Luzes de Niterói: o esgarçar do tempo
/por Márcio Jr.
Marcello Quintanilha não dá ponto sem nó. Ano passado ficou quietinho, fingindo de morto e saboreando os frutos de Todos os Santos, compilação de trabalhos pregressos com pendores de art book. Aí, como quem não quer nada, desova Luzes de Niterói: assombrosa novela gráfica espraiada em 232 páginas coloridas. Em um primeiro semestre relativamente morno para o quadrinho nacional, o livro foi uma surpresa mais que bem-vinda.
A marca de Quintanilha se faz presente. As luzes que que deram o ar da graça em obras anteriores voltam a brilhar intensamente por aqui: a perfeita captura de tipos humanos, um raro sentimento de nostalgia, a inequívoca brasilidade. Não nos confundamos: o quadrinista niteroiense está longe de se acomodar sobre um repertório já domesticado. Os elementos que sistematicamente retornam a seu trabalho são, antes de mais nada, a matéria-prima de uma produção cada vez mais sólida e distinta. No Brasil e no mundo.
Em Luzes de Niterói, cuja trama se passa nos anos 1950, o autor retoma um tema/personagem que lhe é particularmente caro: Hélcio Quintanilha, o então promissor beque direito do Canto do Rio Foot-Ball Club – e protagonista de sua graphic novel inaugural, Fealdade de Fabiano Gorila. Seu pai.
O gatilho que dispara a narrativa é, deliberadamente, o mesmo a deflagrar Tungstênio: pesca marinha com o uso de bombas. Daí em diante, o que se passa é uma comédia de erros, envolvendo Hélcio e Noel, amigo íntimo portador de dramática deficiência física. Diante da possibilidade de fazer um dinheiro fácil recolhendo os peixes mortos pelas explosões, acabam arriscando a vida na ilha naturista da icônica atriz e dançaria Luz del Fuego para, pouco depois, enfrentarem um terrível temporal na Baía da Guanabara. Tudo isso no decorrer de um único dia.
É na amizade entre os dois jovens suburbanos – seus pactos, códigos e, principalmente, em como esta mesma amizade é colocada em questão – que reside a alma de Luzes de Niterói. O livro poderia naufragar num lamaçal de pieguice caso incorresse no equívoco de se propor como tratado moral. Quintanilha navega ao largo desta potencial tolice. Seus personagens são tridimensionais, humanos. E sobre eles o autor não lança qualquer julgamento –um complexo desafio, considerando os estreitos laços familiares que o ligam a Hélcio, ainda vivo.
Enquanto linguagem quadrinística, o que vem à tona em Luzes de Niterói é o uso de uma temporalidade distinta daquelas já utilizadas por Quintanilha em outras obras. É este o dado novo e particular da HQ. Causa impressão.
A narrativa das histórias em quadrinhos se dá em saltos temporais majoritariamente alojados no intervalo entre os quadros – a sarjeta. Marcello Quintanilha sempre refutou a tese de que seria a página a unidade narrativa de uma HQ. Para ele, tudo acontece dentro dos quadros. Em Luzes de Niterói, esta concepção é levada ao limite.
Os intervalos temporais entre um quadro e outro são reduzidos a uma essencialidade que beira o absoluto. Como em um mangá, gestos, olhares e ações são detalhadamente representados, reduzindo aquilo que Scott McCloud define como conclusão do leitor. O tempo se esgarça, se desdobra e se aprofunda na HQ. O resultado deste estratagema é uma grave imersão na narrativa, como se estivéssemos ali presentes, assistindo a tudo em algo que se assemelha ao tempo real.
Quando Hélcio quase se afoga em um mergulho, prendemos a respiração junto com ele. Durante a forte tempestade enfrentada pelo beque e seu amigo em uma débil canoa, sentimos sua aflição e a proximidade da morte. A sequência, que ocupa cerca de 60 páginas, traz uma das mais potentes representações gráficas de chuva já vistas nos quadrinhos. Me senti encharcado ao final da leitura.
Ao contrário de Tungstênio, Talco de Vidro e Hinário Nacional, Luzes de Niterói assinala o retorno de Marcello Quintanilha ao uso de cores em uma HQ. Nada, contudo, que remeta a trabalhos mais antigos como Sábado dos Meus Amores e Almas Públicas, marcados por um cromatismo orgânico e realista. Lançando mão de uma paleta extremamente reduzida, a colorização (digital) foi aplicada invariavelmente em blocos planos e chapados – o que me trouxe à memória o trabalho do espanhol Rubén Pellejero.
Ainda que a estrutura naturalista do desenho de Quintanilha se mantenha intacta, Luzes de Niterói exibe uma abordagem que privilegia o traço – feito a grafite. O jogo de luz e sombras foi reduzido ao mínimo, transformando a linha em soberana absoluta. A sinergia alcançada junto às cores planas trouxe à vida uma HQ graficamente tocante e sensível, numa espécie de antevisão do que seria a tradição da linha clara se esta tivesse surgido nos trópicos.
Dizer que Marcello Quintanilha é um dos maiores nomes da HQ brasileira contemporânea é chover no molhado. A questão passa a ser outra. Construindo diligentemente uma carreira movida a cuidado e respeito pela própria obra, o quadrinista tem deixado marcas perenes na história dos quadrinhos nacionais. Tal e qual Tungstênio e Talco de Vidro, Luzes de Niterói nasce clássico. O cânone me parece inescapável.
AS LUZES DE MARCELLO QUINTANILHA - ENTREVISTA POR MÁRCIO JR.
Luzes de Niterói é um belo título. Como chegou a ele?
Títulos são tão importantes quanto a obra em si. Neste caso, ele deriva da nostalgia de que sou vítima ao trabalhar o entorno no qual o relato transcorre. As luzes noturnas da cidade são marcas indeléveis da minha infância e adolescência, vistas à distância nas antigas barcas de madeira e ferro que cruzavam a Baía da Guanabara. São também o componente lúbrico de uma atmosfera autocrática, de um mundo feito de certezas, onde o Brasil se lançava na aventura do crescimento como nação, de bens de consumo duráveis, de enormes modelos de automóvel, imprevidentes da futura crise do petróleo, sinais da sociedade que emergiu vitoriosa da II Guerra Mundial.
Assim como em Fealdade de Fabiano Gorila, Luzes de Niterói traz seu pai como protagonista – promissor beque direito do futebol fluminense dos anos 50. Ainda tem outras histórias de seu Hélcio Quintanilha para contar?
Depois de um novo álbum me sinto completamente vazio. Não estabeleço parâmetros de longo prazo, nem estratégias de realização. A resposta, neste caso, deveria ser “não”.
A história é muito rica em detalhes e minúcias. Quanto dela foi criada por você e o quanto ela corresponde aos fatos ocorridos?
A história segue uma linha principal, estritamente baseada nos fatos. A busca pelos peixes, o encontro na ilha, o fracasso na tentativa de se comercializar o butim em Paquetá. A forma de abordar cada uma destas etapas é construída a partir da ficção, no entanto, tendo como premissa a ideia de que mesmo em dimensão ficcional, cada um dos acontecimentos poderia ter ocorrido exatamente nos mesmos termos em que são expressos no álbum.
Hélcio, seu pai, é exposto de forma muito transparente em Luzes de Niterói. Ele já leu o livro? Como foi a recepção dele à obra?
Ele é muito idoso hoje e, até onde sei, adorou o material
A narrativa veio através do seu pai ou outros personagens da HQ também lhe forneceram versões do ocorrido?
Exclusivamente através do meu pai. Ele me contou essa história uma única vez, quando eu ainda era criança, e, por anos a fio, fiquei com os elementos sob a alça de mira, até encontrar a ocasião ideal para trabalhar neles.
Você chegou a conviver com Noel?
Sim, era um dos melhores amigos do meu pai. Sua condição física lhe impunha muitas limitações, mas isso nunca foi empecilho para que vivesse grandes aventuras. Ele nos deixou há mais de 20 anos.
Graficamente, o álbum apresenta uma arte mais sintética que Tungstênio e Talco de Vidro. Poderia falar um pouco dessa escolha e das dificuldades impostas por este estilo?
Sempre experimento técnicas que são determinadas pela forma em que a história deve ser contada, num sentido que me obriga a reaprender a desenhar constantemente, frequentemente partindo do zero. Sei que pode parecer estranho, mas me sinto muito confortável nesta situação; pesquisando novos recursos, novas formas de expressar a humanidade dos personagens. As dificuldades, portanto, são numerosas demais para serem mencionadas, mas são inerentes a qualquer processo de criação, o que abre uma perspectiva apaixonante do meu ponto de vista, uma vez que cada álbum adquire, mais que um percurso próprio, um organismo único.
A paleta de cores adotada em Luzes de Niterói é essencialmente plana. Quais os motivos desta escolha?
Sobretudo a objetividade. Minha intenção era eliminar tudo que não se prestasse à apreensão imediata dos signos. Cabe ressaltar que a paleta de cores se caracteriza por uma gama extremamente limitada, que oscila entre o pastel quente e frio, e intensos focos brilhantes, que traduzem o estado de ânimo dos personagens em momentos chave da narrativa. Chegar a um conjunto tão limitado de cores significou um empenho à parte, descartando várias opções malsucedidas.
O que a brasilidade significa para Marcello Quintanilha?
Se a brasilidade pode ser entendida como um conceito, ela não é um ponto de partida ou uma característica determinante na forma de atuar dos indivíduos retratados nas tramas, porque isto nos conduziria a uma série de generalizações que compõem uma ideia relativamente disseminada de brasilidade à qual tenho verdadeira aversão. Logo, o Brasil apresentado nas minhas histórias não responde a uma concepção pré-determinada, mas ao resultado de uma experiência empírica, na qual o conceito de brasilidade está submetido ao da complexidade das relações interpessoais, atuando como filtro da condição humana, expressando valores com os quais qualquer pessoa pode se identificar, independentemente de sua condição geográfica.
Mesmo morando há mais de quinze anos em Barcelona, você constantemente afirma que não se sente distante do Brasil. Inverto então a questão: Por que ainda não vimos uma HQ de sua autoria ambientada na Espanha?
Simplesmente porque não senti nenhum apelo nesse sentido até o momento, embora todas as portas estejam abertas.
Você tem publicado álbuns em ritmo quase anual. Percebo que isto mantém seu nome aquecido num mercado volátil como o dos quadrinhos. É uma estratégia deliberada de sua parte?
Não, sob nenhuma hipótese, porque sou incapaz de formular qualquer tipo de estratégia, muito menos em termos mercadológicos. Os álbuns têm seu próprio ritmo e nunca submeto sua elaboração a deadlines. Sei que este posicionamento é incomum se levamos em conta as exigências do mercado, mas, através dos anos, tenho conseguido me manter à margem das imposições do mundo editorial, graças ao apoio de editores capazes de assumir uma proposta tão anárquica e confusa como a minha.
Luzes de Niterói foi a primeira experiência da Editora Veneta com a plataforma de financiamento coletivo Catarse. Poderia nos falar da parte que lhe coube nessa operação?
Muito pouco, uma vez que toda a campanha foi comandada pela editora. Minha desorganização natural torna impossível para mim tomar partido em uma atividade desse tipo, muito embora considere que o benefício promovido por sistemas de financiamento coletivo, aliado ao impacto das mídias digitais sobre a rotina da produção de quadrinhos no Brasil e no mundo ainda seja difícil de medir. Um exemplo é o quão vibrante a cena brasileira tem permanecido, apesar de uma crise econômica que, anos atrás, quando não dispúnhamos dos mecanismos a que temos acesso nos dias de hoje, seria suficiente para dizimar a maior parte dos materiais, como ocorreu nos anos 1990.
A nostalgia de tempos não vividos é, em certa medida, recorrente em sua obra. Você consegue identificar as razões disso?
Sim, provavelmente pelo eco do universo sintetizado na resposta à primeira pergunta, que me alcançou na meninice. Quando mais moço, observar as parcelas remanescentes de um passado de apogeu econômico dando adeus cotidianamente, seja em forma de fábricas fechando suas portas, campos de futebol sendo loteados, vilas operárias sendo gradativamente descaracterizadas, pequenos comércios locais, umbilicalmente ligados à lógica administrativa do século XIX, fez com que esse conjunto de coisas se mesclasse ao meu DNA, mas também pelo impacto que a literatura de Machado de Assis, Artur Azevedo e Lima Barreto teve sobre mim, notavelmente pela oportunidade que tive de percorrer as ruas e logradouros nos quais muitos de seus romances, peças e contos se ambientavam, como unidade tangível da experiência literária.
Em 2018 você lançou Todos os Santos, uma espécie de compêndio composto de entrevistas e textos críticos, HQs antigas que permaneciam inéditas – e outras que eram republicadas pela primeira vez –, e notáveis exemplos de seu trabalho como ilustrador. Vejo o livro como uma espécie de art book do Marcello Quintanilha. De quem foi a ideia do projeto, qual a sua aceitação e, principalmente, o título é uma homenagem a David Bowie?
Artistas como David Bowie jamais escapam da alça de mira, pela coragem com que se impuseram em contextos históricos específicos, pela forma como assumiram riscos. Mas o título “Todos os Santos” evoca o sentido um tanto sacro com que me relaciono com meu trabalho, uma vez que cada item representa o máximo que fui capaz de executar nas respectivas etapas. Uma entrega total, digamos assim.
A minha percepção é que você consolidou um público fiel no Brasil. Neste sentido, não é estranho ainda não terem publicado por aqui sua série (roteirizada por Jorge Zentner e Montecarlo) Sept Balles Pour Oxford? Afinal, são sete álbuns...
É muito mais estranho que Schuiten nunca tenha sido publicado no Brasil.
Em 2016 você conquistou o prestigiadíssimo prêmio Fauve Polar, no Festival de Angoulême, com o álbum Tungstênio. Passados três anos, qual o impacto dele em sua carreira?
Inevitavelmente, o alcance que ela passou a ter, chegando a públicos muito diferentes, especialmente se consideramos que meu trabalho não se enquadra em estereótipos editoriais patrocinados pela indústria de quadrinhos em seus principais polos, baseando-se na tradição da literatura brasileira, na cultura das ruas e, mais recentemente, no caso de Niterói, em todo um vernáculo particular, eternizado em manifestações artísticas como as chanchadas, um dos alicerces do que entendemos hoje como cultura de massas no Brasil.
Tungstênio também se transformou em filme, sob direção de Heitor Dhalia. Você poderia sintetizar essa experiência em uma única frase?
Fosse eu o diretor e o filme seria exatamente o mesmo.
Um álbum como Luzes de Niterói, com mais de 200 páginas, com certeza não nasceu da noite para o dia. O mais interessante é que só ficamos sabendo de sua existência com a publicação na França e em Portugal, ao final de 2018. Como o futebol é parte indissociável da obra, esconder o jogo fez parte da tática? Caso contrário, em quais projetos você está trabalhando no momento?
Realmente, não raciocino nesses termos, nem acho apropriado publicizar trabalhos ainda não veiculados. O fluxo de produção não garante a conclusão efetiva de nenhum projeto e não vejo qualquer sentido em trazer à pauta obras que ainda não estejam disponibilizadas.
Agora que o Brasil tem como presidente o Sr. Jair Bolsonaro, você não acha que está na hora de voltar para o país?
Não se pode voltar ao que nunca se deixou para trás.