro e a Censura aos Quadrinhos, 1933-1964 (Companhia das Letras, 2004), de Gonçalo Junior, editor da Noir (e consequentemente deste livro). Frustrei-me por não perceber maiores contribuições que enriquecessem as biografias de Adolfo Aizen e de Roberto Marinho, como editores de quadrinhos, que o livro de Gonçalo apresenta. Embora isso possa tornar a primeira parte redundante para quem leu A Guerra dos Gibis, o fato é que Guedes condensa de forma eficiente o que Gonçalo pesquisou acerca das publicações de quadrinhos do jornal O Globo e, entre as décadas de 1950 e 1980, da Rio Gráfica e Editora.
É apenas a partir da segunda metade do livro, quando a narrativa chega à decada de 1970, que Os arquivos secretos da RGE descola-se d’A Guerra dos Gibis — até por que este, como o próprio subtítulo informa, só foca até meados dos anos 1960 (embora seu minuncioso epílogo descreva os principais eventos até a morte de Aizen e Marinho, respectivamente, em 1991 e 2003). No entanto, apesar de contar com depoimentos exclusivos de funcionários da RGE daquele período (os editores Mário Amiden, Felipe Ferreira e Luís Pimentel, e o virtuoso quadrinista Gustavo Machado), as apregoadas histórias de bastidores dos tais arquivos secretos deixam a desejar, com algumas poucas exceções. Uma destas é a revista Kripta, que teve sua concepção, produção gráfica, desenvolvimento das capas, mudança de formato e outros bastidores devidamente narrados. Outra, com menos detalhes, foram os relançamentos, com periodicidade semanal e como almanaque, da icônica Gibi. Mas Dico, o artilheiro ganha apenas uma página, praticamente só de informações superficiais sobre os personagens, autores e quantidade de números lançados. Sítio do Pica-pau Amarelo, onde Machado estreou como roteirista e desenhista, ganha duas páginas, mas também se limita a breves relatos. O quadrinista até revela que a equipe da revista ficou desmotivada quando houve uma reformulação visual dos personagens “por um desenhista de fora”, mas não se dá nome ao santo, nem os motivos para isso...
Outros títulos infantis produzidos no Brasil, como Cacá e sua Turma, Sacarrolha e A Vaca Voadora recebem duas burocráticas frases cada. Mesmo Recruta Zero, que teve parte de suas HQs produzidas por quadrinistas brasileiros (incluindo o cartunista e editor Ota) durante décadas, merece uma frase só. As revistas desta fase que mais ganham destaque são as de Super-Herói — um gênero que Guedes domina como poucos na imprensa nacional — por conta dos personagens Marvel que a editora publicou principalmente entre 1979-1982. Entretanto, títulos importantes lançados após a transformação em Editora Globo, a partir de meados dos anos 1980, como Akira, Sandman e V de Vingança, entre outros, são meramente listados. Também não há nenhuma revelação de bastidores — seja sobre negociações, produção, vendagem ou o que seja — referentes aos quadrinhos de Maurício de Sousa, Ziraldo ou da Image Comics que a editora publicou posteriormente.
De forma alguma é um livro ruim — apesar de aligeirado, o texto é seguro e agradável, o projeto gráfico é competente (destacando-se a linda capa de André Hernández) — se descontarmos o que o título e a campanha de financiamento coletivo prometeram. Tive algumas boas surpresas, como descobrir a existência de um terceiro número inédito de Carga Pesada, quadrinização do seriado televisivo da Tv Globo, desenhado por Flavio Colin. Também acontecem raros momentos em que o autor assume uma postura opinitiva (no que, note-se, não vejo problema algum), como quando comenta o “discurso saudosista” que justifica as decisões de retalhar HQs de Super-Herói para acomodar páginas e cronologias ao mercado nacional. Mas, caracterizando-se em grande parte como uma hábil compilação jornalística de informações ligeiras, Os arquivos secretos da RGE funciona mais como um anexo d’A Guerra dos Gibis.