Tons da seca


por Roberta Machado
A história de O Quinze começa cinza-azulada, quase negra. Logo, conforme evolui a trama de Conceição, Vicente e Chico Bento, as páginas mudam do azul da calmaria para um amarelo-alaranjado cheio de agonia, até alcançar o clímax da história, num céu vermelho que clama por chuva. Foi por meio das cores da aquarela que o artista Shiko conseguiu traduzir a histórica narrativa de Rachel de Queiroz, agora publicada em quadrinhos pela Editora Ática. O livro faz parte da coleção Clássicos Brasileiros em HQ, que já recontou tramas como O Alienista, Triste fim de Policarpo Quaresma e O Cortiço.

A transferência da narrativa de O Quinze para os quadrinhos não amenizou os duros parágrafos de Rachel de Queiroz sobre um dos piores anos já vividos na seca nordestina. Ao contrário, graças ao traço realista e delicado o quadrinista Francisco José de Souto, o Shiko, o cenário ganhou figurantes, os nomes ganharam rostos e a fome, feições. As ilustrações dão vida a um sertão cruel, botam fogo na terra quente que engole os corpos esquálidos e machucados pela seca. Mas a adaptação respeita o livro publicado em 1930, e mantém suas falas originais. O ilustrador não suprime a descrição do ambiente, e faz questão de unir às palavras brilhantes da autora ao próprio traço.


Acostumado a trabalhar com textos consagrados como roteiro, Shiko já levou para os quadrinhos obras de nomes como Augusto dos Anjos, Moacyr Scliar e Xico Sá. A experiência lhe garantiu o bom-senso de não sacrificar a linguagem da HQ em nome da história, nem de desrespeitar o texto para dar destaque desnecessário às ilustrações. A adaptação encolhe pela metade o número de páginas da obra, mas não comete o pecado de acelerar o ritmo da história.

O ilustrador se dá ao luxo de inserir quadrinhos sem palavras em meio aos diálogos—e são esses que prendem o leitor. É fácil se perder lendo as expressões corporais e faciais dos personagens, ou admirando as paisagens imensas e poderosas descritas no desenho de Shiko. As emoções estão no movimento das mãos nervosas de Conceição sobre a trança, na mulher de Chico Bento que despenca de cansaço sobre os joelhos, no sol que nasce rasgando de cor o céu negro.

Dignidade

Shiko também deu atenção aos detalhes que buscam reproduzir as roupas, a arquitetura e os costumes da época retratada. O trabalho de pesquisa e de planejamento do ilustrador ganha força na história de Chico Bento, que é expulso do seu trabalho e da sua casa pela seca interminável. Sem ter como ganhar a vida, o vaqueiro se torna um retirante, e toma o sertão com a família a tira-colo. “O Chico Bento é, sem dúvidas, o personagem que mais gosto.Porque é impossível não identificar em Chico Bento, naquele tipo de orgulho, uma dignidade e uma altivez presentes em tantas outros sertanejos que conheci. Usei o rosto e o jeito de se mover de um amigo meu, que antigamente competia em vaquejadas, para desenhar o Chico”, confessa Shiko.

O resultado emociona em passagens como o momento em que Chico Bento mata um bode para dar aos filhos famintos, e é impedido de consumir a carne pelo dono do animal. Enquanto as falas do retirante imploram clemência, seus olhos mostram as lágrimas secas de quem já cansou de chorar. Não é difícil se emocionar com a jornada do personagem até que ele chega à cidade para morar num campo de concentração. Ali, Chico Bento desaparece em meio a muitas outras famílias que compartilham da mesma agonia. A chegada do vaqueiro à cidade marca o clímax da história, que não rende tantas imagens marcantes a partir desse ponto.



Do sertão para o mundo

Embora nutra um carinho pelo xará, Shiko partilha mais semelhanças com a heroína de O Quinze. Da mesma forma que a personagem Conceição enfrentou os paradigmas do início do século 20 para deixar o sertão e se tornar uma professora solteira, o artista cresceu demais para viver em Patos, no interior paraibano. Passou por Brasília, onde teve a primeira experiência com quadrinhos e resolveu trabalhar com essa arte, e foi para João Pessoa. Se reinventou, e tomou para si o nome de Shiko depois de conhecer a palavra japonesa no mangá Lobo Solitário. Logo ele—cujo nova alcunha significa“o alcance da lâmina do samurai”—marcou muros e galerias com sua arte, e tornou-se uma referência no ramo dos quadrinhos independentes, conhecido por obras como o Marginalzine e Blue Note.

Hoje, Shiko mora na Itália. Mesmo que sua jornada continue em outras terras, ele não se esquece das raízes, e revela que o passado lhe serviu de inspiração para adaptar a obra de Rachel de Queiroz. Já aos 18 anos, quando leu O Quinze pela primeira vez, montava na cabeça os quadros que uniam as palavras da autora com as imagens que conhecia desde pequeno, por meio das histórias do avô.“Ele era de origem rural e portava essa religiosidade arcaica do sertão do Nordeste, então a ameaça das estiagens e a fé como única possibilidade de redenção, eram informações muito presentes no meu imaginário”, recorda. “O livro da Raquel me ofereceu, pela primeira vez, imagens de pessoas e paisagens muito próximas.”

Lá do outro lado do oceano ele continua a carreira de ilustrador, e planeja continuar trabalhando com adaptações. Shiko também revela que está investindo numa obra que une duas paixões do artista: uma história de velho oeste situada no sertão paraibano. “É uma história com explosões de caixas eletrônicos em pequenas cidades do interior, enforcamentos e fugas. Está sendo bem divertido”, adianta.

Duas perguntas para Shiko
Como você já havia trabalhado em adaptações literárias, foi fácil trabalhar em O Quinze? O que foi mais complicado?
“Talvez o mais difícil seja fazer um romance caber num livro de quadrinhos porque muita coisa tem que ser deixada de fora, o que no caso específico d'O Quinze é ainda mais doloroso, porque o livro é muito seco. Raquel não gastava palavra além do necessário, tudo no livro é medido e justo. Lembro sempre de Graciliano dizendo que palavra não é enfeite. Ela sabia disso, e é impressionante como fez caber tanto em um livro tão pequeno, mas ainda assim grande demais para 80 páginas de HQ. Senti falta de mais espaço para a amplidão das paisagens.”

Na sua opinião, qual o papel dessas adaptações de obras clássicas para os quadrinhos?
“As editoras descobriram um filão de mercado e isso popularizou as adaptações, o que nos leva a diversos aspectos desse fenômeno editorial. A parte boa é que, na avalanche do segmento, vamos encontrar coisas muito boas como o projeto DOMÍNIO PÚBLICO, da Editora Ragú, de Recife. Porém não podemos deixar de notar alguns pontos negativos, como a pouca qualidade de algumas obras e a falsa ideia de que os quadrinhos precisam abraçar o carimbo do ''clássico literário'' para se legitimar como leitura válida. Outro ponto é que as editoras não tem interesse em produzir adaptações de obras ou escritores que não estejam cobertos pelo manto do ''clássico'', o que deixa muita coisa interessante de fora da peneira do mercado.”

Solanin: crônica da juventude






















por Roberta Machado

Solanin é uma daquelas histórias que tocam nas lembranças emotivas do leitor sem apelar para o drama óbvio. Tentar resumir sua história só torna claro que a ação não é o forte dessa narrativa, que se apoia nas entrelinhas e torna o espectador parte ativa da trama. Cada decisão, reflexão ou conclusão tomada pelos personagens cria um profundo raciocínio impossível de não relacionar com fortes experiências pessoais.
Meiko é uma garota de 23 anos que mora com o namorado dos tempos de faculdade e se vê presa num trabalho enfadonho e frustrante. Ela já não depende dos pais, mas entrou no limbo em que o emprego temporário virou ocupação, e o futuro é uma incógnita que em nada lembra as aspirações da adolescência. O próprio companheiro da protagonista, Taneda, abriu mão do sonho de viver de música para ganhar o mínimo em uma posição de designer freelancer.


A menina decide então pedir demissão da empresa em que trabalha, mesmo sem contar com um plano B. A decisão de Meiko de largar o emprego estável sem nenhum plano imediato pode soar para o leitor uma atitude impensada e precipitada, mas é necessário lembrar que a história se passa no Japão, onde esse ato é ainda mais grave, praticamente um suicídio social. Mais importante do que ganhar dinheiro, a cultura asiática valoriza aqueles que contribuem com a sociedade. O país sofre hoje com toda uma geração de jovens que representam um fardo para a nação ao cederem à pressão psicológica e desistirem de participar da máquina industrial do arquipélago (eles são conhecidos como neets, not in education, employment, or training, ou como hikikomoris, os que nem mesmo têm coragem de deixar o apartamento).

A rotina de Meiko então é subtraída de sua vida, e em pouco tempo ela percebe que o fio de segurança de seu antigo emprego era o que a impedia de encarar a realidade: ela não sabe o que quer da vida, só tem certeza do que não quer. As tardes perdidas na rua ou em frente ao videogame também não ajudam, o tempo passa sem que uma solução se apresente. Logo fica óbvio que o futuro não vai se apresentar à protagonista em uma bandeja de prata, e as brigas com família e amigos são inevitáveis.

Os companheiros da jovem, aliás, constroem uma narrativa à parte, onde fica claro que todos sofrem com conflitos semelhantes. Quem herdou o negócio da família, quem continua na faculdade, quem recebeu uma promoção: todos vivem constantes questionamentos sobre seus objetivos e se perguntam constantemente sobre a própria felicidade. Sufocados pela mediocridade, eles procuram ressuscitar os sonhos do passado em busca daquela mesma sensação da juventude de que tudo é possível.

Mesmo quem não se identifica com a trama pode desfrutar de uma narrativa cotidiana bem contada, muito comum aos grandes títulos de graphic novels que lotam as prateleiras das livrarias nos últimos anos. Com a diferença de que o lugar comum da trama é justamente o que a torna especial. Em dois volumes de pouco mais de 200 páginas cada, Solanin fala numa linguagem despretensiosa, que conta uma história comum à maioria dos jovens. Sem grandes pretensões, alcança com sutileza a memória emotiva do leitor, causando uma experiência de reflexão valiosa.

Solanin

De Inio Asano. 216 páginas. 
Coleção L&PM Pocket. Duas edições. Preço: R$ 16.











Fantasmas de Lucille


























Uma nova colaboradora desponta na Raio Laser! Trata-se de Roberta Machado, jornalista e colega do nosso querido Pedro no Correio Braziliense. Roberta tem um texto de perfil analítico e literário. Nada melhor para quem quer romper certas fronteiras, levando os quadrinhos... além. (CIM)

por Roberta Machado

Embora seja uma ficção, a natureza dos dramas narrados em Lucille mais se assemelha à série de histórias biográficas que impulsionaram a venda das graphic novels nas livrarias nos últimos anos. A vida da adolescente que dá título à obra poderia ser de qualquer garota. Assim como muitas anônimas, a estudante francesa sofre entre a rejeição que tem por si mesma e a desaprovação que imagina ter dos outros. A situação da protagonista agrava-se devido à anorexia suicida causada por um trauma de infância.

Sob o traço econômico e fluido de Ludovic Debeurme, Lucille é uma garota de baixa autoestima, que ora tenta parecer normal para obter a aprovação dos outros, ora se esconde sob um grande par de óculos e uma postura derrotista. Em vez de se enturmar com os colegas, ela opta por ignorar os apelos da mãe e usar a timidez como desculpa para escapar num mundo de fantasia. Ela vê nas amigas e na boneca Linda o estereótipo de beleza e felicidade que almeja por meio da fome.


Mas é graças ao distúrbio alimentar que Lucille conhece Arthur, garoto ainda mais perturbado que ela. Entre o alcoolismo do pai e a indiferença da mãe, o adolescente se vê obrigado a sustentar a família, apesar da imaturidade. Para ele, a magreza exagerada de Lucille é bela, e diferente de toda a instabilidade de sua vida de garoto pobre e desajustado. Assim como a protagonista tenta controlar seus problemas pulando refeições, a confusão na vida de Arthur resultou num transtorno obsessivo compulsivo. Os dois encontram conforto nas loucuras do outro.

Os cenários são suprimidos na maioria das páginas, e as linhas dos quadros que geralmente limitam as ações das graphic novels não estão presentes na história. O estilo aponta o verdadeiro objetivo de Debeurme: onde estão os personagens, o que estão fazendo, nada disso importa. A narrativa é sobre o que eles sentem e pensam. O leitor é levado a uma viagem ao subconsciente desses dois jovens, traumatizados ainda na flor da idade. Mesmo quem não se identifica com os problemas vividos pelos protagonistas nessa viagem de autoconhecimento pode tirar da história alguma reflexão sobre os próprios conflitos.

Na jornada dos dois adolescentes, o interessante é observar as mudanças sutis que eles sofrem. Lucille deixa a inocência para se tornar uma mulher bonita, pois é assim que Arthur a vê. Já o garoto transborda confiança e supera o medo da responsabilidade ao assumir naturalmente o papel protetor da amada, mesmo que agindo muitas vezes de forma impensada. Debeurme disse em entrevistas que as transformações pelas quais os personagens passam foram espontâneas: ele desenhou a história sem planejá-la, descobrindo aos poucos os rumos da trama.

Lucille é um livro que alterna o drama, entre momentos de tensão como brigas e assassinatos, com reflexão, que mostra os dilemas psicológicos dos adolescentes. A exposição dos pensamentos mais profundos dos personagens, no entanto, são mais capazes de tirar o fôlego que as cenas em que a ação de fato se desenrola. Sem necessidade de ganchos previsíveis para manter o interesse do leitor, o ritmo do romance francês flui  de forma natural, o que torna fácil devorar as mais de 500 páginas de uma só vez.

Ludovic Debeurme conquistou diversos prêmios com ajuda de Lucille. Entre eles, o destaque no Festival de Angoulème, festa icônica dos quadrinhos que acontece todos os anos na França. O sucesso internacional da obra — que o levou pela primeira vez às livrarias norte-americanas — garantiu a produção de uma sequência, lançada na França em agosto. A nova história, batizada de Renée, exibe traço muito mais rebuscado que sua antecessora, e trabalha a psique dos personagens de forma ainda mais onírica e perturbadora.

Lucille
De Ludovic Debeurme. 544 páginas. Editora Leya. R$ 54,90.

Este texto foi publicado originalmente no Correio Braziliense, no dia 06/02/12.