Sandman: Meus dois… grãos de areia
/por Marcão Maciel
A estreia da tão aguardada série de TV baseada na criação máxima de Neil Gaiman reativou o contato com um dos gibis mais icônicos de minha juventude. Não que a versão live action tenha me agradado, muito pelo contrário. O visual galã “Prestobarba” do ator protagonista – totalmente inapropriado para um sujeito marcado pelas agruras do tempo, como o bom e velho Morfeu – e um sem número de escolhas equivocadas (elenco, fotografia, defeitos especiais, para citar alguns) não me empolgaram. Mas, bem ou mal, o hype do seriado me fez rever (e reler!) a HQ encabeçada pelo mais melodramático dos Perpétuos.
Minha história com Sandman começa em 1989, ano do lançamento no Brasil pela Editora Globo. Cara pra cacete (custava muito mais que meus gibis de hominho), a revista estava fora do meu orçamento, mas não da minha curiosidade. Corta para o dia em que meu vizinho metaleiro, um sujeito culto pra cacete que depois se tornaria professor de filosofia, me cedeu seu exemplar. Achei uma história de terror legal e fiquei surpreso em descobrir que tinha continuação, afinal, a primeira edição funcionava muito bem como história única. A partir daquele momento, minha história com o personagem seria bastante errática. Fui lendo uns números picados aqui e ali, sem muita constância, sempre dependendo da caridade do empréstimo de amigos e familiares.
A estrutura da maxissérie colaborava para que a leitura em sucessão numérica não fosse obrigatória. Permeada por saltos narrativos, flashbacks e interlúdios, Sandman nunca primou (e isso é um elogio) pela ordem cronológica. Aliás, um dos grandes baratos da série sempre foi tentar entender a sequência dos acontecimentos, tirando por base o visual e as situações vividas pelos personagens. Outra coisa boa de Sandman – ensejada pela divulgação boca a boca – era o fato de ser leitura bastante apreciada pelo público feminino. Manjar da trajetória de Morfeu era – portanto – boa ferramenta para tentar evitar a sina de incel. Mas o grande mérito da revista era que – ainda que meu ritmo de leitura oscilasse mais que a saga editorial do personagem no Brasil, marcada por inúmeros problemas de publicação e distribuição – as histórias não paravam de rodopiar em minha cabeça. Até hoje não pararam, na verdade.
Talvez o pior destino que um produto midiático possa ter é quando você o interrompe no meio e esquece de sua existência. Esse é um claro sinal de fracasso para os criadores envolvidos. Por exemplo: minha esposa, após ver o vibrante trecho inicial de Warriors – Os Selvagens da Noite (meu filme favorito, por sinal), foi dormir e – no dia seguinte – sequer demonstrou interesse em ver o resto. Tocou sua vida normalmente. A mesma coisa acontece comigo e as inúmeras obras que deixei pela metade, relegando a elas o limbo do esquecimento carimbado pela indiferença. Com Sandman nunca foi assim.
Embora tenha lido as 75 edições originais, além dos especiais e o escambau a quatro, sempre cultivei o desejo de ler o material de forma mais organizada, respeitando ao menos a sequência numérica e dedicando-lhe maior concentração. Afinal de contas, esse tal de Neil Gaiman adora colocar uns detalhezinhos marotos na história, que exigem olhar atento para proporcionar a chamada experiência completa. Eu sentia falta disso. Quando alguns fanfarrões diziam que tinham conseguido sacar quem era a namorada secreta do Sandman em “Vidas Breves” antes da revelação em “Entes Queridos”, tive receio de que não estava aproveitando o gibi da maneira ideal. E bem, reler tudo era um sonho distante, já que não é todo dia que o peão acorda com disposição para encarar os dez encadernados de uma história complexa, com 529 personagens e recheada por citações históricas e erudições literárias mil. Sem falar na falta de coragem para encarar as edições mais “osso duro”, desenhadas por artistas que davam vontade de chorar.
Aceito o desafio, era hora de voltar visitar a casa daquele velho amigo, território tão familiar quanto estranho. A primeira constatação é que – claramente – o gibi sofre uma guinada de gênero, afastando-se de seu início tipo terror gore e transformando-se numa saga de fantasia marcada por elementos de mitologia e tragédia. Claro que o horror não foi abandonado, mas é nítida a mudança de rumo da série depois de “Casa de Bonecas” e sua indigesta convenção de assassinos seriais.
Paradoxal em Sandman é o cuidado com a parte artística. As capas eram um desbunde e falar bem de Dave McKean é chover no molhado. As páginas internas também costumavam ser sublimes, contando com desenhistas do quilate de Charles Vess, Kelley Jones e P. Craig Russel. No entanto, às vezes o trabalho nesse setor ficava muito a desejar, como no caso do infame trabalho do senhor Duncan Eagleson em “Fábulas e Reflexões”. Fugindo da quase unamidade entre os Sandmaníacos, também admito que não morro de amores pelo senhor Teddy Kristiansen, responsável pelo Sandman mais horroroso que já vi na vida. Um dos grandes problemas para manter o bom nível artístico da série foi a constante mudança de equipes criativas, com a presença de diversos desenhistas tapa-buraco que tentavam emular – sem sucesso – o estilo do artista titular. Mas tudo bem, sempre tem um JH Williams III (Sandman – Prelúdio) para nos mostrar como a vida teria sido bem melhor se a série tivesse tido maior regularidade no quesito desenhos.
Ideia recorrente na série é a referência a Morfeu como o grande contador de estórias. Potencializando este ponto de vista metalinguístico, percebe-se que esse papel seria – em última instância – desempenhado pelo próprio Gaiman, que dá voz a profusos narradores e narrativas no decorrer da série. Momento paradigmático disso é a saga “Fim do Mundo”, na qual há um conto em que um sujeito está contando uma história sobre outro sujeito que está contando outra história sobre…(você entendeu!) num encadeamento que sugere uma espiral infinita, numa espécie de casa de bonecas russas.
Sim. Sandman é – essencialmente – uma estória sobre estórias. E, como sói acontecer, as estórias costumam se repetir. “Um Jogo de Você” é praticamente um replay lisérgico de “Casa de Bonecas”, ambas com estruturas centradas na psiquê de garotas que representam perigo catastrófico para o Sonhar. Há também as várias buscas de Morfeu: em “Prelúdios e Noturnos”, ele está procurando por seus objetos perdidos; já em “Vidas Breves”, o mote é a procura pelo irmão desaparecido. Mesmo os contos fechados apresentam disposição similar: do que falam “Sonho de Uma Noite de Verão” e “Ramadan” senão de pactos entre divindades e seres humanos que se recusavam a ser esquecidos? Nada muito fora do comum para uma série povoada por diversos mitos gregos, romanos e escandinavos. E o que é a mitologia senão um eterno “recontar” de estórias?
Não quero, contudo, afirmar que a estrutura de estórias que se repetiam fosse algo negativo. Ideias não faltaram ao senhor Gaiman. Estavam presentes aos borbotões e muitas vezes era difícil conseguir dar continuidade a elas depois que davam o ar de sua graça na intricada tragédia de Morfeus. O desfecho de diversos personagens foi levado pelas ondas e a resposta para muitas perguntas desapareceu como espuma no mar. Como se fosse um Dédalo moderno, Gaiman construiu um labirinto com bifurcações infinitas, que nem mesmo Teseu seria capaz de desvendar. Como na própria biblioteca do Sonhar (que brinca com o conto “Biblioteca de Babel”, de Borges) o leitor sabe que não encontrará resoluções para todas as perguntas, mesmo porque elas também são tão incontáveis quanto o número de livros presentes naquelas estantes empoeiradas.
Dúvidas cruéis turvarão os olhos dos leitores até o final e muitos segredos não serão revelados. Afinal, como diz o próprio nome da estória final, o “Despertar” é normalmente marcado por certo atordoamento, ocasionado pela lânguida transição entre o etéreo e o real. Não será, portanto, nesse fugaz instante que estaremos aptos para obter respostas para nossos questionamentos. Ou como diz o próprio Gaiman no posfácio de uma das edições norte-americanas de “Vidas Breves”: “Faça sua própria lista de perguntas. Nem todas serão respondidas. No fim das contas, é o mistério que permanece, não a explicação”.
Falando em dúvidas, poderá o leitor sobrevivente desta mal traçada carta na areia se perguntar se consegui sair mais satisfeito desta segunda incursão pelo Reino do Sonhar. Posso dizer que sim. Foi possível observar melhor o grande quadro pintado por Gaiman. Mas mesmo tendo lido tudo com olhos bem abertos, vejo que ficaram vários detalhes pelo caminho. São sombras fugidias, que já vão longe, desbotadas pela feroz passagem do tempo. Nada muito surpreendente. Afinal, sonhos têm esse estranho hábito de desaparecer sem dar aviso prévio, deixando nossos corações e mentes com sensações – na maioria das vezes – inexplicáveis.