LASERCAST #73 RESENHÃO GERAL #10
/Neste episódio de número 73, os raiúcas Bruno Porto, Lima Neto, Marcão Maciel e Pedro Brandt analisam lançamentos deste ano das editoras Comix Zone, Darkside, Fantagraphics / Mino e Veneta.
Read MoreNeste episódio de número 73, os raiúcas Bruno Porto, Lima Neto, Marcão Maciel e Pedro Brandt analisam lançamentos deste ano das editoras Comix Zone, Darkside, Fantagraphics / Mino e Veneta.
Read Morepor Márcio Jr.
Esther Madrid, fisiculturista, é a nova Miss América do Norte. Seus sonhos não param por aí: o título de Miss Universo é uma meta futura. Solitária, vive em um apartamento acompanhada de seu cão, que atende pelo sugestivo nome Clyde. É também sargentada polícia de Nova York.
Na mesma noite em que conquista o troféu por seu corpo talhado em músculos, Esther recebe um telefonema do pai. Felix, o irmão, encontra-se desaparecido. Começa então uma jornada pelo submundo que a conduzirá ao Chile e ao chefão do narcotráfico, General Faustino O’Hara.
El Colmillo de La Serpiente é o exército do traficante latino. E também o nome do álbum escrito pelo novelista norte-americano Jerome Charyn e ilustrado pelo gigante dos quadrinhos argentinos José Muñoz.
Charyn – que completa 80 anos no lombo dia 13 de maio – sabe das coisas. Respeitadíssimo dentro e fora dos Estados Unidos, é vencedor de diversos prêmios e honrarias, entre eles o de Cavaleiro das Artes e Letras da França, e de Melhor Álbum do Festival de Angoulême, em 1986, por La Femme du Magicien, ao lado do desenhista François Boucq. Ou seja, além de escritor, editor, professor e crítico de cinema, o sujeito possui uma nada desprezível intimidade com o universo das HQs.
Parece contraditório: com quase uma dezena de graphic novels publicadas, Jerome Charyn jamais contou com a colaboração de quadrinistas norte-americanos. Seus parceiros são sempre nomes de alto calibre da BD europeia, como o já citado Boucq, Jacques de Loustal e Massimo Prezzato.
El Colmillo de La Serpiente é uma narrativa policial tipicamente americana, baseada na forte tradição da literatura e do cinema noir. A escolha de um argentino para transmutá-la em narrativa gráfica, muitas milhas distante do previsível, não poderia ser mais acertada. José Muñoz é um mestre da noite, das sombras e daqueles que vivem à margem. Os anos dedicados a Allack Sinner não me deixam mentir.
Esther Madrid é dura como rocha, pura tenacidade. Seu olhar, contudo, goteja a melancolia de um passado que permanece presente, gravado na alma. Tudo na HQ traduz seu atrelamento à solidão. Teria sido sempre assim? A busca irredutível pelo irmão sugere que não.
Felix, descobre-se, possui vida dupla. Uma segunda mulher, neta do General O’Hara, barão da cocaína. E um jovem filho, Silvério, que segue a tia sargenta em busca do pai. Em sua vida oficial, um professor idealista, deslocado, que não consegue se comunicar com os alunos ou com a própria instituição para a qual trabalha. No Chile, converte-se em líder religioso da comunidade que passa a ser sua. Esther luta com todas as forças para trazer o irmão de volta aos Estados Unidos. Mas seria Felix um prisioneiro do narcotráfico ou estaria ali de livre e espontânea vontade? Qual a sua verdadeira vida, seu verdadeiro lar?
A cocaína é um território perigoso, uma droga que conjuga vida e morte, liberdade e aprisionamento, clareza e obtusidade.
El Colmillo de La Serpiente reconstrói esses tortuosos caminhos na forma de uma brilhante HQ. E abre caminho para José Muñoz nos deleitar com sua genialidade.
A temporalidade de El Colmillo de La Serpiente dança ao bel prazer do artista argentino. Há silêncios densos e eloquentes. Saltos no tempo e sarjetas que equivalem a originalíssimos raccords. E um uso de nanquim sem par na história dos quadrinhos.
Diante de uma página de Muñoz é possível ver a pena abrir sulcos no papel, através dos quais rios de tinta preta irão correr, animando personagens tridimensionais, táteis, críveis. Discípulo do seminal e insubstituível Alberto Breccia, o artista leva a beleza do contraste entre preto e branco a outros patamares. Em cada quadro de Muñoz é travada a derradeira guerra entre luz e trevas – a mesma enfrentada pelos irmãos Madrid. A abordagem gráfica de José Muñoz é a exata tradução imagética da trama noir de Charyn. Melhor: ela amplia e potencializa a visão do escritor norte-americano.
Penso na mesma HQ pelas mãos de Frank Miller – afinal, o velhote reaça é o criador de Sin City, a HQ noir americana por excelência. Os resultados seriam outros. Provavelmente desastrosos. Miller estetiza e glamouriza tudo. Sabemos, já num primeiro instante, que seus personagens não são reais – e ele sequer está interessado nisso. Miller se pauta pela ação, pelo choque. Muñoz segue na contramão. A introspecção, o ritmo e a crueza da vida são sua matéria-prima.
Sin City é música pop, rock. El Colmillo de La Serpiente é jazz.
O que nos leva a uma certa Billie Holida... Lady Day em estado de arte
A linda nova edição da Mino
O que é o jazz? O jazz é Billie Holiday. Mesmo que o gênero não se restrinja a ela, ninguém em sã consciência questionará o titânico talento e o legado indelével de Lady Day. Muito menos a maneira como a cantora decodificou dor e paixão negras em música celestial.
Ao lado do roteirista Carlos Sampayo – conterrâneo e parceiro de longa data –, José Muñoz cria uma pérola de rara beleza no mundo das histórias em quadrinhos. A Billie Holiday da dupla de argentinos é um expoente das biografias quadrinizadas. Poucas vezes as HQs chegaram ao sublime como aqui.
Estão em Billie Holiday todo o sucesso e toda a desgraça da cantora – seu calvário de drogas, prostituição, problemas com a lei, racismo, violência, amores dilacerados, decadência e morte prematura, aos 44 anos de idade. Sampayo, todavia, abdica completamente de uma narrativa cronológica e historicista. Ciente da esterilidade que seria tentar reproduzir a vida de Billie, prefere capturar sua aura. É a alma da cantora que está ali, aprisionada pelas tintas de José Muñoz.
O álbum é constituído por três histórias paralelas que se encontram no infinito. E o infinito é Billie Holiday. Do firmamento, a dama do jazz vaticina o que sabem todos aqueles que já ouviram sua música: sua voz não é apenas sua, mas de todos.
É noite de sábado na redação de um grande jornal de Nova York. Um jornalista atravessará a madrugada pesquisando e escrevendo sobre a cantora, falecida há exatas três décadas. O mergulho lhe deixará marcas.
Rufos, o velho barman, leva flores ao túmulo de Billie Holiday, 30 anos depois. Foi seu amigo e confidente. Entendeu, como ninguém, a história do amor ímpar e metafísico da cantora pelo saxofonista Lester Young.
Do outro lado da cidade, um homem é invadido por desconcertante nostalgia: recorda-se de ter recebido, ainda criança, um dólar para trocar o pneu do carro de Billie. Jamais esqueceu seu sorriso e seu olhar. E jamais soube que foi concebido tendo a música da artista ao fundo, sob preconceituosos protestos do pai. Seu nome? Allack Sinner.
O que entrelaça as trajetórias de Rufus, do jornalista em busca da manchete arrebatadora, e de Allack Sinner, é a vida de Billie Holiday. Em certa medida, é através deles que Muñoz e Sampayo nos levam a ela. E é através de Allack Sinner – criação máxima da dupla e um dos personagens mais icônicos do quadrinho mundial – que os dois autores se enredam na própria HQ.
Em Billie Holiday, Muñoz e Sampayo passam longe do lugar-comum de uma biografia fiel e especular da personagem. Do alto de sua maturidade artística, sabem que é impossível refletir a realidade através dos quadrinhos. Preferem criar uma realidade outra, a dos quadrinhos, na qual os destinos de Allack Sinner e Billie Holiday se tocam, arrastando consigo seus criadores. Em Billie Holiday, tudo é real.
Falar da beleza das pranchas de José Muñoz é chover no molhado. A vida de Lady Day é um drama negro, dilacerante. Assim é a arte de Muñoz: negra e dilacerante. O desenhista esculpe no papel as tortuosas almas de anjos caídos do jazz. Não por acaso o portenho conquistou o Grand Prix de Angoulême em 2007 – o que faz parecer ainda mais absurdo o fato de ser tão pouco publicado no Brasil.
Engana-se, porém, quem acredita ser esta a primeira versão de Billie Holiday no país. Com o subtítulo A dama negra do jazz, a HQ foi lançada em álbum pela L&PM Editores em 1991. Nada que se compare à atual edição da Mino, que mantém o nível das luxuosas reencarnações internacionais da obra. Capa dura com aplicações em dourado, belíssima introdução do crítico Francis Marmande e um maravilhoso caderno de extras, com ilustrações de Muñoz acerca do mundo do jazz.
Billie Holiday, de Muñoz e Sampayo é uma obra-prima. Que abra em definitivo as portas do Brasil a estes incomparáveis autores. A negra trajetória de Allack Sinner poderia vir à luz, assim como a bela biografia de Carlos Gardel. Não custa sonhar. De qualquer forma, será difícil tirar de Billie Holiday o título de melhor e mais bela HQ publicada em 2017.
A antiga edição da L&PM