MELHORES LEITURAS DE 2023 POR MARCÃO MACIEL
/E a lista dos melhores quadrinhos lidos em 2023 pela equipe da Raio Laser continua! Depois do inoxidável Bruno Porto, seguimos com a lista do cosmopolita Marcão Maciel. é ele mesmo que descreve sua seleção:
“Li muita coisa em 2023. Gibi novo, gibi velho. Gibi de tudo quanto é canto e sobre os mais variados assuntos. Esta lista é um reflexo de tudo isso. Tem mangá, europeu e americanos do Norte e do Sul. Não sei o que isso significa, mas de uma coisa eu tenho certeza. Ler gibi é bom pra cacete.”
Acasos do Destino – Paco Roca (Devir, 2022). Tradução de Jana Bianchi
Os vencedores da Segunda Guerra Mundial voltaram para casa e foram aclamados como heróis? Sim na maioria dos casos, mas não para os combatentes da companhia militar “La Nueve”, formada por brigadistas espanhóis que lutaram ao lado do exército francês contra o nazi-fascimo. A esperança era de que a derrocada do Eixo fizesse com que os ventos democráticos também soprassem pros lados de sua terra natal, mas não foi o que aconteceu. O franquismo continuou livre, leve e solto e o anarquista Miguel Ruiz, cuja história de vida é o cerne deste gibi, teve de amargar o exílio numa cidadezinha francesa. E porque ele e milhares de outros não voltaram pra casa? Simplesmente porque a sociedade espanhola da época não estava muito receptiva à ideia de receber possíveis encrenqueiros associados com ideais de liberdade e qualquer coisa que beirasse a subversão. Quer saber mais? Não deixe de conferir mais essa pérola de Paco Roca.
Cachalote – Daniel Galera e Rafael Coutinho (Cia das Letras, 2017)
Obras com histórias aparentemente desconexas que vão aos poucos se interligando não são exatamente uma novidade, mas Daniel Galera e Rafa Coutinho mostram que este tipo de narrativa ainda tem lenha para queimar. O formato grande (21 x 27 cm) é um excelente convite para apreciar a arte de Rafa Coutinho como se deve: sem moderações. E como desenha esse desgramado. Rafa desenha sem preguiça e qualquer ilustração sua – como casas, bares e ruas – possui uma admirável despretensão pretensiosa. Corra atrás do seu antes que esgote.
Confins de um sonho – Yumi Sudo (Pipoca e Nanquim, 2023). Tradução de Drik Sada
A história do amor não realizado entre duas mulheres adquire contornos ainda mais dramáticos quando a trajetória deste não romance é observada pela indomável lupa do tempo. Mas esta não é uma análise convencional e cronológica, muito pelo contrário. A narrativa feita na ordem inversa dos acontecimentos irá acentuar as partes mais doloridas das escolhas feitas pelo pretenso casal. E o leitor brasileiro terá um prazer adicional em conferir essa viagem no tempo, já que a leitura do mangá no sentido original, ou seja, da direita para esquerda, aumentará a sensação de retorno ao passado. Se tivesse que escolher apenas uma leitura no ano inteiro seria esta. Disparado.
Escalpo vols 1 a 5 – Jason Aaron e RM Guéra (Panini, 2017-9). Tradução de Fabiano Denardin e Levi Trindade.
A intricada trama que envolve os habitantes da reserva indígena Rosa da Pradaria fisga de imediato qualquer leitor que esteja em busca de um gibi que respire frescor e inovação, fugindo da mesmice assolava o mercado norte-americano da década de 2010. Hoje a indústria parece mais forte e renovada, com diversas editoras (especialmente a Image) como celeiro de séries interessantes e ousadas. Mas isso é outra história. O cotidiano da reserva nunca foi dos mais tranquilos, mas a coisa degringola quando o filho pródigo Dashiell "Dash" Cavalo Ruim retorna a sua terra natal para atuar como faz-tudo do chefe Lincoln Corvo Vermelho. Daí por diante somos arremessados numa história insana, repleta de reviravoltas, com coadjuvantes incríveis, que roubam a cena. O quarto volume, basicamente com histórias fechadas de personagens secundários, beira o sublime. Falando sério, meses após a leitura desse gibi, minha cabeça ainda está zunindo com tanto tiro, porrada e bomba.
Gosto do Cloro – Bastien Vivès (Leya Brasil/Barba Negra, 2012) – Tradução de Maria Clara Carneiro
Disposto a praticar natação para melhorar problemas de coluna, um rapaz decide frequentar uma piscina pública. Ele só não esperava que sua falta de jeito pro esporte chamaria a atenção duma bela garota disposta a compartilhar seu conhecimento sobre as melhores técnicas de nado. O contato inicial evolui para uma relação de flertes que ocorrem dentro e fora d’água. Bastien Vivès certamente consultou atletas e manuais de natação como material de referência para esta obra, cuja representação esportiva é irretocável. Embora seja um de seus primeiros trabalhos, Vivès já demonstra aqui o talento pelo qual viria a ser reconhecido, exprimindo sentimentos e sensações com poucas e certeiras pinceladas. O desfecho aberto e sem maiores explicações pode deixar a ver navios os mais curiosos sobre o final do romance, mas talvez nesse caso o melhor final seja aquele que cada leitor imaginou para si.
Guardianes del Sur – Sebastián Castro e Guido Salinas (Planeta Cómic, 2022)
Muitas vezes um gibi deve ser mencionado não pelo prazer da leitura que proporciona, mas pelo grau de importância política que possui. Guardianes del Sur é um desses casos. Representar os maiores guerreiros mapuche (um dos principais povos originários do Chile) como super-heróis enfrentando a ameaça do colonizador espanhol foi uma escolha acertada para recordar que valores como a autodeterminação dos povos são inegociáveis. Em tempos em que somos constantemente lembrados de que o direito de determinadas nações prevalece sobre o de outras (sim, estou falando de Israel x Palestina), este tipo de alerta deve continuar ressoando em nossos corações e mentes, para que o absurdo não se torne sinônimo de normalidade. Leia mais AQUI .
Ping Pong vols 1 e 2 – Taiyo Matsumoto (JBC, 2021-2) – Tradução de Hiro Tamaki
Muito mais que a história de amizade entre dois atletas em ascensão no tênis de mesa japonês, Ping Pong é uma narrativa em alta combustão sobre talento, sacrifício e obsessão. A galeria de personagens é marcante e recebe espaço gigante, muito porque Tsukimoto, o protagonista relutante, parece fugir do holofote, ainda que seja a estrela em torno da qual o restante do elenco orbita. As páginas vertiginosas de Matsumoto transportam o leitor para dentro dos quase mitológicos duelos travados por guerreiros com raquetes nas mãos e sangue nos olhos. A sequência de 20 páginas sem diálogos no final do segundo volume é de cair o cu da bunda, uma experiência catártica digna de momentos tensos, como a apuração das eleições presidenciais de 2022. Como se não bastasse, a leitura de Ping Pong é um bilhete de retorno aos tempos da adolescência, profusos em rivalidade, competição e sentimento de aventura. Tudo isso embalado em dois volumes elegantes, prontos para reforçar a coleção de qualquer otaku que se preze.
Prisioneiro dos sonhos vols 1 e 2 - Marc-Antoine Mathieu (Comix Zone, 2022) – Tradução de Fernando Paz
As aventuras de Julius Corentin Acquefacques são daquele raro tipo de gibi que eleva a potencialidade dos quadrinhos enquanto forma de arte. Mathieu rompe de forma genial os limites da bidimensionalidade utilizando soluções que incluem encartes, fotografias e objetos 3D. Os pretos densos e chapados da arte são profusos em cenas com perspectivas delirantes e visões de um futuro burocrático, superlotado e sufocante, dignas de Kafka. O planejamento milimétrico do roteiro propicia momentos inacreditáveis, com o encontro de narrativas opostas, viagens no tempo e loops bem encaixados. Mais que uma leitura, Prisioneiro dos sonhos é uma experiência metalinguística sofisticada, poucas vezes igualada.
Rosa de Versalhes vols 1 a 5 - Riyoko Ikeda (JBC, 2019). Tradução de Karen Kazumi Hayashida
O complexo triângulo amoroso entre a rainha Maria Antonieta, um nobre sueco e uma garota que foi criada como homem é a trama central deste clássico definidor do gênero manga histórico. Misturando ficção e realidade, Rosa de Versalhes conta a trajetória de Oscar, a garota andrógina que enfrentou todo tipo de obstáculo para fazer valer seu ponto de vista na efervescente Versalhes pré-Revolução Francesa. Com uma penca de personagens interessantes, reviravoltas e conspirações de todo tipo, a mangaká Riyoko Ikeda dá uma aula de narrativa e história, fazendo-se valer de efeitos visuais – especialmente no formato dos balões – particularmente inovadores. Nada mal para quem, com apenas 24 anos, teve a personalidade de lançar um gibi com temas tão progressistas em pleno Japão da década de 1970.
Estranhas Aventuras vols 1 e 2 – Tom King e Mitch Gerards (Panini, 2021). Tradução de Mario Luiz C. Barroso
Nem tudo que Tom King toca vira ouro, mas quando o sujeito acerta, sai de baixo. Strange Adventures é um claro exemplo deste último caso. Dando sequência a sua estratégia de utilizar novas abordagens em personagens do segundo escalão, como Omega Men, Sr. Milagre, Visão e etc. Desta vez Tom King joga seu holofote sobre o herói de Rann, Adam Strange. Como sempre, cada edição é bem roteirizada, contando com desfechos ganchudos, que deixam o leitor sedento pelo número seguinte. Envolvido numa história mal contada que não convence nem a vovozinha de Taubaté, Adam Strange é o centro de um mistério que até o Batman se recusa a investigar, passando o bastão para o Sr. Incrível, da Sociedade da Justiça. Aguarde por intrigas interplanetárias, reviravoltas e a constatação de que o Sr. Incrível é um dos personagens mais subestimados da editora do Superman. O final é desconcertante e deixará o decenauta de plantão com o queixo caído.