Melhores leituras de 2019 #01 - Marcos Maciel de Almeida
/por Marcos Maciel de Almeida
Ano passado mencionei que “da quantidade se extrai a qualidade”. Acontece que quebrei a cara. Esse ano consegui ler um número razoável de gibis, mas – feito o filtro final de leituras – notei que a lista definitiva não estava tão empolgante quanto esperava. Na verdade foi um esforço conseguir escolher as edições que merecessem figurar no meu Top 10 de 2019. Nem sei dizer o que isso significa direito. Talvez tenha me tornado mais exigente ou não esteja procurando no lugar certo. Outra possibilidade – será? – é que the thrill may have been gone from me. Espero que não. Seja como for, as publicações a seguir – sem nenhuma ordem de preferência – foram aquelas que conseguiram sacudir meu esqueleto num ano em que tive de garimpar muito para encontrar escassas pepitas.
Marcha para a Morte – Shigeru Mizuki (Devir, 2018)
Depois de insistir em republicar gibis já familiares dos brasileiros, como Uzumaki e Tekkon Kinkreet, a Devir e seu selo Tsuru voltaram a ousar e nos brindaram com este Marcha para a Morte, vencedor do prêmio Eisner em 2012, na categoria melhor edição norte-americana para material internacional. Narrativa pessoal e autobiográfica de Shigeru Mizuki, que participou da II Guerra Mundial lutando pelo lado japonês, o mangá é um tapa na cara das pessoas que ainda insistem em tentar encontrar justificativas racionais para enfrentamentos armados. Cruel, tocante e desumana são alguns dos adjetivos que mal começam a descrever a rotina dos soldados japoneses durante aqueles dias desgraçados. Mal treinados, mal alimentados e – sobretudo – mal informados, eram tratados como simples peões pelo alto escalão das Forças Armadas, cego por glória pessoal e com vista grossa para o destino de milhares de pobres coitados. É praticamente impossível tentar acompanhar – embora haja um guia de personagens – a trajetória de todos os participantes do gibi. Mas acredito que a intenção do autor tenha sido justamente essa ao lançar o leitor num mundo de rostos novos – todos parecidos entre si – que servem apenas como coadjuvantes para o ritmo rápido e inexorável da guerra. Você meio que se pergunta se vale a pena decorar o nome de alguém, visto que o sujeito dificilmente sobreviverá na página seguinte. Detalhe importante: não é nesse gibi que ele conta isso, mas o autor perdeu o braço esquerdo – e ele era canhoto! – durante as batalhas e amargou uns bons anos até conseguir se firmar como mangaká. Punk no último.
Sabrina – Nick Drnaso (Drawn and Quarterly, 2018)
A personagem do título desapareceu e seu namorado, Teddy, ao invés de ajudar nas buscas, pica a mula para a casa de um amigo, Calvin, em Chicago. Mergulhado numa crise depressiva, ele adentra um universo de paranoia, fake news e autoritarismo. Esse é o pano de fundo para uma história que fala sobre luto, egoísmo e radicalismo. Extremamente vulnerável devido às circunstâncias do sumiço de sua amada, Teddy se torna presa fácil para as autopropaladas celebridades de internet, que vomitam desinformação. A prostração do protagonista é contrabalanceada pela presença do amigo funcionário das forças armadas, Calvin. O quotidiano do militar é esmiuçado de forma brilhante e realista pelo autor, que se revela um mestre na elaboração de diálogos autênticos. Fiel seguidor da cartilha imagética de Chris Ware, Drnaso mostra-se um desenhista em evolução, criando quadros em perfeita sintonia com a sensação de tédio e claustrofobia que deseja transmitir para retratar a rotina de desolação de seus personagens. Leia mais AQUI.
Dragonero 1 a 4 – Luca Enoch, Stefano Vietti e Giuseppe Matteoni (Sergio Bonelli Editore, 2013)
Nunca fui grande apreciador de obras do tipo “Capa & Espada”, que sempre me remetem aos intragáveis mestres e jogadores de RPG. Mas, embora seja fiel representante do gênero, Dragonero me agradou, apesar de apresentar todos os tipos de clichê que se espera de HQs dessa natureza. Estão presentes o cavaleiro cabeludo, o ogro resmungão e fortinho, a espadachim gostosa e etc. Verdade seja dita, não tem nada demais no gibi e talvez essa despretensão seja seu grande trunfo. Dragonero narra as aventuras de Ian – o tal cabeludo – e seu grupo num mundo cruel, povoado por criaturas monstruosas, magos, elfos e toda aquela rapaziada do Senhor dos Anéis. Longe de ser a HQ que vai mudar sua vida, Dragonero prima por narrar histórias bem contadas, em edições autocontidas, como costuma acontecer nas publicações da Sergio Bonelli. Fora do normal por aqui só mesmo a arte do inacreditável Giuseppe Matteoni. A riqueza de detalhes e visceralidade que esse italiano entrega a cada página são de cair o queixo. Pena que ele só tenha ficado nos capítulos iniciais do gibi que, justamente por isso, são meus favoritos em toda a – longuíssima – série.
Mort Cinder – Héctor Oesterheld e Alberto Breccia (Figura, 2018)
Fiel à atual onda de edições luxuosas – e caras – do mercado editorial quadrinístico brasileiro e mundial, esse lançamento da editora Figura fez valer cada centavo gasto. Parido pelas mentes criativas de dois grandes do quadrinho argentino, o gibi conta a trajetória de Mort Cinder, um sujeito que, embora tenha morte no nome, se recusa a se deixar levar pelo Trem das Sete Horas. Aproveitando o gancho dessa célebre canção de Raul Seixas, chego a suspeitar que Mort tenha sido o tal que “nasceu há dez mil anos atrás”, já que era um sujeito tão casca grossa a ponto de ter trabalhado na construção da Torre de Babel e de ter lutado com os 300 de Esparta na famosa Batalha das Termópilas. O ponto alto da publicação é o tratamento gráfico. Segundo Rodrigo Rosa, responsável pelo projeto, buscou-se reproduzir as melhores páginas impressas existentes do material. E o resultado satisfaz as expectativas, com folgas. Tamanho cuidado fez com que a arte de Breccia pudesse reluzir ainda mais, ganhando um produto à sua altura. Estão ali cada ponto e traço do velho mestre que, assim como sua criatura, tornou-se imortal a cada pincelada.
Alan Ford 1-4 – Max Bunker e Magnus (La Gazzetta dello Sport, 2019)
Um Convidado Bem Trapalhão encontra James Bond. Esse é o resumo da ópera para o longevo quadrinho Alan Ford, lançado já no distante ano de 1969. Essa republicação mostra as primeiras histórias que nos deram esse clássico dos fumetti. Como é de praxe nas HQs italianas, o personagem principal é baseado num ícone do cinema – normalmente norte-americano – sendo a honra reservada desta vez para o irlandês Peter O’Toole. Alan Ford é um designer mal sucedido que, por acidente, acaba se juntando à organização T.N.T., formada por paspalhos inacreditavelmente incompetentes. O gibi é pura sátira e esculhambação com o gênero dos filmes de espiões e agentes secretos. Na segunda edição, por exemplo, intitulada “O dente cariado”, Alan se vê às voltas com um dente dolorido, sem saber que aquele foi o local escolhido para transportar um documento sigiloso. A trama é recheada de cenas rocambolescas, vilões canastrões e femmes fatales, ou seja, tudo que já estamos cansados de ver, com a diferença de que, desta vez, os autores fazem questão de evidenciar as situações ridículas e exageradas enfrentadas pelos James Bonds da vida, de segunda à sexta no horário comercial.
Aquele Verão – Jillian e Mariko Tamaki (Mino, 2019)
Essa HQ foi premiada com um Ignatz (2014) e um Eisner (2015) na categoria de melhor graphic novel. Não é para menos. Produzida pelas primas Mariko e Jillian Tamaki, Aquele Verão mostra duas autoras relativamente desconhecidas apresentando um trabalho de grande maturidade, tanto pela qualidade do texto, quanto pela beleza da arte. Todo desenhado em tons de azul, conta os mais recentes acontecimentos vividos pela dupla Rose e Windy, amigas que sempre se encontram em Awago Beach, espécie de refúgio para famílias em busca de descanso e relaxamento. Acontece que, neste particular verão a diferença etária entre as adolescentes começará a se fazer presente, fato que criará pontos de fricção e conflitos de interesse, sempre retratados com especial sensibilidade e elegância pelas quadrinistas. A suavidade da trama tecida por Mariko é habilmente costurada por Jillian, que se revela uma artista excepcional. Sua capacidade de mostrar expressões faciais e construir cenários deixa muito desenhista veterano babando de inveja. Para resumir, trata-se de uma experiência imersiva e hipnotizante. Imperdível.
Alley Oop: The First Time Travel Adventure – VT Hamlin (LOAC, 2014)
O nome em inglês é complicado, mas o Alley Oop é ninguém menos que nosso bom e velho Brucutu, o homem das cavernas que resiste bravamente até hoje nas tiras de jornal (norte-americanas). Criado em 1932 pelo cartunista VT Hamlin, o personagem tem aquela que é considerada sua fase de ouro colecionada nesse simpático capa dura da Library of American Comics, editora voltada para a republicação dos grandes clássicos das tiras da terra do Tio Sam. O gibizinho tem um – bem-sacado – formato de tira, pensado justamente para que o leitor tenha a experiência aproximada de quem leu pela primeira vez no jornal. Compilando um ano de aparições do Brucutu a partir de março de 1939, o encadernado junta a saga em que ele viaja pela primeira vez no tempo acompanhado por sua namoradinha Ulla. Além do deleite de curtir a arte “linha clara” de Hamlin, o gibi é marcante pela sua crítica aos costumes da sociedade americana da época. Mas, principalmente, por retratar o zeitgeist, revelando certo fascínio ingênuo pelo mundo que a tecnologia descortinava. Após algum tempo morando no futuro, Brucutu e Ulla são convidados a retornar para o passado remoto, alternativa que prontamente recusam. Seduzidos pelo luxo da modernidade, eles são o reflexo da esperança que o norte-americano médio tinha nas possibilidades abertas pelo fordismo. Uma pena que aquele ano (1939) conheceu o alvorecer de um conflito sem precedentes na história da humanidade, marcado pelo uso mais que nefasto dos meios de produção tecnológica à disposição.
Face Oculta vols 1-3 – Gianfranco Manfredi e outros (Panini, 2017-8)
Essa epopeia de quase 1500 páginas coleciona os 14 volumes da minissérie Face Oculta, que narra a primeira guerra entre a decadente Itália e a bem armada Etiópia no final do século XIX. Rico em detalhes, pesquisa e dados históricos, como é comum nos gibis italianos, este fumetto conta uma história ficcional envolvendo um líder etíope chamado Face Oculta, que atuava de forma quase independente nos complicados jogos de poder do período. O fio condutor da narrativa são os encontros do impertinente italiano Ugo Pastore, exímio atirador, com o misterioso líder africano. A relação entre os dois desencadeia uma série de acontecimentos que afeta líderes políticos, grupos comerciais e os rumos da própria guerra. Dentre os pontos altos da HQ pode-se mencionar a presença de personagens tridimensionais e imprevisíveis, roteiro intrincado e bem amarrado e uma verdadeira aula de história sobre um conflito muito pouco comentado. Embora nem tudo sejam flores, dada a irregularidade e diferença artística entre os mais de dez(!) desenhistas participantes, é possível saborear a arte de mestres como Giuseppe Matteoni, Massimo Rotundo e Goran Parlov.
Rugas – Paco Roca (Devir, 2017)
Rugas é uma experiência imersiva no mundo das pessoas que sofrem de Alzheimer. Emilio, que padece com a doença, é internado por seu filho num asilo e passa a conviver com diversos tipos de idosos, dos mais inocentes até os mais mal intencionados. Por meio de truques e efeitos narrativos diversos, Paco Roca transporta o leitor para viver essa nova jornada na vida de Emilio, convidando o espectador a enxergar o mundo pelos olhos de quem está – constantemente – lutando para tentar se encontrar no tempo e no espaço. Sutil e sensível, Rugas é o gibi perfeito para derreter os corações mais duros, já quase enferrujados pela falta de emoção.
Intrusos (Nemo, 2019) e Shortcomings (Drawn and Quarterly, 2009) - Adrian Tomine
Até anteontem nunca tinha lido nada do Adrian Tomine. Depois de conhecer os dois trabalhos acima, entretanto, bateu um baita arrependimento por ter demorado demais para ter feito isso. Pensa num cabra bom. Desenha super bem, com um traço limpo e conta histórias de forma fluida, com ideias tão originais quanto fofinhas. É um daqueles caras capazes de andar com desenvoltura na tênue linha entre sensibilidade e rudeza, desferindo tapas com luva de pelica na cara de leitores desavisados em particular e na sociedade em geral. Vejamos esse seu Intrusos: são seis histórias supimpa de boas, com ganchos bem bolados e que poderiam acontecer com qualquer pessoa submetida a situações embaraçosas, estranhas ou simplesmente bizarras. A primeira história, por exemplo, surpreende pela montagem, ao conectar tiras de jornal, sempre com um punchline no último quadro e com a sétima tirinha (a dominical) feita a cores, como nos jornais de outrora. Outra coisa que chama a atenção é a capacidade de Tomine em construir personagens complexos, incoerentes e individualistas, mas, sobretudo, humanos. E o que dizer do Shortcomings? Bem, conta a história de um sujeito que não consegue se firmar nos relacionamentos, porque é muito superficial e apegado a aparências. Não quero falar muito a respeito, mas basta dizer que o personagem principal revelou-se assustadoramente parecido com este que vos fala. Maldito Tomine.