TRÊS BURACOS: DO CONTO DE BOTIJA AO BRASIL PROFUNDO

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Hoje é dia de estreia na Raio Laser! Quem nos trouxe essa interessante leitura do romance gráfico Três Buracos, de Shiko, foi o amigo Lucas, que promete outras eventuais colaborações. Valeu! (CIM)

Lucas Gesser tem 27 anos, é cineasta/cinéfilo, palmeirense e apreciador de batidas de limão. Amante de quadrinhos e critico diletante, começa aqui suas colaborações esporádicas, buscando na arte uma forma de entender nossos estranhos tempos.

por Lucas Gesser

Viajando pelo sul do Pará, passamos perto da estrada de acesso para Curionópolis, cidade notória por abrigar o distrito de Serra Pelada. Nosso guia nos contou uma breve história sobre um tio desgarrado, que havia tentado a sorte no garimpo e perdido a vida em disputa pela fração de uma onça de ouro. Também nos contou sobre os “órfãos de Serra Pelada”, garimpeiros da região que guardam esperanças sebastiânicas sobre a reabertura das minas. Enquanto não puderem voltar a retirar ouro da terra, eles esperam. Para mim, naquela viagem dois anos atrás, uma percepção se consolidou: de Sierra Madre à Serra Pelada, histórias de garimpo sempre giram em torno de obsessão e morte.

Três Buracos, mais recente HQ do consagrado Shiko, usa um garimpo abandonado no interior da Paraíba como palco para um conto de botija (histórias de tesouros escondidos, que revelam-se aos afortunados através de sonhos). Nela, acompanhamos a busca árdua e obstinada da protagonista Tânia por uma enorme Turmalina Azul, escondida por seu pai em algum nicho profundo da mina localizada na propriedade que dá nome à história. Enquanto isso, Tânia também tem de lidar com os planos do irmão Canhoto, recém fugido da prisão, e a lealdade titubeante de sua companheira, Cleonice.

Embora seja uma narrativa de fôlego curto, Shiko consegue articular em Três Buracos uma série de influências e estilos que enchem de nuance uma narrativa naturalmente árida. Na sequência que abre a história, por exemplo, já se faz notar a inspiração nos faroestes de Sergio Leone (as composições em profundidade, as iconografias da forca e das cruzes nos túmulos…), articulada como forma de tons míticos à violência dura da narrativa.

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Porém, conforme os sonhos proféticos de Tânia se emaranham com a linearidade da história, Três Buracos passa a lembrar alguns classicos do chamado acid western, termo que designa uma série de filmes que casam as ambições alegóricas do faroeste clássico com os arroubos barrocos do spaghetti western e os delirios lisérgicos da contracultura. Me vieram à mente filmes como Tiro Certo e A Vingança de um Pistoleiro, de Monte Hellman, que trazem histórias de delírio, tragédia e decadência em meio à paisagem do deserto.

Intercalando realidade, memória, sonho e alucinações (e progressivamente embaralhando esses estados), Shiko emprega diferentes estilos gráficos, por vezes optando por páginas de composição mais caótica e desenhos deixados a lápis, sem arte-finalização, como forma de ilustrar os estados de fluxo das lembranças dos personagens.

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Em outros, de progressão narrativa mais direta, opta por páginas com uso mais rigoroso das divisões dos quadros.

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Há ainda outra abordagem mais livre, utilizada pelo quadrinista em momentos de delírio. O melhor exemplo disso aparece em uma sequência na metade do primeiro capítulo da história, que funciona como ótima metonímia das opções estéticas, narrativas e temáticas de Shiko. Nela, após discutir com Cleonice por conta de sua busca pela turmalina azul deixada por seu pai, Tânia caminha em direção à mina e reconta um sonho:

Sem esforço, Shiko transita entre o realismo social, que ressalta em detalhes a precariedade material da vida de Tânia e Cleonice (a riqueza de textura e detalhes dos pratos de comida; os quadros em close apertado nos rostos cansados das personagens) e o sonho profético que, livre das restrições dos quadros, alça a história de Dedé Gago à estatura de folclore. Nestas páginas, Três Buracos não apenas dialoga com o imaginário dos tradicionais contos de botija, mas parece ainda apontar que, no país da precariedade e do desamparo, a realidade dura e o delírio não se diferenciam.

Lançado em bela edição pela editora Mino, Três Buracos passa a integrar o rico imaginário de riqueza e perdição em torno dos garimpos, tão pujante nos mais diversos cantos do Brasil profundo.


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