Top 50 melhores leituras da Raio Laser em 2022
/Mais um ano desgracento se passa e a lista de melhores do ano da Raio Laser se mantém fiel aos seus princípios desde o início: leituras instigantes, originais, de qualquer época e qualquer lugar (e que tenham sido realizadas em 2022), seguindo o principal critério de ser “além”, ou seja, que apontem direções e sirvam como guia de descobertas interessantes para os nossos leitores. Tem de tudo um pouco: HQs europeias, sulamericanas, brasileiras, mangás, super-heróis, clássicos, zines, quadrinhos abstratos, projetos ousados e coisas extremamente simples. De inúmeras épocas, gêneros e nacionalidades. Isso não impede, por exemplo, que tenhamos ficado atentos, por exemplo, aos lançamentos domésticos (de coisas nacionais e estrangeiras). Desta vez resolvemos selecionar as 50 melhores leituras da equipe (em ordem alfabética) e aglutinar em um só longo post - para que você possa explorar demoradamente. Fique ligado nas iniciais ao final de cada texto, que indicam a sua autoria - e passeie também pelos diferentes estilos dos escribas da Raio. Divirtam-se e bom 2023 para todo mundo! (CIM)
por Bruno Porto, Ciro I. Marcondes, Lima Neto, Marcão Maciel e Márcio Jr.
Alice Guy - Catel Muller e José-Louis Bocquet (Casterman, 2021): Didático, delicadamente ilustrado e conscientemente convencional em sua forma de quadrinizar, Alice Guy segue a cartilha da dupla Catel e Bocquet (de Olympe de Gouges e Kiki de Montparnasse, lançados no Brasil pela Record): história contada com entusiasmo abordando personalidades femininas revolucionárias à sua maneira, em seu tempo. No caso de Alice-Guy Blaché, uma das mais importantes pioneiras do cinema mundial (a primeira mulher a dirigir filmes, a primeira a ter seu próprio estúdio, pioneira na produção de longas-metragens, etc.), Catel e Bocquet se esmeram em uma minuciosa reconstrução da história da criação do cinema francês (e, logo, do cinema mundial), em instâncias não-mitificadas ou ignoradas por historiografias básicas: a evolução de tecnologia do cinema, da indústria, da exibição, do público, entre outras coisas. Isso abre espaço para, além da própria Alice Guy, a abordagem sobre personagens não tão conhecidos nessa trajetória, como o industrial Léon Gaumont, o inventor Georges Demenÿ e o cineasta Louis Feuillade. Logicamente, a melhor parte ilumina a astúcia e enorme talento da própria Mme. Guy, que teve de se adaptar às condições patriarcais duríssimas da belle époque para se sobressair em um mundo de pouquíssimas oportunidades para mulheres. A edição da Casterman é acompanhada ainda de uma riquíssima cronologia da vida da cineasta, além de biografias bastante completas dos personagens coadjuvantes da história. (CIM)
Al Otro Lado del Vidrio – Antonia Bañados (Archipiélago, 2021): Esta pequena peróla do quadrinho chileno contemporâneo foi publicada graças ao apoio do governo local e teve somente mil copias impressas. A trama, autobiográfica, envolve a ida de uma jovem chilena para Edimburgo, no intuito de fazer um mestrado em arte contemporânea. A jornada no exterior é um desafio para Antonia e, aos poucos, desvela medos e ansiedades, tão comuns para quem está diante de momentos pessoais e profissionais decisivos. A principal dificuldade, entretanto, será superar a própria insegurança para conseguir montar um projeto final minimamente decente, com algum laivo de originalidade. Sua instalação artística, que pretendia estudar a interação de um axolote com uma paisagem futurista artificial, serve como analogia para a própria situação de Antonia, verdadeira alienígena numa terra estranha. A arte de Antonia é de uma beleza rara, hábil o bastante para retratar com sutileza o desabrochar de uma jovem alma feminina. Em resumo, vos digo: Al Otro Lado del Vidrio é um puta gibi, implorando para ser lançado por alguma editora brasileira descolada. (MM)
O Amor Infinito Que te Tenho e Outras Histórias (4ª edição) - Paulo Monteiro (Polvo, 2021): Lançado originalmente em 2010 e agraciado com o Prix Sheriff D'Or 2013, o livro reúne uma dezena de HQs curtas do autor português Paulo Monteiro, mais conhecido por nós brasileiros por estar a frente do Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja — sobre o qual conversou conosco aqui . Monteiro tece delicadas narrativas ilustradas em primeira pessoa, sempre de forma intimista embora alterne aspectos interiores e externos nas reflexões de seus personagens. Na excelente “A tua guerra acabou” (a única que recebe balões de diálogo além de recordatórios), aborda as memórias que um menino tem de seu avô, a partir da pequena herança que recebe quando este morre. Já na reflexiva “Para lá dos montes”, o protagonista descreve sua relação com o que o cerca, partindo de seu próprio corpo e chegando até as fronteiras da cidade que o poderiam levar a outras terras. Hábil em encontrar representações para sentimentos como angústia, encanto, saudades ou orgulho, seu desenho em preto e branco é versátil, adotando a dramaticidade (“Os teus róseos lábios”) ou a leveza (“Irei ver a amada”) que ache necessária. (BP)
Andei Por Entre as Frestas e te Trouxe Flores Pedras e Algumas Miudezas – Crumbim (Mino, 2022): Coletando registros distintos, entre texturas, matrizes digitais e quadrinhos desconstruídos, Crumbim realiza aqui em um experimento dos mais radicais já pensados para as HQs brasileiras, lente para a compreensão dos últimos anos desta desvalida nação. Mais sobre esse quadrinho AQUI. (CIM)
Apesar de Tudo – Jordi LaFebre (QS Comics, 2021. Tradução de Telmo B.M. Diniz): A história de amor entre uma mulher bem casada e seu pretenso amante é um primor da nona arte. Contada em ordem cronológica inversa, o improvável romance de uma prefeita com um aventureiro mulherengo é repleto de soluções estéticas e metáforas visuais de tirar o fôlego. Mais que tentar descrever a riqueza narrativa desta obra-prima moderna, faço o convite para um mergulho de cabeça neste trabalho que sacramenta o talento de Jordi LaFebre, desta feita atacando também de argumentista. Apesar de Tudo é uma história de paixão não consumada, temperada com altas doses de melancolia e certamente provocará efeitos catárticos em quem já parou para refletir sobre como determinado relacionamento teria se desenrolado se as conjunturas de tempo e espaço tivessem sido diferentes. No desfecho do gibi – neste caso já no primeiro capítulo – o leitor se depara com um vendaval de emoções, cuja passagem avassaladora só deixará uma pergunta (sem resposta): vale a pena gastar a vida inteira amando só pela metade? (MM)
Apocalipse, Por Favor – Felipe Parucci (Lote 42, 2022): Reedição do trabalho homônimo de 2015, Apocalipse Por Favor expõe todas as contradições e neuras de um Brasil prestes a ser destruído por um meteoro. Carregado de deliciosas piadas explícitas e escondidas, Parucci faz uma leitura ácida das várias hipocrisias presentes em nossa sociedade. O caleidoscópio de personagens, tipos que poderíamos topar em qualquer esquina, desfila seres que oscilam entre pulsões de desejo e de morte. A iminente destruição da Terra coloca uma lente de aumento sobre as motivações ontológicas mais profundas da humanidade e a visão não é das mais belas. Além de funcionar como título, “Apocalipse, por favor” parece mais um chamamento de ajuda aos céus para que tudo recomece do zero o mais rápido possível. (MM)
Arlindo - Ilustralu (Seguinte, 2021) e Escuta, Formosa Márcia - Marcello Quintanilha (Veneta, 2021): Escuta, Formosa Márcia e Arlindo foram os dois melhores quadrinhos nacionais que li ano passado. Até aí, chovi no molhado: ambos foram laureadíssimos, elogiadíssimos, resenhadíssimos. Ambos são, literalmente, bons de doer. Melhor falando: achei-os impactantes porque foi muito doloroso lê-los. À primeira vista parecem não ter muito em comum, dados os distintos graus de estilização de desenho de cada ábum — Arlindo é fosforescentemente cartunesco, Márcia é quintanilhamente econômica, factual. Ambos, no entanto, dão conta de representar eximiamente as situações construídas por seus autores. Em comum, paletas de cores originais, que anulam estereótipos sociais e raciais dos personagens e dos Brasis que estes habitam: a enfermeira Márcia é uma sofrida mãe com dois empregos e uma filha que se envolve com traficantes em uma comunidade fluminense, enquanto Arlindo Júnior é um adolescente gay que enfrenta o preconceito da família e da sociedade em uma pequena cidade do Nordeste.
Cheguei a comentar com o próprio Marcello a angústia que seu livro me trouxe. Estávamos em Angoulême, poucos dias antes dele amealhar o Fauve d'Or de 2022, e ele fazia uma daquelas caprichadíssimas dédicaces com pincel no meu exemplar da Veneta (que tem um formato ótimo, um tantinho menor e mais ergonômico que o francês da Çà et là). Disse-lhe que sem sobra de dúvidas achava seu melhor trabalho, mas que gostava mais do [anterior] Luzes de Niterói, por ser mais nostálgico e, embora com momentos dramáticos, menos… aflitivo. Achava que, como carioca, os perrengues que Márcia passava eram-me muito próximos: a insegurança urbana, a sensação de beco sem saída, todo o vernacular da HQ remetiam a um desconforto com o qual me identificava.
Mas eu me equivocara. Esse suposto reconhecimento vai meio que por água abaixo porque sou um homem branco hétero cis de classe média, nascido e criado na Zona Sul do Rio de Janeiro, com privilégios que nem Márcia nem Arlindo tem em seus mundos de ficção, infelizmente tão reais. Lugar de fala por lugar de fala, meu amigo Lima Neto ressalta o fato de Arlindo trazer a narrativa do gay na infância, o que não é tão comum no histórico das HQs que abordam temáticas e personagens LGBTQIA+. Impossível demarcar com certeza os porquês de cada leitor ao apropriar-se de uma HQ. Nestes casos, eu aposto na sensibilidade de seus autores. O que me imergiu neste dois álbuns foram seus universos visuais únicos, escorados por diálogos verossímeis e o desenrolar tão inesperado quanto real de suas tramas — e essa absorção é empática e, por isso mesmo, incômoda. (BP)
Aurora nas Sombras – Fabien Vehlmann e Kerascöet (Darkside, 2019. Tradução de Maria Clara Carneiro): Aurora nas Sombras é um divertido conto de fadas estilo freak show, que se inicia quando as criaturas fofinhas habitantes do corpo de uma garota – que acabou de falecer – têm de procurar nova moradia. Nesta aventura distorcida, que soa como uma Alice no País das Maravilhas reimaginada por David Lynch, Aurora e seus ex-colegas de quarto têm de lutar pela sobrevivência, apelando para qualquer tipo de recurso que estiver à mão, mesmo que isso inclua canibalismo, profanação ou a boa e velha trairagem. No final das contas, o que está em jogo para Aurora e sua turma é o fim da infância, aqui representada por um abrupto rito de passagem, que demonstrará que o “cada um por si” da vida adulta abalará convicções e moldará indelevelmente o caráter de todos, para o bem ou para o mal. (MM)
Autofagia # 01 Quadrinhos & Abstração - Vários Autores (ORG: Guilherme E Silveira e Vizette Priscila Seidel, Risco Impresso, 2021) – Autofagia é uma antologia de quadrinhos experimentais que estreou em 2021 com uma excelente edição sobre quadrinhos abstratos. Esta edição reúne 60 HQs e seis ensaios abordando o tema da abstração nas páginas de quadrinhos. A objetividade dessa descrição é enganosa. Sim, são quadrinhos, mas são quadrinhos que avançam sobre estas definições buscando transgredir fronteiras e desnudar significações confortáveis. Como diz o nome da revista, são HQs que se alimentam do dispositivo que as define, os explicita. E tendo em mente essa dissolução de fronteiras, o livro se inicia com um apanhado de obras de dois poetas e artistas que usavam os signos advindos dos quadrinhos como matéria prima, nomes representativos do movimento Poema/Processo: Moacy Cirne, Álvaro Sá.
A partir daí as intenções ficam claras e nos resta transitar por páginas delirantes, questionadoras, fragmentárias, tensionando tanto o que se define como quadrinho como o que se diz por abstração. O que se revela é o processo. Um transitar entre diferentes estados da matéria sígnica e seus paradoxos: do vácuo de sua solidez à riqueza múltipla de sua viscosidade. Ajudando nesse movimento translatório e translúcido estão os ensaios de nomes significativos da pesquisa em quadrinhos no Brasil: Alexandre Linck, Lielson Zeni, a prata da casa raiúca Ciro Marcondes, Valter do Carmo Moreira, Amir Cadôr e Guilherme E Silveira e uma introdução de Maria Clara Carneiro.
Guilherme também é responsável pelo elegante e arrojado projeto visual do livro, tendo o cuidado de providenciar confortos visuais para aqueles momentos em que o olhar já busca por banquinhos para se sentar e respirar. E você vai precisar. Do irreverente desfile de manchas de Bruno Borges, passando pelo minimalismo sígnico de Rivane Neuenschwander, a biologia estética de Hairam Sotner, o abismo envolvente de Antoine-Toussant Casanova, a anti-narração de Pedro Moura e João Sequeira… e muito, muito mais. Autofagia é um livro muito bem vindo e bem executado e merece ser lido naqueles dias propícios à reflexão, com temporalidade própria e aquele arquivinho do word básico aberto. (LN)
Balada Para Sophie – Filipe Melo e Juan Cavia (Pipoca & Nanquim, 2022. Tradução de Luciane Yasawa): Um pianista tão genial quanto rabugento – agora vivendo em semi reclusão – é convidado por uma jornalista a relembrar sua longeva carreira. Este é o mote de uma trama que revelará as diversas facetas de um sujeito obstinado pelo sucesso, mas secretamente frustrado por estar sempre à sombra do principal rival, um músico mais talentoso e imune às pressões do mercado. Outro motivo para os dissabores de Julien é o fato de seu adversário ter se casado com a mulher mais sensacional que cruzou sua vida, o que só contribui para aumentar a sensação de vazio de sua fama sem glória. Trata-se de mais um sucesso da dupla Filipe Melo e Juan Cavia, que já havia provocado burburinho em Os Vampiros (Sesi, 2018). Recheada de detalhes deliciosos – como a própria capa, que forma um “desenho secreto” com as teclas do piano – Balada para Sophie batiza também uma sinfonia (que pode e deve ser ouvida durante a degustação do gibi) composta por Filipe Melo, que também atua como pianista na vida real. Apesar do final previsível, Balada para Sophie deixa claro que o combo português/argentino continua afinado. (MM)
Barrela – João Pinheiro (Brasa, 2022): Se me perguntarem o que um autor precisa ter para fazer uma boa adaptação transmidiática, a resposta é simples: MORAL. Dito isso, ninguém no quadrinho brasileiro tem mais moral que João Pinheiro para transformar Barrela – maldito texto dramatúrgico de Plínio Marcos – em HQ. A prova está condensada no preto-e-branco árido das páginas, na representação crua dos personagens, na dureza do traço que em nada trai a dureza da narrativa de Plinião. Nas mãos de outro quadrinista, não seriam pequenas as chances de transformar a empreitada num embuste risível. (MJR)
A Bomba – Didier Alcante, L.F. Bollée e Denis Rodier (Pipoca e Nanquim, 2022. Traduzido por Rafael Meire): Não se engane pelo título lacônico. A Bomba é um estudo extenso e detalhado sobre a criação, o uso e os meandros geopolíticos e estratégicos em torno da fissão nuclear controlada e seu filho horrendo: a bomba atômica. Esse estudo é apresentado na forma de uma HQ gigantesca, instigante e surpreendente. Não são poucos, e nem recentes, os estudos das propriedades didáticas dos quadrinhos. Eu mesmo sou defensor do uso de quadrinhos como recurso educacional e consigo ver incontáveis vantagens na adoção total do conteúdo didático das escolas por quadrinhos concebidos, escritos e desenhados por profissionais competentes que saibam equilibrar os temas com o aprendizado.
Disso resultaria uma revolução no ensino e um avanço não apenas na educação de uma sociedade, quanto criaria um mercado gigantesco de HQs e profissionais de calibre que por sua vez criariam também trabalhos pessoais de quadrinhos com habilidades narrativas já bem desenvolvidas. A Bomba certamente contribui para esse aspecto educacional dos quadrinhos, abordando física, história, filosofia, ética, tudo em uma HQ que também é a realização de um sonho. Didier Alcante é um roteirista que compartilhou sua infância com uma família japonesa residente na França. Da amizade entre as duas famílias nasceu um fascínio pela cidade de Hiroshima, primeiro alvo militar a ser aniquilado pelas forças atômicas. Alcante transformou seu fascínio em pesquisa e, com a ajuda de Bollée, em um roteiro que intencionava revelar a corrente de eventos que levou ao bombardeio da cidade japonesa. Em uma decisão executiva feliz, os roteiristas franceses convidaram o quadrinista canadense Denis Rodier, um experiente desenhista com mais de 10 anos trabalhando em títulos da DC Comics como Superman e Action Comics. Rodier nunca foi um desenhista de destaque no acirrado mercado norte-americano. Competente, era um trabalhador braçal dedicado à suas páginas cuja fama no mercado vinha de sua disciplina ferrenha que garantia as entregas no prazo correto.
O resultado da união desses profissionais da narrativa visual é uma HQ reveladora, carregada de personagens tridimensionais e de muita informação científica. Como toda HQ deste tamanho, é perceptível como o entrosamento entre seus autores vai aumentando com o passar das páginas. A narrativa se inicia um tanto fria e engessada, o traço de Rodier ainda carregado dos macetes adquiridos da indústria dos quadrinhos norte-americana. Os cientistas, militares e políticos da trama ainda desconhecidos e distantes. Tudo muda já a partir do segundo capítulo. A narrativa engrena ao mesmo tempo em que a arte de Rodier evolui, se libertando das expressões carimbadas com que trabalhava na DC Comics (um recurso profissional de inegável valor quando se trata de prazos) e passando a representar sutilezas de traço e rostos mais distintos e de expressões variadas com incrível homogeneidade. O que vem muito a calhar quando somos apresentados a uma legião de personagens históricos que desfilam pela página, amarrados pela teimosia heroica de Leo Szilard, físico alemão de ascendência judia que foge para os Estados Unidos no início da II Guerra Mundial e principal responsável por comprovar a fissão nuclear.
Szilard lidera um grupo de cientistas em um esforço para orientar o governo dos EUA a construírem a Bomba, diante da realidade de que a Alemanha já estava adiantada nesse processo por meio de outras tecnologias de fissão. Depois de todo o esforço e, tendo conseguido convencer o governo a desviar bilhões de dólares do orçamento para um projeto ultra-secreto, Szilard torna-se seu maior opositor, realizando abaixo assinados e convencendo nomes do alto escalão a explodirem a bomba no oceano como demonstração de seu poder (obviamente irritando os militares envolvidos no projeto). Como se sabe, todo o esforço de Szilard é inútil, e o chamado Projeto Manhattan segue em frente de maneira inexorável, esmagando reputações, liberdades civis (em um dos momentos mais revoltantes de uma narrativa cheia de momentos revoltantes) e incontáveis vidas em ambos os lados do front. A Bomba é um libelo anti-nuclear que pulsa com vida. A arte de Rodier atinge momentos de maestria, com uma arte final soberba e diagramações muito eficientes, transitando entre momentos de linearidade intensa com intervalos puramente imagéticos em que a narrativa deixa o leitor sem fôlego.
Um ponto negativo que vale a pena ressaltar é a narração interna machadiana feita pela própria bomba atômica, um recurso estilístico dispensável que erra ao abrir espaço pra animismo que não faz sentido nenhum no contexto do que está sendo contado. Por outro lado, a HQ não se foca nos efeitos da Bomba. Isso é mostrado por algumas páginas, mas seus autores estão bem cientes de que quadrinhos como Gen Pés Descalços já fizeram isso com uma propriedade que eles nunca alcançariam. Os paratextos que acompanham a HQ também são muito informativos, esclarecendo o processo, a história do sonho dos autores em realizar a HQ e uma amostra da quantidade absurda de material de pesquisa que ainda ficou de fora dessas quase 500 páginas de quadrinhos. (LN)
Cartas Para Ninguém – Diana Salu (Padê Editorial, 2021): Estas linhas exigem que sejam pessoais. Conheci o trabalho desta quadrinista em uma época em que ela era outra pessoa e seu quadrinho, outro quadrinho. Inclusive um de seus outros trabalhos já pertenceu a uma outra lista como esta, o quadrinho O Aguardado. Por motivos acadêmicos e econômicos, me vi afastado da atividade prazerosa de acompanhar os lançamentos de HQs de qualquer nacionalidade. Foi durante esse período que surge Diana. Eu a encontro pela primeira vez em uma feira Motim, nas catacumbas do centro antigo de Brasília conhecido como CONIC. Não a reconheci como ela era anteriormente, e também não a conheci como ela era naquele momento. Só a reconheci alguns meses depois e achei que isso significava que também à conhecia. Só percebi algum tempo depois que precisava, de fato, conhecê-la novamente.
Veio a pandemia, e após seu momento mais crítico, voltaram os circuitos de feiras, e então esse (re)conhecimento aconteceu. Novamente, em uma feira Motim, neste ano de 2022. Sabendo que já gostava do seu trabalho, adquiri este Cartas Para Ninguém sem pestanejar. Foi um encontro inesperado. Inesperado porque Cartas é diametralmente oposto a O Aguardado, e inesperado porque não nutria expectativas de me reconhecer em suas páginas. Cartas é uma carta náutica, escrita ao mesmo tempo em que se navega, o registro de um processo. Em suas primeiras páginas, uma frase estabelece uma conexão imediata: “Tenho dificuldade em lidar com as pessoas que eu fui.” Cartas é um livro-poesia recheado de quadrinhos, mas não somente quadrinhos. Ou melhor, é uma poesia em que os quadrinhos estão presentes exatamente por sua potência poética. Diana escreve sua poesia e faz seu quadrinho com a objetividade de quem carrega essas duas comunicações dentro de si. Indistinguíveis. Seu lápis não discerne o que é letra e o que é imagem, é tudo grafite que se desprende e se aloja nos poros da página. “Um movimento da minha mão”. Quando é só palavra, seu texto é singelo e poderoso. Riscos resistindo ao vazio carregado da página. Quando é quadrinhos - e não se enganem, tem muito quadrinho – alterna momentos de traços claros e objetivos com riscos delgados e manchas como brumas à beira de um esquecimento.
Flertando com o abstrato, Cartas é uma HQ que explora diversos caminhos linguísticos. Sem sinal de esforço. Uma cartografia que se desenha com a viagem, e não antes. É preciso ser honesto. Minha trajetória como homem gay encontra ressonâncias com a trajetória da autora, Diana, como Mulher Trans. Mas Cartas não entrou na minha lista de melhores quadrinhos de 2022 porque ele trata de ressonâncias. Sua qualidade não está no desenho de sua cartografia, esse é para ninguém a não ser a autora. Sua qualidade está no afetar a todes que queiram fazer seus próprios mapas, suas próprias cartas náuticas. Quis (re)conhecer Diana e me (re)conheci. Obrigade, queride. (LN)
Cool Parano: Un Testament Graffiti - Benoit Carbonnel (Éditions Même Pas Mal, 2021): Escrito e ilustrado por um conhecido grafiteiro da cidade de Marselha, na França, Cool Parano é apenas seu segundo romance gráfico e já demonstra uso absoluto da linguagem dos quadrinhos e uma montanha de referências de máxima ordem – em especial o ídolo maior parisiense de quadrinhos contraculturais da Métal Hurlant (e outras revistas), Jano. Na verdade Carbonnel realiza um sofisticado entrelaçado documental (mais ao estilo verborrágico e rebuscado de Joe Sacco do que ao estilo telegrafado de um Box Brown) para ilustrar a jornada de um alter ego grafiteiro em todas as suas intempéries: são listas, grades e até infográficos sobre marcas de tinta, tipos de lettering, muros, além de toda a uma antropologia urbana do lifestyle em si. Tudo isso somado a um preto e branco sujo, desordenado e ao mesmo tempo perfeitamente programático, posicionando seus seres antropomórficos em um espaço onde a cidade, suas ruínas e o caráter opressivo do mundo urbano são os verdadeiros personagens. Mais sobre esse quadrinho AQUI. (CIM)
Crepúsculo do Morcego – Josh Simmons e Patrick Keck (Monstra, 2022. Tradução de Guilherme Lorandi): Se ao passar os olhos pela sátira de Josh Simmons ao mais popular super-herói da DC Comics você ficar com a impressão de que se trata de uma HQ underground com altas doses de sarcasmo, pode comemorar: você está certo. Mas não muito. Crepúsculo do Morcego vai muito além da mera zoação (apropriadamente) desrespeitosa a uma milionária commodity da cultura pop. Simmons encara de frente a tolice que desde os anos 80 o Batman representa para leitores semianalfabetos: a de que seria um super-herói “realista”. Em A Marca do Morcego, através de seu traço denso e sujo, o quadrinista eviscera o que poderia haver de real num personagem desta natureza. Já na HQ que dá nome ao álbum, a coisa se aprofunda. O mundo acabou e só restaram Batman e o Coringa – ou melhor, Morcego e o Gozador. Com o apoio de Patrick Keck na arte, Simmons cria um conto de humor sombrio e perturbador, que facilmente rivaliza com A Piada Mortal – sem apelar para a suposta seriedade da HQ de Alan Moore e Brian Bolland. De modos que Crepúsculo do Morcego é muito mais do que parece. Um gibi poderoso, divertido e virulento, que joga a pretensão às favas – e que deveria ser leitura obrigatória para todo decenauta safado. (MJR)
Crime e Poesia – David L. Carlson e Landis Blair (Editora Darkside, 2022. Tradução de Bruno Dorigatti e Paulo Raviere) – Antes de mais nada, vamos já tratar do maior problema dessa HQ: amigos editores, “Acidente de Caça: Uma História de Crime e Poesia” NÃO é um título complexo. Ainda que fosse um filme, já que o Brasil está acostumado com adaptações risíveis de títulos de filmes no cinema, mas não é o caso. Trata-se de uma HQ. Uma puta HQ, que teve seu título reduzido ao pareamento de duas categorias de prateleira de livraria. Ufa, bom botar isso pra fora. Seguindo em frente. Crime e Poesia é um daqueles quadrinhos que chamam a atenção. Um volume grande em um formato não usual com uma arte de hachuras obsessivas de encher os olhos em páginas cobertas de tinta preta. A capa já deixa claro que o olho, e o olhar, são os temas mais importantes do quadrinho. A HQ conta a história real (o que quer que isso queira dizer) de Charlie e seu pai Matt Rizzo. Após a morte da mãe, ainda novo, Charlie vai morar com o pai na Chicago de 1959. Cego devido a um acidente de caça ocorrido há muito tempo, Matt é um escritor e poeta que guarda um segredo: cumpriu pena na cadeia quando jovem. Não vale a pena adentrar os meandros desse segredo (ainda pretendo abordar com mais profundidade esse tema em um artigo aqui para a Raio), basta dizer que a prisão envolvia a razão pela qual tornara-se cego.
Ao relutantemente narrar sua história, Matt revela também porque decide trilhar o caminho da poesia e como esse caminho abre seu coração e mente para a leitura de autores clássicos como Homero, Virgílio, Shakespeare, John Milton, Walt Whitman, Ralph Emerson e, especialmente, Dante Alighieri. Essa trajetória é ao mesmo tempo fantástica e inverossímil. O fato é que o poder de Crime e Poesia está na soma de suas partes, na sua composição intrincada e na repetição de temas significativos que amarram seus sombrios capítulos. A arte de Blair passeia pelo indie underground norte-americano, porém com uma notável falta de habilidade no traço. O lhe falta no quesito arte, porém, ele compensa com layouts inventivos, sequências enxutas e muita, muita hachura! A caneta obsessiva de Blair ressoa os comportamentos de seus personagens, especialmente o dia a dia preciso de Matt Rizzo e como ele aprendeu a enxergar em um lugar em que a escuridão toca a todos. Parte da inverossimilhança parte exatamente da descrição do dia a dia da cadeia.
Os autores não se preocupam muito em transmitir todos os conflitos que podem existir entre um prisioneiro e o ambiente em que vai cumprir sua pena e tudo acaba com um ar de estranha irrealidade. Porém, a soma dessas peças irregulares revela uma HQ ambiciosa e que tem sucesso em suas ambições. Diga-se de passagem, Crime e Castigo é uma HQ que se adequa de forma notável ao mote da editora Darkside. Trata de maneira soberba seus temas relacionados à poesia clássica e seu potencial de abrir os olhos do indivíduo e tem em seu cerne uma narrativa de true crime indigesta que funciona como um contrapeso amoral à narrativa. Como dá pra perceber, o tema do olho é a metáfora motora deste quadrinho. Não apenas na cegueira de Rizzo, mas também na forma ocular com que é construída a prisão em que cumpre pena, o princípio arquitetônico da casa de inspeção, ou o Panóptico, e suas relações estruturais com os círculos do inferno de Dante. Crime e Poesia é sobre atingir a liberdade, principalmente o tipo de liberdade da qual é impossível se privar, não importa o tamanho da prisão. (LN)
Crossover (Volumes 1 & 2) - Donny Cates, Geoff Shaw e outros (Image, 2021 / 2022): Esse não é aquele crossover maroto dos seus avós, em que o Lanterna Verde e o Átomo (personagens da All-American Publications) se uniam ao Flash e ao Senhor Destino (pertencentes a editora irmã National Periodical Publications) e outros para formar a Sociedade de Justiça nos anos 1940. Nem é o crossover dos seus pais, quando as mega-rivais Marvel e DC faziam rinha de seus personagens — de Superman contra Homem-Aranha (1976), Hulk contra Batman (1981) e Novos Titãs & X-Men (1982) até o horrendo DC versus Marvel (1996) e o sublime Vingadores & Liga da Justiça (2003). Aqui, a trama tem início quando personagens fictícios dos quadrinhos atravessam para o “nosso” mundo real e iniciam uma típica mega batalha de super-heróis na cidade estadunidense de Denver, até que esta é isolada por um domo. A destruição e mortes causadas gera enorme animosidade da sociedade com a cultura quadrinista, descambando até para o assassinato de roteiristas como Robert Kirkman (Invincible, The Walking Dead) e Brian K. Vaughan (Saga, Y: O Último Homem). Unidos pelo acaso, a funcionária de uma gibiteria incendiada e o filho de um pastor anti-quadrinhos buscam infiltrar-se no domo para reunir uma garotinha aos seus pais, sendo ajudados ou atrapalhados por personagens publicados por editoras como Dark Horse, Valliant e a própria Image (há easter eggs de personagens DC e Marvel, claro), que foram cedidos para esta HQ por seus criadores — como Madman, The Savage Dragon, Witchblade, The Paybacks, Astro City, Black Hammer, Powers, Atomahawk, Glory e muitos outros. Um exercício original e bem realizado de metalinguagem para quem curte (inclusive criticar) o gênero. (BP)
Detetive Ayahuasca, Investigador do Insólito & Tranzomba - Sama (Independente, 2022): Tony Jagube é o seu típico detetive particular pulp, mas que exerce sua profissão tomando ayahuasca, bebida que altera a consciência e o induz ao estado xamânico, permitindo que se comunique com o mundo dos mortos. Ao investigar a violenta morte do filho do governador, descobre que a vítima e seus amigos costumavam assassinar travestis — o que nos leva à outra HQ da publicação, Tranzomba, cuja leitura se dá a partir da quarta capa invertida. Essa conexão física das duas HQs independentes — que não as dispõe em sequência, mas em consequência — dada ao suporte de leitura é um grande achado do autor, que simultaneamente concede uma espécie de final feliz à protagonista de Tranzomba, bem como a revelação do mistério investigado por Jagube. (BP)
Os Estranhos Hóspedes do Hotel Nicanor – Ota e Flavio Colin (MMarte editora, 2022): Os Estranhos Hóspedes do Hotel Nicanor, ou simplesmente Hotel Nicanor, foi a leitura mais divertida e comovente de 2022. Não apenas por se tratar de dois nomes basilares da cultura brasileira que não estão mais presentes - o incrível Otacílio d’Assunção Barros (o Ota) e o mestre absoluto Flavio Colin - mas também por ser registro do esforço tocante de se construir um horizonte para o quadrinho brasileiro de resistência em um mercado tomado pelo material de fora. Duas vidas dedicadas à HQBR, lutando incessantemente uma luta injusta que já havia deixado vários nomes de peso pelo caminho sem o reconhecimento merecido. Hotel Nicanor reúne um Ota já macaco velho, versado tanto nos meandros do mercado nacional de quadrinhos, quanto no cotidiano editorial das editoras que publicavam quadrinhos importados em terreno nacional. Se alguém possuia a habilidade de criar HQs ao gosto nacional mas com pegada para concorrer com os supers ou os Disneys, esse era o Ota.
Por isso mesmo ele sabia que precisava de um desenhista como Colin como parceiro. Como o próprio editor desta republicação, Márcio Jr., explica em seu texto de apresentação, o Ota já vinha de um percurso de sucesso na editora Vecchi. No início dos anos 80, Ota já tinha feito da revista Spektro um título de terror com 100% de mão de obra brasileira. O mercado para as HQs de terror era enorme nesse período. Mesmo com os títulos da Marvel, ainda havia público sedento, e os títulos nacionais entregavam mais do que a encomenda, adicionando um sexo e um humor malicioso em meio às víceras e monstros. Mas não havia nada como Hotel Nicanor quando ela estreou em Fevereiro de 1981 nas páginas da Spektro, nas palavras de Márcio. Conheci o sofrido Nicanor neste ano de 2022, e mesmo depois de todas essas décadas, a HQ é de uma simpatia e irreverência pouco encontradas nas páginas de um quadrinho.
Os Estranhos Hóspedes do Hotel Nicanor conta a saga de um hotel amaldiçoado a receber uma convenção de monstros, e resta ao seu infeliz proprietário assistir de mãos atadas enquanto os monstros vão devorando os incautos humanos que cruzam seu caminho. Nesta edição da MMarte encontramos duas versões da história: a trilogia original publicada pela Vecchi nos anos 80 e o remake que era o carro chefe da editora do Ota nos anos 90, a Otacomix. O roteiro amalucado do Ota coloca o pobre Nicanor em meio a situações impagáveis enquanto atende os clientes monstruosos e choraminga por ter sido colocado em tal situação, sempre com um “valha-me Deus” na ponta da língua e o apoio de Priscila, uma das filhas humanas do presidente dos monstros que, rebelde, não se interessa por monstruosidades e ajuda o tristonho proprietário.
A saga de Nicanor e seus hóspedes segue em um crescendo de festa e canibalismo chegando a envolver até mesmo o exército, passando para a mítica ilha dos monstros e daí a uma guerra de facções que envolveria até monstros espaciais. Infelizmente esta última parte da saga só existe na reprodução das páginas do roteiro que se encontra na HQ. Um momento triste de encontro com a presença fantasmática do irreverente Ota. A mão de Colin também passeia pelas páginas na reprodução dos lápis do quadrinista, onde é possível ter uma amostra do grafite vigoroso antes de ser coberto por tinta. Apreciadores de Flávio Colin podem também encontrar dois momentos do traço do mestre: em 81 com sua transição do desenho mais realista para o estilizado, ainda carregado de linhas, e a estilização precisa e carregada na tinta de sua fase mais tardia nos anos 90. Os Hóspedes do Hotel Nicanor é o ápice de uma identidade particular de um quadrinho brasileiro, registrando o que foi, como foi e o que poderia ter sido. (LN)
Expressa Nº 11: Fabio Zimbres (Revistas de Cultura, 2021): A Expressa é um caso singular no mercado nacional. Trata-se de uma publicação por assinatura em que cada edição propõe um mergulho na carreira de um cartunista através de uma longa entrevista seguida por uma curadoria que seleciona diferentes momentos de sua obra. A proposta é excelente. (Pena que seja tão difícil encontrar exemplares avulsos da coleção). Numa comparação realmente cretina, Fabio Zimbres é o Gary Panter brasileiro. Artista dos artistas, seu trabalho é fundado num experimentalismo radical onde turvam-se os limites entre HQ, desenho e artes visuais. Daí que é uma alegria rara ver um livro inteiramente dedicado a Zimbres, aglutinando páginas e páginas de sua idiossincrática versatilidade. (MJR)
Os Fantasmas de Pinochet – Francisco Ortega e Felix Vega (Conrad, 2022. Tradução de Delfin Studio DelRey): A trajetória do ex-ditador chileno é esmiuçada neste quadrinho recém-lançado assinado pela dupla chilena Francisco Ortega e Felix Vega. Contando a origem não tão secreta do ex-militar, os autores delineiam eventos e fatos decisivos para a formação de um dos personagens mais odiados da política sul-americana. Dando margem para um sem número de teorias conspiratórias – tão fantasiosas quanto interessantes – Os Fantasmas de Pinochet mostra as ligações perigosas de Pinochet com grupos rivais, como maçonaria e Igreja, num esquema de conchavos que visava a manutenção do poder a qualquer custo. Na parte final do gibi, o ex-líder chileno é réu num julgamento fictício, tendo como testemunhas de acusação as próprias vítimas do sangrento regime. São depoimentos pungentes, prontos para fatiar a alma de qualquer um. Leia mais AQUI. (MM)
Um Fim de Semana Ruim - Ed Brubaker e Sean Phillips (Mino, 2022. Traduzido por Dandara Palankof): Como se fosse um spin-off de algum livro mais complexo de Michael Chabon, este curto romance gráfico da incensada dupla Brubaker/Phillips me ganhou no laço, não apenas por abordar, como fazem tradicionalmente, uma durona intriga policial como se fosse um noir moderno dos irmãos Coen, mas principalmente por trazer esse tipo de trama ao abstruso mundo das convenções de quadrinhos. Daí é uma fartura de referências e citações engraçadas pra quem compreende a história dos comics, na medida em que um quadrinista veterano casca grossa (mistura de Wally Wood com John Ford com Hemingway) envolve um artista contemporâneo desiludido com a indústria numa rede estapafúrdia de desventuras violentas. A cereja do bolo é a maneira como o nerd contemporâneo é tratado como o imbecil que de fato é, e como uma indústria que era até certo ponto idealista e romântica se torna cínica e objeto de escroques e oportunistas. (CIM)
Gen Pés Descalços – Keiji Nakasawa (Conrad, 2011-2016. Tradução de Drik Sada): A história autobiográfica de Keiji Nakasawa é um dos mais tocantes relatos sobre os efeitos do lançamento da bomba atômica na cidade de Hiroshima, ocorrido em 1945. Decisão norte-americana para tentar obter a rendição do obstinado exército japonês, este desfecho mais que mortal da II Guerra Mundial estendeu a nefasta sombra da guerra nuclear sobre a humanidade, mudando para sempre os rumos do planeta. Para além de qualquer análise macroscópica de política externa e afins, o objetivo de Keiji é colocar a lupa sobre sua própria vida e mostrar como este evento catastrófico alterou para sempre o destino de sua cidade e família. Em Gen, desgraça pouca é bobagem e a leitura dos dez volumes é um esforço dilacerante que mistura curiosidade mórbida e empatia com seres humanos que, tirando energia sabe se lá de onde, ainda insistem em sobreviver. Leia mais AQUI. (MM)
Giant-Size Evil – Pakito Bolino (Crna Hronika, 2020): Giant-Size Evil não é exatamente um quadrinho, mas uma espécie de meta-quadrinho. Durante a metade de 2020 (pandemia, lembram?), Pakito Bolino (manjado artista da editora francesa de pôsteres e livros de arte Le Dernier Cri) criou uma série de desenhos, um por dia, mimetizando capas de gibis antigos, num estilo ultrajante e agressivo. O resultado é uma sequência (narrativa?) em clima de pesadelo sexual. A edição é literalmente gigante – e linda de doer. Lembram do Gary Panter? Pois é... (MJR)
The Human Target (Volume One) - Tom King & Greg Smallwood (DC Comics, 2022): Uma das consequências da monumental minissérie Crise nas Infinitas Terras, que unificou a cronologia da DC em 1986, foi apagar da mente das pessoas personagens que passaram a nunca ter existido, como o Superboy de As Aventuras do Super-Homem Quando Criança. Recentemente descobri que também fui uma das vítimas desse neuralizador engendrado por Wolfman e Pérez. No Pós Crise, apaguei da MINHA memória um dos personagens favoritos dos quadrinhos da minha infância: Christopher Chance, o Alvo Humano. Nos anos 1970, suas HQs saíam como segunda história nas revistas Superman, Batman e Superduplas (título dado pela EBAL para a série The Brave and The Bold) e chegaram a ser publicadas no início dos anos 1980 pela Abril quando esta abocanhou a DC. Sem superpoderes, Chance é um detetive que trabalha principalmente como guarda-costas de ricaços quando eles recebem algum tipo de ameaça. Sua principal tática é disfarçar-se como o cliente da vez, e é essa exata verossimilhança que só os quadrinhos são capazes de criar que concentra boa parte do charme de suas histórias, pois frequentemente o leitor também é ludibriado até a revelação final.
Embora habite o Universo DC — Alfred já o contratou para se passar por Bruce Wayne quando Vicky Vale conseguiu provas da identidade secreta do Batman — suas histórias são bem mais pé no chão, e não me lembro de grandes interações com outros super-heróis. O personagem chegou a ser adaptado como seriados de televisão, sem nunca ter emplacado uma segunda temporada, e foi atualizado nos anos 1990, mas sumira do meu radar há decadas… até a chegada da nova minissérie em doze episódios escrita por Tom King com arte maravilhosa de Greg Smallwood. Para começo de conversa, é o projeto gráfico mais bonito do ano passado para uma publicação em quadrinhos — e olha que as capas do Victor Marcello para a Brasa Editora, sem contar tudo que a Darkside publicou em 2022, são difíceis de bater. Eu li a edição capa dura que reúne os seis primeiros números (o segundo volume sai até meados de 2023), que tem uma sobrecapa em papel fosco (plastificada por dentro para maior estabilidade) que, assim como a capa em si, realça a arte a traço com generoso uso de retículas de Smallwood. Todo o projeto gráfico, de Smallwood e Amie Brockway-Metcalf, segue a estética 1950-1960s que a série evoca, desde o próprio tema do detetive particular durão até os cenários e objetos (copos de uísque, drinks, letreiros luminosos) que Smallwood elegantemente estiliza como se estivesse layoutando um anúncio publicitário para a McMann & Tate (A Feiticeira) ou Sterling Cooper (Mad Men).
As formas e proporções realistas dos personagens contrastam com cenários sugeridos e com uma primorosa paleta de cores chapadas e texturas que são propositalmente aplicadas fora do registro. Senão por um não tão pequeno detalhe do roteiro (que discuto mais a frente), é como se estivéssemos lendo uma versão requintada de um álbum europeu de quadrinhos de personagens como Bruno Brazil ou Ric Hochet. As capas dos fascículos individuais da série — que têm letreiramento de Clayton Cowles — também seguem o vernacular fifties-sessentista e extrapolam a linguagem tradicional dos gibis do gênero. Ao final do livro, há uma galeria das capas variantes mas, sinceramente, nenhuma é melhor que as capas do próprio co-autor tanto na arte como no layout. Como se esse colírio todo para os olhos não bastasse, a trama é uma delícia. Ao se disfarçar como um de seus clientes, Chance acaba envenenado e tem apenas doze dias de vida (isso, um para cada número da minissérie) para tentar descobrir quem o equivocadamente assassinou. Como o verdadeiro alvo era um empresário e líder industrial chamado Lex Luthor, os principais suspeitos são os membros da Liga da Justiça Internacional de J.M. Dematteis & Keith Giffen. (BP)
I’ll Save You, Princess! – Jeroen Funke (Independente, 2020): Uma princesa está presa na torre de um castelo guardado por um horrendo cíclope. Vários pretendentes tentam salvá-la, em vão. E, claro, tem plot twist no final. Parte do projeto ONE BOOK A MONTH, este é um daqueles gibis em que se é possível sentir como o ilustrador e quadrinista holandês se divertiu ao produzi-lo. Impresso em papel cartão de 250 gramas (a capa é em 300), cada spread apresenta um pretendente, na página da esquerda e, na da direita, sua tentativa de resgate. Depois que o ogro de um olho só derruba óleo quente no cavaleiro que tentou escalar a torre, ou esta se torna um canhão que abate o balão de outro que tentava alcançá-la pelo alto, entendemos que ninguém vai salvar a princesa e nosso deleite passa a ser acompanhar como a próxima tentativa será frustrada. A participação de personagens como Indiana Jones, James Bond, Rambo e o Batman de Adam West (sim, escalando a torre com a bat-corda) dá ao pastiche de contos de fadas uma sensação de peça de teatro infantil de baixo orçamento, o que contribui para afastar a noção de que trata-se exclusivamente de literatura para crianças. (BP)
Iron, Or The War After – SM Vidaurri (Archaia Studios Press, 2012): Uma rede de intrigas envolvendo animais antropormofizados mostra as repercussões da guerra para os habitantes de um país fictício, no qual agentes duplos, terroristas e recrutas involuntários digladiam-se incessantemente num duelo pírrico. O objetivo é controlar a narrativa e manter/quebrar o status quo deixado por um conflito que deixou mais derrotados que vencidos. O fio condutor da narrativa é a caçada frenética de um agente especial do governo aos responsáveis pelo desaparecimento de documentos secretos, num rastro de morte que não poupará nem culpados nem inocentes. O trabalho primoroso de SM Vidaurri, que também atua como músico, é rico em ambientações que transportam o leitor para uma região arrasada pela fome e pelo frio, num território em que as nuvens negras são as únicas testemunhas da desolação humana. Some-se a isso um trabalho de arte cuidadoso, que inclui colagem de pedaços de cartas antigas e fotografias de objetos deteriorados e – pronto – está preparada a receita para mais um clássico desconhecido da HQ mundial. (MM)
Jimbo: Adventures In Paradise – Gary Panter (New York Review Comics, 2021): Gary Panter é o papa da arte punk, o soberano do grafismo sujo, o deus do desenho feio. Chega a ser ridícula sua quase absoluta ausência do mercado editorial brasileiro. Resta recorrermos a títulos gringos, como esta essencial reedição do canônico Jimbo: Adventures in Paradise. Pós-apocalíptico e pós-moderno, Jimbo é a mais icônica criação de Panter, que causou furor tanto no tabloide contracultural Slash quanto na Raw de Art Spiegelman e Françoise Mouly. (MJR)
JLA x Avengers – Kurt Busiek e George Perez (DC/Marvel, 2003-2004): A história que todo fanboy que se preze queria ler finalmente deu as caras em 2003. E a espera valeu a pena. A escalação de Kurt Busiek (argumento) e George Perez (desenhos) satisfez a maioria dos marvetes e decenautas, ávidos pelo encontro dos maiores supergrupos das principais editoras norte-americanas de quadrinhos. A escolha de Busiek, à primeira vista, poderia ferir a sensibilidade dos decenautas mais hardcore, já que o autor era mais conhecido por trabalhos na Marvel. Mas ele derrubou quaisquer suspeitas de favorecimento do grupo da casa das ideias ao desfilar um conhecimento quase enciclopédico do universo DC, resgatando personagens e objetos que somente um nerd raiz, como ele, seria capaz de enumerar. Claro que a história, até mesmo para homenagear o formato clássico de encontros do gênero, segue a típica fórmula de: desentendimento, pancadaria e alinhamento para confrontar o vilão da vez. JLAvengers não fugiu do formato. E o resultado agradou a gregos e asgardianos. Fanservices abundaram (claro!) e não deixaram ninguém na mão. Dentre os momentos mais memoráveis, destaco os Vingadores sentados nas poltronas tradicionais da Liga; as instabilidades cronais no capítulo final, em que os personagens são substituídos por versões anteriores/alternativas; e pérolas inusitadas, como o quebra-pau entre Valete de Copas e Royal Flush Gang. Em resumo: maior orgasmo que um incel terá na vida. (MM)
Juquinha: o Solitário Acidente da Matéria – Max Andrade (Editora Draco, 2021) - Não é novidade que vivemos um presente extremamente complexo. Tudo se imbrica, tudo é atravessado por questões políticas, sociológicas, econômicas, simbólicas, etc. E nada reflete mais essa complexidade do que a internet. Não é de se admirar, também, que é justamente no ambiente eletrônico interligado da internet que podem surgir obras diversas que refletem essa complexidade e pluralidade. É de lá que vem Juquinha, uma HQ publicada pela rede social imagética do Instagram e que ganhou forma física em 2021 pela Editora Draco. Juquinha é um quadrinho de uma categoria que chamaria de “umbigo pride”, algo que não é novo e que orgulhosamente remete a certo egocentrismo existente em cada um, principalmente em momentos mais jovens da vida (ou não). O que chama atenção na HQ de Max Andrade é a confluência impressionante de toda sorte de elementos culturais capazes de dar identidade a um período da vida. A cada página (ou quadro, já que como quadrinho egresso do Instagram, cada página é um quadro) a saga do pequeno Juca nos é contada com o uso de diversas referências “pop”. A diferença entre Juquinha e qualquer outra hq produzida na internet e recheada até a exaustão de referências, é a ambiguidade com que Max conta a sua história.
Da entidade cósmica Ashtar Sheran, passando pelo Supla, Grant Morrison, corrida de Naruto e meme da Sailor Moon, tudo em Juquinha é exagerado ao ponto de implodir os contextos. . Seu significado se ancora a aquele momento em que o post é publicado na rede, e depois disso se perde. Não importa de onde essas referências vêm, elas formam os novos e complexos signos ultra efêmeros com que a história é contada, dando um ar cyberesotérico que se consolida na palavra mágica “MTO FERA”. A sagacidade, porém, está na simplicidade absurda da história, e como tudo remete à experiência do “overthinking” tão comum na história pessoal de cada leitor. É aí também que está o humor da HQ. OVER é a palavra de ordem. É o adolescente trancado no quarto chorando ouvindo “Heaven Knows I´m Miserable Now” sem conseguir entender o humor da letra do ex-FERA Morrissey. Era assim para os pós-punks e góticos dos anos 80/90, e é assim para os Emos do século XXI. Não é à toa que a HQ é prefaciada pelo Lucas Silveira, da banda Fresno. Até a capa dura da edição faz sentido dentro desse conceito do excesso. Juquinha é diversão internética - com um ambíguo dedo no pulso da geração internauta - pra quem se orgulha de sofrer. Mas só quem sofre e dá a volta por cima pode receber o selo de MTO FERA. (LN)
O Livro Da Selva – Harvey Kurtzman (Veneta, 2021 – tradução de Alexandre Barbosa de Souza): A história de O Livro da Selva é a história simultânea de um sucesso artístico e um fracasso comercial. Nem vou gastar seu tempo entrando em detalhes – está tudo minuciosamente explicado por Denis Kitchen e Art Spiegelman na preciosa edição da Veneta. O fato é que Harvey Kurtzman, o injustiçado gênio por trás da Mad, empurrou a linguagem dos quadrinhos a patamares inauditos. Isso em 1959, quase duas décadas antes de Will Eisner “inventar” a graphic novel com Um Contrato com Deus. Vai por mim: não tem nada lá que já não tivesse sido feito – sob a chave do humor – nesta seminal obra. (MJR)
Lovistori – Lobo e Alcimar Frazão (Brasa, 2021): Lobo – o velho bucaneiro dos tempestuosos oceanos quadrinísticos brasileiros – não sabe brincar. Pariu a Brasa em 2021 com dois lançamentos arrebatadores. Brega Story, de Gidalti Jr., já se cristalizou como clássico. Um pouquinho mais de atenção vai colocar este Lovistori no mesmo departamento. A dupla Lobo e Frazão dá vida a uma história de amor pra lá de casca-grossa, coletada diretamente da noite de Copacabana. E fazem isso com propriedade, vigor e poesia. Mais sobre esse quadrinho AQUI. (MJR)
Minha Vida – Robert Crumb (Conrad, 2005. Tradução de Daniel Galera): Crumb é um porto (in)seguro que visito de tempos em tempos. Quando fomos gravar o episódio do Lasercast dedicado ao velho quadrinista, foi neste Minha Vida que mergulhei. Está tudo ali: do talento irrefreável à escrotice pessoal. De uma coisa jamais poderemos acusá-lo: hipocrisia. (MJR)
Mukanda Tiodora – Marcelo D'Salete (Veneta, 2022): D’Salete retorna ao tema da escravidão mais uma vez com extrema originalidade ao recuperar a história de Tiodora, mulher escravizada no interior de São Paulo em meados do século XIX que escreveu solicitando a compra de sua alforria a um parente vivendo numa fazenda de café. A jornada da primeira carta é enfrentada pelo também escravizado Claro, um jovem que precisa realizar um périplo cheio de perigos inimagináveis que atravessam o coração do espaço simbólico no Brasil imperial: o cafezal, a senzala, a cidade e o início do movimento abolicionista. Mais depurada do que nunca em sua aproximação com a xilogravura, a arte de D’Salete narra esta sinuosa e trágica aventura com pulsão eletrizante, se aproveitando de uma exímia decupagem do espaço em quadrinhos para liberar também silêncios e simbolismos. Primorosa, a edição da Veneta ainda reproduz em fac-símile as cartas originais de Tiodora, ensaios acadêmicos, além de gráficos e do resultado da rica pesquisa do autor para conquistar um resultado tão precioso e relevante no sentido de reconstruir a história de São Paulo e sua população escravizada. (CIM)
Mulher-Maravilha: Terra Morta – Daniel Warren Johnson (Panini, 2021): Daniel Warren Johnson, o desenhista metaleiro, narra o amanhecer de um futuro pós-apocalíptico para o universo DC, em que a sociedade entrou em guerra nuclear com as amazonas e só sobraram uns monstros casca-grossa para contar a história. O problema é que os tais seres são ninguém menos que as próprias ex-habitantes da ilha Paraíso, agora transmutadas devido aos efeitos da radiação. Restará para Diana, renascida nesta época sombria, escolher entre suas antigas aliadas e o que restou da humanidade. Cheia de referências ao perigo do extremismo feminista, Terra Morta é uma história em alta octanagem que conseguiu a proeza de me fazer gostar de uma história com a Mulher-Maravilha, muito por conta do ritmo alucinado e do estilo artístico de Johnson, que conseguiu transmitir a energia desse tal de rock’n’roll para o papel. Outro gibi dele que vale a pena é o Bill Raio Beta (Panini, 2022), em que o primo feio do Thor finalmente consegue algum protagonismo, chegando até mesmo a ter um romance com a Sif. Daniel Warren Johnson. Guarde esse nome. O homem ainda vai fazer (mais) barulho. (MM)
Non Serviam - Rodolfo Mariano (Bedeteca de Beja, 2022): Outorgado anualmente pelo Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, o Prêmio Geraldes Lino garante ao quadrinista que o recebe não apenas um troféu e uma exposição no evento mas também uma HQ publicada em um número da Coleção Toupeira, existente desde a primeira edição do evento, em 2005. O vencedor de 2022 foi o coimbrense Rodolfo Mariano, que conversou conosco aqui sobre sua HQ digital Cloak and Dagger. Lançada no Festival, Non Serviam possui uma célere e lúgubre arte em preto e branco, bem adequada para esta bem humorada crônica sobre as relações trabalhistas no Reino de Cemitéria, uma espécie de terra de contos de fada medieval com feiticeiros, ogros e espíritos do mal. Narrada por uma caveira, a trama se passa em uma taverna, onde descontentes carcereiros discutem seus infortúnios — acúmulo de funções, redução de salários, emprego de mão de obra descartável (no caso, esqueletos) — e começam a costurar uma improvável aliança com os bichinhos fofinhos da Floresta Mágica para uma greve… ou revolução. Diversão despretensiosa com consciência de classe. (BP)
OM - Andy Barron (The Mansion Press, 2021): Produzido de forma independente pelo artista britânico Andy Barron durante quase 10 anos e compilado recentemente com material inédito, OM foi uma das mais gratas surpresas em minhas leituras de 2022. Sem palavras e colorido de maneira uniforme e opaca (quando não em tenebroso preto e branco), este quadrinho alegórico, subconsciente e – por que não? – transcendental faz uso de uma espécie de roda mística de reencarnação e samsara para ocasionar em sua linguagem a transmigração das formas, sentidos e orientações num mundo imaginado e primal. A narrativa não é claramente compreensível, mas é possível depurar ritos, mitos de origem, divindades e alegorias para a criação do ser humano e da civilização. OM remete a Walt Kelly e Carl Barks em suas formas elementares, mas o resultado alcança mais uma espécie de Bone com forte miração de ayahuasca. Seus adoráveis personagens são regurgitados e excretados numa dinâmica cruel que nos relembra que, mesmo estando diante de um mundo representado como psicodélico e derretido, ele não deixa de ser um espelho muito visível das dinâmicas da nossa própria realidade. (CIM)
Pequenos Acasos Cotidianos: Presentes e Desastres da Vida Urbana – Juliana Russo (Publicação independente, 2019): A palavra “flanar” é um desses termos que muito se ouve em círculos acadêmicos. É uma adaptação do francês flâneur, palavra criada pelo poeta Charles Baudelaire a partir da palavra flâner que significa algo como vagar, passear, andar sem rumo. A palavra de Baudelaire está presente em pesquisas dos mais diferentes objetos das ciências humanas, e descreve uma filosofia, uma forma de estar no mundo. Especificamente, estar num mundo em rápida expansão urbana, como era o caso do século XIX. Flanar seria o “passeante”, “andarilho”, muitas vezes confundido com o “vadiar”, mas descreve um mover-se pela cidade em assincronia com o tempo urbano. Sem pressa, sem objetivo, munido de uma espécie de atenção difusa que tenta perceber a experiência do todo e suas partes de forma integral. É, antes de tudo, um pensar estético. Trilhar o labirinto de ruas, varandas e vitrines sem a intenção de achar uma saída. Óbvio para alguns, e obtuso para outros, o substantivo “flâneur” não possui uma contraparte feminina. Como aponta a pesquisadora Thiana Nunes, a flâneuse ainda é um experimento, uma palavra cujo significado real descreve uma espécie de espreguiçadeira, atestando como as ruas e seus andarilhos eram refratárias à presença feminina.
Retornando ao nosso presente, flâneuse é uma descrição mais que adequada à artista Juliana Russo e seu livro Pequenos Acasos Cotidianos é um registro de seus trajetos, e uma ótima HQ (embora sua autora não use esses termos em nenhum momento). Pequenos Acasos é um livro fronteiriço, crepuscular. Um livro de arte narrativa que não se propõe a uma definição e, por isso mesmo, abarca muitas. Em suas páginas, a fina linha de nanquim que dá forma às letras também dá forma aos cuidadosos desenhos e registram um dia de caminhada pela cidade de São Paulo. Metrópole intensa, carregada. Juliana capta as diferentes atmosferas que cada espaço emana e as pessoas que são agentes dessas experiências. Seus desenhos são ordenados pela ordem de leitura que o formato de livro instaura. Mas suas páginas são espaço puro, aberto ao flanar dos olhares. Não se trata de uma Paris do século XIX: seu livro registra o percurso de homens e mulheres pela metrópole, livres de julgamentos. A flâneuse francesa contemporânea de Baudelaire era a prostituta, a mulher vadia. O lugar da mulher era em casa, em sua “espreguiçadeira”. A rua não é lugar para mulher. 100 anos depois, o espaço urbano recebe a todes, embora os flanêurs tenham indubitavelmente mais segurança para proceder em seus devires.
Estas sensações estão registradas nas imagens do livro, e também em seu texto. Juliana é uma observadora perspicaz, mas também uma ouvinte de alcance. A parte escrita do livro, satisfatoriamente esparsa, complementa suas imagens de forma a estabelecer pontes entre seus personagens desconhecidos e seus leitores/observadores. São as palavras que nomeiam os lugares e pessoas. O seu Lael e seu chapéu de couro, fã de Franco Nero, o cowboy que “pula antes e depois atira”. Nem sempre é claro se o texto se refere a um desenho, como o “rapaz com cara de choro” que está justaposto ao retrato de um jovem negro cabisbaixo, com face escondida por um boné aba reta e o ouvido cheio de fone. Pequenos Acasos Cotidianos é um livro/HQ sem sarjetas, que retrata sarjetas reais. Um livro sobre espaços e as pessoas que dão vida a esses espaços. A única ressalva que preciso registrar é sua capa. Admito que a aridez de seus elementos chamou minha curiosidade e me fez descobrir do que se tratava. A encadernação rústica e as belíssimas capas internas texturizadas de riscos de caneta realmente abrilhantam o conteúdo. Mas seu exterior merecia algo que prendesse o olhar. Nada disso, lógico, atrapalha o passeio. (LN)
The Plastic Man Archives Vol. 5 – Jack Cole (DC Comics, 2003): Os quarentões que estiverem lendo essas linhas devem ter uma memória clara do personagem Homem Borracha e seu desenho animado que entretiam as tardes televisivas dos anos 80. “O Homem Elástico”, título da série por estas bandas, era um daqueles casos de sucesso típico da televisão brasileira em que a fama resulta mais da repetição exaustiva do que de sua qualidade. O fato é que a série não compartilhou do mesmo sucesso de outras animações do período, mas com certeza trouxe uma popularidade para o personagem que, de outra forma, estaria perto do esquecimento. As jovens crianças de então não imaginavam, mas o personagem era um dos grandes nomes da era de ouro dos super-heróis norte-americanos e teve sua estreia no Brasil na revista Lobinho #78 em Dezembro de 1947, seis anos após sua primeira aparição na revista Police Comics #1. Pulamos para 2022 e chega às minhas mãos o quinto volume de The Plastic Man Archives da DC Comics com republicações do Homem Borracha e, embora se tratem de histórias publicadas cinquenta edições depois da estreia (reúne os números 50 a 58 de Police Comics, com roteiro e arte de seu criador Jack Cole, e a quarta edição de verão da revista Plastic Man, com roteiros de Gwen Ransey e desenhos de Bart Tumey e John Spranger), fica clara a inventividade de seu criador e a soma de qualidades que fez do personagem um marco desse período das publicações nos EUA: uma mistura marotamente oportunista da humildade heroica do Spirit (e também de seu traço, já que Cole foi desenhista júnior do estúdio de Eisner e um dos principais desenhistas no período em que o criador de Spirit estava servindo na segunda guerra); do humor escrachado que viria a influenciar os escritores da futura MAD Magazine; e, surpreendentemente, de uma violência e de um ambiente noir povoado de gangsteres e criminosos que só encontrava par nas revistas da EC Comics (É de Cole a história “Murder, Morphine and Me”, que saiu em True Crimes Comics #2 de 1947, publicada pela Magazine Village Inc. Esta HQ ganhou notoriedade graças a um quadro onde uma mulher é ameaçada com uma agulha de seringa apontada para seu olho, imagem que foi um dos carros chefes do estudo que Fredric Wertham publicou em seu livro Seduction of the Innocent).
Esse Homem Borracha clássico é de uma inventividade selvagem. Seu personagem, diferente de encarnações mais atuais, é de uma serenidade incomum que contrasta com a criminalidade caótica à sua volta. Em uma metrópole onde até o cidadão mais pacato guarda alguma intenção criminosa à espera de um momento para aflorar, os superpoderes do Homem Borracha são um detalhe. Muito do humor emana das maquinações desses criminosos, e também do sidekick abobalhado Woozy Winks, que, como o herói título, é um ex-criminoso reformado que tenta consertar os erros do passado. Cabeças esmagadas, execuções, afogamentos e ameaças de suicídio são entremeados por histórias criativas, cativantes e muito bem executadas. A criação de Jack Cole aparece nessa edição em todo seu esplendor, além de vilões hilários como a bela, fatal e desafinada Granite Lady, a requintada mente criminosa Doctor Erudite, e o letalmente moroso Sleepy Eyes. Alguns anos depois da edição número 50 de Police Comics presente neste volume, Jack Cole se consagra como prestigiado cartunista da revista Playboy. Apesar de todo esse sucesso, Cole se suicida em 1958, deixando surpreso todo o círculo de quadrinistas à sua volta. Um mistério indecifrável e sem nenhuma graça. (LN)
The Punch Cartoon Album: 150 Years of Classic Cartoons - Vários Autores (ORG: Amanda-Jane Doran. Grafton, 1991): Caricaturas, charges, cartoons, picture stories e quadrinhos conformam uma espécie de instituição britânica desde meados do século XIX, e nenhuma das centenas de publicações dessas coisas que pipocaram no Reino Unido por essa época é tão emblemática quanto a revista/jornal Punch (publicada entre 1841-2002 !), que iniciou como uma endiabrada sátira ao início da era vitoriana, e foi se adaptando aos desígnios oficiosos da realeza com o passar das décadas. No entanto, a Punch, durante os últimos dois séculos, acabou se tornando sinônimo do humor britânico: mordaz, cínico, por vezes sutil, às vezes indecifrável. Esta coletânea de 1991 reúne centenas de cartoons, quadrinhos e charges, desde o grafismo realista do século XIX (John Tenniel, George Du Maurier, John Leech) até os mais variados tipos de abordagens, classudos, irretocáveis, do século XX (como William Augustus Sillince, W.J. Taylor e Mike Williams). Um revigorante passeio por uma das escolas mais importantes de quadrinhos e ilustração do mundo, um tanto ignorada no Brasil. (CIM)
A Queda de Satã – Gustavo Piqueira (WMF Martins Fontes, 2022): Tecnicamente, essa não é uma história em quadrinhos, apesar da forma complementar que engendra imagem e texto. Mas como o autor tem duas HQs publicadas pela Veneta — a excelente Domex (2021, resenhada no Lasercast #27) e a polêmica Ar Condicionado (2018) — e foi uma das minha Melhores Leituras de 2022, cabe aqui. A obra é composta por um box com dois livros e um anexo, onde o autor discorre sobre o histórico de representações do diabo não como ser místico, mas como um dos produtos culturais mais conhecidos no mundo, não muito diferente de um Superman ou Popeye. O primeiro livro aborda especificamente o surgimento — como antagonista do super-herói do Cristianismo, em que incorpora aspectos de entidades de outras religiões — e a evolução do personagem — através de acréscimos graduais de outros escritores e artistas — até os dias de hoje. O segundo livro aborda o contexto atual do personagem, que é despudoradamente utilizado como mascote de uma diversidade de produtos, de pneus e detergentes a motéis, perfumes e cookies orgânicos. Como o histórico de muitos personagens de quadrinhos, tem cronologia embaçada que ganhou retcons, foi usado como suporte de discurso racista, xenófobo e na defesa da moral e dos bons costumes, e teve artista copiando artista sem o menor constrangimento. Neste que parece-me ser seu trabalho mais maduro, Gustavo Piqueira costura de forma original uma vasta pesquisa histórica e iconográfica em um objeto literário primoroso. (BP)
Ragu Nº 9 – Vários Artistas (Cepe HQ, 2022): Coisa de 15 anos atrás, havia pistas de que o experimentalismo seria uma das vertentes mais vigorosas do quadrinho brasileiro contemporâneo. Não foi bem o que aconteceu. Ele segue por aí, mas não na profusão e popularidade que então se prenunciaram. Mesmo a Baiacu – empreitada com a chancela dourada de Laerte e Angeli – teve sua trajetória precocemente interrompida. Para a nossa felicidade, a pernambucana Ragu reencarnou em 2021 e voltou firme e forte ano passado, em sua nona edição. Editada por João Lin, Christiano Mascaro e Diogo Guedes (além dos interinos João Pinheiro e Mitie Taketani), a antologia traz 35 artistas refletindo sobre o futuro, através de narrativas prioritariamente experimentais. Interessante notar como essa problematização do devir acabou desembocando em um olhar que foca periferias e identidades. Como seria de se esperar, no cômputo geral os veteranos se destacam: André Kitagawa, João Pinheiro, Jaca e Mangosh (ou melhor, Guazzelli, batendo com a canhota) entregam trabalhos de alta octanagem. E é realmente saboroso ver lado-a-lado duas visões de mundo tão distintas quanto as que nos oferecem Helô D’Angelo e Emilly Bonna. Não vejo a hora de botar as mãos na décima Ragu. (MJR)
Rakshassas – Eduardo Mazzitelli e Enrique Alcatena (Comix Zone, 2022. Tradução de Érico Assis): É inacreditável que uma crise financeira tenha tido um contraponto tão benéfico quanto a proliferação de publicações argentinas no Brasil. Não é segredo a potência da tradição das HQs hermanas, mas é surpreendente que estas publicações avancem para além dos clássicos argênteos e também cheguem a materiais mais recentes. Esse é o caso de Rakshassas, uma delícia de quadrinho de autoria dos argentinos Eduardo Mazzitelli e do desenhista Enrique Alcatena. Este último já nos é conhecido por seus trabalhos nas editoras norte-americanas de super-herói fazendo Batman e títulos da Vertigo. Rakshassas, ou O Livro dos Demônios, imagina um mundo onde a Inglaterra aprofundou seu domínio nas terras da Índia, anexando o país a seu império e criando uma realidade onde a cultura ancestral hindu se mistura a uma revolução industrial exacerbada, com direito a dirigíveis e outras máquinas voadoras. Nesse cenário, um general inglês em busca de poder abre um tomo sagrado escondido nas profundezas do Himalaia e libera os demônios Rakshassas no mundo, dando início ao fim da humanidade e a um novo ciclo de Shiva.
Em resposta a este ato profano, o último representante de uma irmandade hindu, treinado para quando estes eventos se desencadearem, inicia uma resposta ao apocalipse védico. Invoca o fantasma de Lady Cora, uma das esposas do mago Aleister Crowley, liberta o semi-demônio Shambara (e o ilude com promessas de expurgar seu lado demoníaco), e convence a Annapurna, líder de uma seita de assassinas, a se juntarem para impedir os Rakshassas. A HQ é um desbunde visual de cair o queixo, com um Alcatena mostrando como os prazos apertados da indústria dos comics americanos apagam talentos que brilham quando há tempo hábil para criar. O roteiro de Mazzitelli é complexo em suas referências culturais e direto ao ponto, construindo uma aventura exótica e incomum que inverte vetores colonialistas trazendo a cultura hindu para o centro da narrativa. Belo, intrincado e divertido. Rakshassas tem algo de familiar, como uma mistura de uma Liga Extraordinária menos prepotente com um Inu Yasha mais adulto. Ao final, tem-se a impressão de que vemos apenas um momento ínfimo - mas extremamente rico - de uma narrativa mítica sem fim. E essa riqueza é representada por Alcatena como um espetáculo para os olhos. (LN)
ResiduA - Sao (Risco Impresso, 2020): É difícil escrever sobre uma forma de expressão gráfica que se abstém da representação, ou seja, cujo motivo de sua existência são linhas e formas que se metamorfoseiam, que nadam num oceano de possibilidades de montagem e reconstrução da linguagem em si a cada palmo de página alcançado. Este projeto do artista gráfico espanhol Sao, fortuitamente trazido a nós pelo selo Risco Impresso, alcança isso e muito mais: trata-se de um respirar nervoso de linhas, colagens e palavras abandonadas no caos da reconfiguração gráfica do mundo, como se fosse um leitmotiv puro e solto na buraqueira caótica do universo impresso. Me parece uma melhor “teoria dos quadrinhos em quadrinhos” do que o Desaplanar de Nick Sousanis. (CIM)
Risca Faca – André Kitagawa (Monstra, 2021): Após pouco mais de uma década sem publicações inéditas, André Kitagawa retorna em grande estilo em Risca Faca, que apresenta três histórias interligadas sobre mundos e submundos paulistanos. A conexão entre os contos é a urbanidade de uma São Paulo decadente, povoada por almas perdidas na noite. E o concreto duro da maior metrópole da América do Sul irá devorar cada um dos incautos que com ela tentarem barganhar. Tão infindável quanto a fome da cidade serão suas vítimas: heróis anônimos, bêbados indesejados e incontáveis desgraçados de plantão. A experiência de Risca Faca equivale a um mergulho nos recônditos mais lamacentos da mente humana. No final do gibi, os parcos leitores sobreviventes desta sórdida aventura sentem-se impelidos a nela submergir novamente, por mais estranho que isso possa parecer. (MM)
Rocky Vol. 1 – Martin Kellerman (Huber, 2016. Traduzido para o francês por Aude Pasquier): Às vezes pode ser que esqueçamos o quanto os quadrinhos podem ser contagiantes explorando apenas a simplicidade de suas formas básicas, de seu narrar contínuo e eterno, especialmente quando isso se dá na forma de tiras. É o caso de Rocky, um hit dos quadrinhos suecos publicado desde o final dos anos 1990 que galgou popularidade no famoso e internacional jornal Metro. Aqui há pouca linguagem, e ação minimalizada: basicamente acompanhamos o jovem protagonista que dá título à tira, junto a uma claque de amigos idiossincráticos, em desventuras afetivo-sexuais (além de problemas de grana, saúde, família) por uma gélida Estocolmo carregada das peculiaridades urbanas e sociais de um dos países mais desenvolvidos do mundo. Muitos balões de fala mordazes, fortemente politicamente incorretos para os padrões de hoje, destilando aquela acidez insuperável de certo humor nórdico. Não me surpreenderia se o polêmico Martin Kellerman fosse a inspiração para o cartunista (que igualmente se inspira em Fritz The Cat) feladaputa do filme norueguês (de Joachim Trier) A Pior Pessoa do Mundo. A edição francesa da Huber, por mais que tenha um capa hedionda e que não faz jus ao conteúdo maneiro do gibi, abarca vários anos da série. Um bom desafio para as editoras brasileiras publicarem algo diferente. Mais sobre esse quadrinho AQUI. (CIM)
Sharaz-De Contos de As Mil e Uma Noites Volumes 1 e 2 – Sergio Toppi (Figura Editora, 2019/2021. Tradução de Maria Clara Carneiro): Impossível não abrir as páginas de Sharaz-De e não se sentir tragado para um mundo anterior a tudo. Anterior à escrita moderna (embora ela esteja lá, belamente sucinta em seu encadeamento). Anterior ao romance serializado (visivelmente presente nas páginas, mas ainda sem um nome que o identifique, encarnado na forma do escambo de sonhos para aqueles incapazes de sonhar). Anterior à profusão de imagens fragmentadas que acreditamos ser uma nova forma de ver o mundo (mas estas imagens estão lá, é essa a matéria do livro, mas não como um biombo que nos separa do real, e sim como véu diáfano que convida a ver mais do que está sendo mostrado). Essa sensação de atemporalidade resulta do encontro da profusão criativa da imagem quadrinística do milanês Sérgio Toppi com a ancestralidade da tradição oral de As Mil e Uma Noites. Antes de ser uma adaptação, Sharaz-De é uma contação. Sua publicação teve início em 1979 na já clássica antologia italiana de quadrinhos Alter Alter, e foi publicada em terras brasileiras pela editora Figura em dois volumes. Trata-se da contação gráfica de contos menos conhecidos (mas não menos impactantes) das Mil e Uma Noites, carregados da personalidade e genialidade de Toppi.
Em suas páginas, vemos o layout maturado de um Toppi que já entendeu a função das grades de requadros isolados - e o que nelas se preserva de uma linearidade cadenciada que busca simular a falsa clareza dos textos escritos - e decide trazer a agulha para o outro lado. As páginas de Sharaz-De são elaboradas por um quadrinista que entrega sua narrativa ao espaço, que faz do layout um arrojado instrumento-guia para o olhar. Suas páginas, livres do cacoete da palavra escrita, libertam o olhar para as redundâncias de imagens construídas por linhas gráficas carinhosamente adestradas em uma dança que alterna vigor e delicadeza, sem nunca deixar que o leitor se perca nos encantos de suas pranchas, guiado por ganchos diagonais, pontos de atenção e ritmos complacentes que impulsionam a leitura como um filho carinhoso guia o pai já senil.
Em Sharaz-De há o mundo antes do mundo. Mas o recorte de Toppi é proposital. Mostra/fala da crueldade dos que muito têm, e da injustiça dos que são a estes subjugados. Em um mundo de comércio, reis tornam-se mendigos, humildes viram reis. Gratidão e misericórdia são o ouro dos deuses, uma verdade que o ouro dos homens não os permite enxergar. Sharaz-De vende sua criatividade em troca de mais um dia de vida. Como meu amigo Pedro Tapajós já apontava, Sharaz-De (ou Sharezade, ou Sherazade, são mil nomes para mil noites) é uma matriz que deu forma a muitas modalidades das quais a cultura pode se comercializar. Os quadrinhos são uma dessas modalidades, especialmente aqueles que buscam ter uma tiragem regular. O que Sharaz-De faz, também faz Toppi a cada edição da Alter, iniciando e terminando suas histórias de maneira semelhante e sempre deixando ao fim o gancho da curiosidade. Em sua contação atemporal (não adaptação), a página de Toppi revela a palavra como som que partiu há muito tempo de bocas já mortas, mas que ainda apontam caminhos como constelações criando imagens no céu. Guiando barcos no mar. (LN)
Todas as Pedras no Fundo do Rio - Wagner Willian (Texugo, 2022): Um favorito da casa, Wagner Willian (sempre em prolífica produção) nos entrega um densíssimo romance gráfico que imagina, nos anos 1950, um país gêmeo do Brasil que “estranhamente” reflete as nossas condições sociopolíticas (e as da América Latina), no momento em que o século é quebrado ao meio. Exuberante! Mais sobre esse quadrinho AQUI. (CIM)
Tunnels - Rutu Modan (Actes Sud BD, 2021. Traduzido do hebraico por Rosie Pinhas Delpuech): Este novo romance gráfico da israelense Rutu Modan, uma das mais maduras autoras contemporâneas de quadrinhos, nos leva a uma espécie de paródia do Tintim que envolve traumas familiares, a questão judaico-palestina, o ISIS, a ortodoxia dos costumes, o mercado da arqueologia, a vaidade acadêmica e túneis, muitos túneis. Esgarçadamente original. Mais sobre esse quadrinho AQUI. (CIM)
Umahistória – Gipi (Veneta, 2021. Tradução de Michele Vartuli): A guerra é um labirinto. Assim como a memória. Assim como a vida. Assim como essa indiscutível obra-prima do italiano Gian-Alfonso Pacinotti, o Gipi. (MJR)