TREZE PERGUNTAS PARA RAFA CAMPOS ROCHA
/por Márcio Jr.
Comparações e rankings são invariavelmente uma tolice, mas acho difícil Rafa Campos Rocha não levar para casa o troféu de mais irascível quadrinista brasileiro da atualidade – se o prêmio existisse, claro. Criador da já inconfundível Deus, Essa Gostosa, o sujeito segue destilando sua verve em centenas de páginas de quadrinhos, produzidas num ritmo tão frenético quanto seus ataques ao reacionarismo político através das redes sociais – que, vira-e-mexe, covardemente lhe tiram do ar.
Não se trata de fazer gênero: Rafa é exatamente o que parece. Sou testemunha disso. Certa vez em São Paulo, após uma tarde regada à feijoada e pinga com café, quase nos meteu em três brigas com vizinhos de mesa – aos quais emitia sonoras provocações. O tempo todo. É justamente esta visceralidade, anfetaminada por rara erudição artística e política, que o leitor encontrará na entrevista a seguir – cujo número de questões está longe de ser aleatório. E não se esqueça de conferir Kriança Índia, gibi virtual da editora Guará, sua bola da vez.
1) Rafa, você possui background oriundo das artes visuais. O que o levou a fazer quadrinhos?
A arte tem uma ligação natural com os quadrinhos, desde a era das vanguardas, no início do século XX. Essa relação se acirrou nos anos 50 em diante, com a Pop art, e hoje muitos artistas citam os quadrinhos sem sequer saber disso. Eu comecei a fazer “quadrinhos como arte”, em 2007, publicando fanzines em museus e galerias. O “como arte”, entretanto, é uma espécie de praga da arte contemporânea, que busca a chancela da arte para qualquer atividade do artista, em uma revisão tenebrosa das vanguardas do século XX. Fiquei curioso em saber se poderia fazer quadrinhos para os leitores de quadrinhos, sem essa chancela e a proteção da instituição artística. Não sei se consegui, ou mesmo se é uma aventura que valha a pena, mas agora já fui longe demais, e não conseguiria voltar atrás. Também não creio que tenha deixado qualquer saudade no mundo da arte. Não era um artista tão bom assim.
2) Boa parte do quadrinho contemporâneo brasileiro abriu mão do uso de personagens. Você, por outro lado, parece ter uma certa predileção por criar e trabalhar com eles: Deus, essa gostosa; o Homem-de-Pijama; os Bodes; Kriança Índia... A que você atribui isso?
Atribuo isso justamente à minha fantasia de fazer quadrinhos-quadrinhos, e não quadrinhos “autorais”, ou quadrinhos “artísticos”. O personagem pode, justamente, obnubilar o artista, fazê-lo sumir. Desaparecer como “autor”, que acho uma figura lamentavelmente burguesa, é uma grande fantasia minha, desde os meus tempos de artista-artista.
3) Quem diabos é a Kriança Índia?
Kriança Índia é uma espécie de criatura sobrenatural, sem etnia, idade ou mesmo gênero conhecido, que assassina os invasores brancos da Amazônia. Ela foi inspirada em três personagens de quadrinhos que eu adoro; Conan, Cerebus e Judge Dredd. Cerebus é a versão underground e crítica de Conan. Dredd é a versão crítica dos justiceiros dos quadrinhos, ainda que seus leitores não percebam isso.
4) Você tem sido um dos críticos mais ácidos e consistentes aos quadrinhos de super-herói. Ao mesmo tempo, Kriança Índia parece seguir uma estrutura super-heroística: ela tem poderes, faz parte de uma espécie de supergrupo, enfrenta vilões, o gibi possui um caráter popular que remete aos antigos gibis mensais de banca, e assim por diante. Qual a ideia por trás disso?
Os quadrinhos de super-heróis não começaram fascistas, pelo menos no sentido programático que eles se tornaram, ao se aliarem ao governo estadunidense, o herdeiro natural do imperialismo genocida inglês e europeu. Os super-heróis, como todos os heróis, são uma fantasia autoritária e escapista, uma busca de sentido místico para uma situação histórica insustentável. O super-herói primordial, Superman, é um alienígena orfão, um imigrante ilegal, o grande inimigo do racismo fundador dos Estados Unidos da América.
Os super-heróis começam como uma obra de arte popular, quase anônima, como os cordéis. Sem grandes artistas, ou “autores”. Na minha infância, eram comprados na banca, por crianças, e não por adultos reacionários, rancorosos, e sexualmente frustrados, que exigem lombadas duras e papel brilhante cafona nas histórias de fisiculturistas nazistas com “interioridade” e “complexidade”. Acho que tento reviver a fantasia infantil do gibi de banca, o amor tátil que a criança tem pelo seu gibi. Uma fantasia reacionária e autoritária, pensando bem.
5) Rafa, esta não é a estreia da Kriança Índia. Você já havia publicado três edições impressas no gibi, num esquema totalmente do it yourself – além da presença constante nas redes sociais. Como está sendo essa experiência de lançar o personagem agora pela editora Guará, em versão digital? As vendas desta primeira edição virtual ficaram dentro das suas expectativas?
É uma experiência, como você disse. Meu público, que compra os meus gibis, já espera um produto de humor baseado na violência e no extermínio e criminalização dos ricos, meus super-vilões de sempre. Queria experimentar produzir para um público que tem como inimigo o deputado trabalhista, o grevista, o espião russo. Um público que rumina fantasias sado-masoquistas com homens fardados e que sofre de câncer no cólon por temer se lavar apropriadamente no banho. Enfim, o público de super-heróis. Queria entrar sorrateiramente na mente do leitor de gibis de super-heróis e convencê-lo de que sua vida e suas crenças não têm sentido, e que ele deveria se matar. Bom, todo experimento pode ter resultados nulos ou opostos à hipótese que o gerou, que foi exatamente o que aconteceu.
6) Periodicidade mensal é sempre um desafio. Essa é a meta?
Minha meta é um gibi mensal em papel por, digamos, 20 anos, desenhado e escrito por outras pessoas. Já não me ocupo do desenho, desde que Álvaro Maia assumiu, com brilhantismo, essa parte. O que está nos planos é, também, uma novela gráfica anual, com uma só história, por 20 anos. Sempre desenhada por Álvaro e redigida por mim, se eu conseguir sobreviver ao governo atual, é claro.
7) Em Kriança Índia #1, você já chega com o pé na porta, dando um cacete no Adestrador – clara sátira ao personagem fascistoide Doutrinador. A coisa fica ainda mais irônica pelo fato da Guará ser a antiga casa do personagem. Tem algum processo à vista?
Sim, um sujeito me escreveu aqui, com ameaças vagas. Mas estão ameaçando me processar e prender desde que comecei a publicar, pela Cia das Letras e Folha de São Paulo, mais de dez anos atrás. É só mais um da longa lista de filhos-da-puta que vão continuar aparecendo, enquanto existirem nazistas autoritários rastejando por esse mundo.
8) Essa edição da Guará marca a estreia do surpreendente Álvaro Maia em Kriança Índia, dividindo os desenhos contigo. Onde nasceu essa parceria e como está sendo a experiência de ser apenas roteirista? Aliás, qual o método de trabalho de vocês?
Segui o conselho do Tamburini, que dizia que era importante procurar alguém que desenha melhor que você para fazer seu personagem. Álvaro Maia é um gênio gráfico, como você disse, surpreendente. Ele me escreveu perguntando se eu tinha interesse em que alguém desenhasse algumas histórias da Kriança Índia. Mandei um roteiro pra ele no primeiro dia, e desde então ele não parou de me assustar com sua liberdade e capacidade técnica. Ele me aposentou, literalmente, do cargo de desenhista da Kriança Índia.
9) Leitor de super-herói, em sua maioria reaça, vem sempre com aquela conversa que não misturar quadrinhos com política. O que você pode dizer a respeito dessa asneira?
Cara, acho que dá pra falar de arte sem falar de política, dá pra falar de arte, inclusive, anti-política. Nem toda a arte é politicamente engajada. Aliás, muito da melhor arte é politicamente pacificada. É muito raro artistas como Laerte e Brecht, que são primores técnicos e, além disso, tem o coração do lado certo do peito. O que não dá é tentar coibir o artista de falar politicamente, ou julgar uma obra pelo seu engajamento político. Alan Moore milita claramente por um anarquismo pequeno-burguês racista e imperialista, e isso não muda em nada a qualidade de seu Monstro do Pântano, por exemplo.
10) Kriança Índia traz um diálogo com a realidade factual do Brasil, com alegorias acerca da vida política contemporânea. Quais as implicações dessa escolha?
As de sempre. As pessoas que detestam o atual governo, como eu, e não acreditam em uma solução pacífica para deter a recolonização do Brasil, como eu, vão gostar e se identificar. As pessoas que se identificam com o invasor, os colaboracionistas, vão odiar e me acusar de racismo reverso.
11) O panorama do quadrinho brasileiro autoral nunca foi tão rico e diverso. Como você se enxerga nesse meio?
Um cara que deve tudo à generosidade dos meus leitores, editores e vendedores de gibi. Os editores são tantos, de sites a jornais, que não vou enumerá-los, para não esquecer ninguém. A mesma coisa com as lojas de gibi e os leitores. Também não posso esquecer dos meus companheiros de estudos de quadrinhos. Acho que a generosidade e curiosidade dessa gente é que me fez existir, nesse meio.
12) Quem são os maiores quadrinistas do Brasil?
Sao tantos, mas vou falar de um cara que influenciou artistas mais velhos e trouxe uma nova cara para os quadrinhos brasileiros: Diego Gerlach. Ele reinventou o fanzine, transformando-o em uma obra de arte. Seu desenho é filosoficamente sofisticado, quase sempre em atrito crítico com mestres e estilos gráficos do passado, renovando o próprio conceito de “autor” em quadrinhos. Tem o efeito nos quadrinhos brasileiros que o Giorgione teve na pintura veneziana.
13) O que são as histórias em quadrinhos para você?
Uma forma de arte.