O ORDINÁRIO FANTÁSTICO DE JEFF LEMIRE

GideonFalls01_pg06.jpg

por Márcio Jr.

Impressiona a popularidade que o quadrinista canadense Jeff Lemire possui no Brasil. Boa parte das editoras de grande e médio porte já publicaram – ou pretendem publicar – algum dos inúmeros títulos que levam sua assinatura.

Impressiona também a versatilidade do autor. Pode-se dizer que uma das características fundamentais de sua obra é o trânsito: Lemire vai de HQs confessionais de acento indie a sagas de horror e ficção científica à la Vertigo, passando pelos famigerados super-heróis. Tudo com desenvoltura e carregando uma marca indubitavelmente pessoal

Deixando os supers de lado, três trabalhos lançados no Brasil no último ano e meio ajudam a entender o sucesso de Lemire: O Ninguém (Pipoca & Nanquim, 2019), Apanhadores de Sapos (Mino, 2019) e Gideon Falls volumes 1 a 3 (Mino, 2018 – 2019).

Baseado no clássico de H.G. Wells, O Ninguém se apropria e reinventa O Homem Invisível sob a ótica particular de Lemire. Lançado originalmente em 2009 e um de seus primeiros trabalhos, a HQ sumariza o quadrinista: Estão ali presentes as pequenas comunidades e seus segredos; as difíceis e confusas relações pessoais; o carisma dos personagens; o traço simplório, ainda que eficiente; a clareza e fluidez do storytelling. Valendo-se de um repertório aparentemente limitado, Jeff Lemire consegue a proeza de agarrar o leitor e arrancar dele as respostas emocionais pretendidas.

Mais recente, Apanhadores de Sapos trilha caminhos similares, desta vez numa narrativa inteiramente original. Do ponto de vista gráfico, Lemire oferece uma arte quase negligente, plasmada em grafite e aguada, mas de incontestável funcionalidade.  Os elementos fantásticos da HQ servem como pano de fundo para lidar de forma sensível com o envelhecimento e a tentativa de um acerto de contas com o passado. Memória e a própria finitude da vida são as trilhas aqui percorridas pelo autor. Tal e qual O Ninguém, Apanhadores de Sapos carrega graciosa e singular força poética. Não espere, contudo, um tratado existencialista de primeira grandeza. Uma certa dose de despretensão é outra das características primeiras de Jeff Lemire – e provavelmente um de seus maiores acertos.

Ainda que permaneça nos limites do fantástico, a pegada de Gideon Falls é outra. Na série, impera o terror casca-grossa – em relação incestuosa com uma ficção científica que remete a Nikola Tesla. Ao contrário dos gibis citados anteriormente, aqui Lemire desempenha apenas o papel de roteirista, deixando a arte a cargo dos competentes Andrea Sorrentino e Dave Stewart. O resultado é uma série feita sob medida para quem gosta de quadrinhos horroríficos.

A marca de Jeff Lemire se faz notar em Gideon Falls. A trama fisga o leitor, mas o que o mantém preso à HQ são os personagens e suas críveis personalidades. Um padre com um passado a assombrá-lo, a relação entre uma terapeuta e seu psicótico paciente, o doutor desacreditado em sua obsessão com os eventos que acossam a cidade há décadas – entre eles, as assustadoras aparições de um tal celeiro negro.

GIDEON CAPA 1.jpg

Para o tipo de “realismo” proposto pela série, a arte de Andrea Sorrentino se encaixa como uma luva. Sorrentino é seguidor da mesma escola de Alex Maleev e Jae Lee, isto é, seus quadros parecem fotos PB em alto contraste. Todavia, em Gideon Falls, as massas pretas das imagens nunca são totalmente pretas, apresentando vincos como se a própria madeira do celeiro negro fosse a matéria-prima de toda a treva. A abordagem fotográfica se dissolve unicamente nos momentos em que os personagens adentram uma espécie de limbo interdimensional, adicionando força narrativa à trama. Ao lado da potência das imagens, o desenhista exibe ainda uma decupagem arrojada e (felizmente) distante do mero maneirismo. As cores de Dave Stewart, por sua vez, dão liga à HQ, acrescentando atmosferas sombrias e mostrando o porquê de ser um dos nomes mais prestigiados da indústria.

GIDEON PÁG1.jpg

Gideon Falls peca, contudo, por ser parte deste panorama do mainstream norte-americano, onde tudo parece ser criado tendo como objetivo as telas de TV. Cada volume corresponde a uma temporada onde as coisas não se resolvem, deixando inúmeras pontas soltas para serem desenvolvidas na temporada seguinte – o que, efetivamente, não acontece. Lidos três volumes (que contabilizam 432 páginas), a impressão que se tem é que seria possível avanços maiores na narrativa. De qualquer forma, o suspense permanece e queremos ver o desenlace que os próximos capítulos prometem.

Em uma mídia que ainda busca legitimidade e aceitação por um público mais amplo, pouco se fala em quadrinhos ordinários – isto é, aqueles que não pertencem ao cânone e tampouco são inacessíveis a leitores não iniciados no universo das HQs. Um quadrinho para todos – em certa medida. Assim como as séries de TV não exigem nenhuma cinefilia por parte de seus espectadores, espera-se que o mesmo ocorra quando da leitura de um quadrinho ordinário.

Gideon Falls, Apanhadores de Sapos e O Ninguém não são obras-primas. Por outro lado, difícil imaginar alguém que não tenha uma leitura minimamente prazerosa com estas HQs – mesmo não sendo leitor assíduo de quadrinhos. Me parecem, inclusive, eficazes portas de entrada para um novo público. Pena que suas luxuosas edições, em capa dura e preço salgado, dificultem tal aproximação. (Não deixam de ser um bom presente.)

Talvez o sucesso de Jeff Lemire resida justamente neste caráter ordinário. Nisso e num forte apelo ao leitor exclusivamente dedicado aos comics: suas HQs parecem mais profundas do que realmente são – o que oferece a esse público uma reconfortante ilusão de maturidade. Não que o premiado autor não possua obras de maior fôlego – Condado de Essex, por exemplo. Mas o fato é que ainda lhe falta chão para ocupar um lugar de primeira grandeza nessa mídia. Lemire é um autor sólido e interessante. Como muitas dessas séries de TV a que as pessoas dedicam horas e horas em incessantes maratonas madrugada adentro.