LASERCAST #04: Homenagem aos 90 anos de Flavio Colin

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Flavio Colin (1930-2002), um dos mais extraordinários quadrinistas que o Brasil viu surgir, faria 90 anos hoje (22/06/20). Há muitos motivos para se celebrar uma carreira desta estatura. Em primeiro lugar, existe o imperativo da memória. Por mais que Colin tenha começado ainda nos anos 1950 e atravessado a história do quadrinho brasileiro desbastando cada nova era que surgia, a maioria dos jovens artistas da fértil cena contemporânea não conhece ou não se pode dizer diretamente influenciada pelo traço do mestre. É sabido que o brasileiro tem a memória de um peixinho dourado, e Colin, infelizmente, está na fila dos que não receberam reconhecimento à altura por serviços prestados à arte e cultura brasileiras.

Em segundo lugar, Colin tem também uma extraordinária trajetória, que sintetiza e nos ajuda a compreender os caminhos que os quadrinhos brasileiros percorreram desde os anos 1950. Desse mato sai de tudo, sempre em alta qualidade: desde sua hoje cultuada adaptação para a série radiofônica As Aventuras do Anjo, passando pelas tiras mais pessoais de Vizunga, por seus diversos quadrinhos em editoras importantes como Grafipar, Vecchi e Bloch, além de histórias longas - algumas em parcerias com roteiristas - que geraram álbuns como A Guerra dos Farrapos, A Mulher-Diabo no Rastro de Lampião e suas obras-primas tardias, como Caraíba e Estórias Gerais. Ele levou o quadrinho brasileiro ao ápice em vários de seus gêneros tradicionais: erótico, terror, regional, histórico, etc.

Original de Colin (Acervo Ricardo Leite)

Original de Colin (Acervo Ricardo Leite)

Flavio Colin ilustrou milhares e milhares de páginas de quadrinhos, e povoou o vocabulário visual brasileiro por décadas. E tudo isso graças à singularidade de seu modo de desenhar. “Inconfundível” é pouco para definir sua força expressiva. Em meio a uma multidão de ilustradores figurativistas de padrão “acadêmico” de nossa escola clássica de HQ, Colin era um modernista. Não apenas o tom tropical de seu imaginário lembra, por exemplo, Tarsila do Amaral, como também o design anguloso e exponencialmente estilizado de seu traço (influenciado, principalmente, por Chester Gould). Linhas espessas, nanquim firme, grande aproveitamento das massas escuras do espaço nos quadros: um método que foi se refinando ao longo de anos e anos.

De certa forma, penso que Colin ocupa (sem ser laureado por isso), para os nossos quadrinhos, o lugar que Will Eisner representa para as HQs americanas: sujeito que tem uma brilhante primeira fase e que a interrompe para trabalhar anos com outros tipos de ilustração, mas que retorna mais maduro e pronto para revolucionar esta forma de arte novamente, fazendo trabalhos influentes e de altíssima qualidade até o alvorecer do século 21.   

Para efetivar esta homenagem, batemos um papo, no quarto episódio do LASERCAST, com Flavio Colin Filho, o primogênito do homem. Discutimos a carreira, influências, preferências e sonhos de seu pai. Além disso, convidamos uma grande quantidade de gente maneira relacionada não apenas a Colin, mas ao quadrinho brasileiro como um todo, para dar seu testemunho sobre o mestre. Muito obrigado a todo mundo e ótima audição/leitura! (Ciro I. Marcondes)

LASERCAST #04: Homenagem aos 90 anos de Flavio Colin

Participam do debate: Márcio Jr., Lima Neto, Bruno Porto, Pedro Brandt e Flavio Colin Filho.

Edição: Gustavo Trevisolli

Disponível em: SPOTIFY, APPLE PODCASTS, GOOGLE PODCASTS, CASTBOX, ANCHOR, BREAKER, RADIOPUBLIC, POCKET CASTS, OVERCAST

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DEPOIMENTOS:

Colin foi um dos primeiros autores a chamar minha atenção quando, já na juventude, pude me aprofundar um pouco mais na história dos quadrinhos brasileiros. Sua arte é encantadora; vivaz e precisa, de máxima expressividade na geometria de seus traços limpos e únicos. Sua luta pela valorização de nossa cultura e nossa história era, em paralelo, uma luta pela solidificação de uma história em quadrinhos de raízes brasileiras. Tanto essa luta quanto sua arte mereciam maior valorização durante a vida desse mestre indiscutível. Mas sempre é tempo de honrar sua memória e que sua obra vença o tempo. Longa vida a Flávio Colin! - Dandara Palankof - Tradutora de histórias em quadrinhos, editora da revista Plaf

Lobisomem - O Senhor dos Mortos Vivos

Lobisomem - O Senhor dos Mortos Vivos

Para além do traço forte e xilográfico, os enquadramentos e a composição das páginas desenhadas por Flavio Colin são surpreendentes. A estética, o ritmo e a sonoridade cinematográfica de suas histórias de horror resultam da plasticidade das onomatopeias e do encadeamento ágil dos quadros e das páginas. O tempo de leitura é adensado pelo jogo de transição entre as hachuras, as áreas em nanquim e os espaços em branco. A visualidade da obra de Flavio Colin é vibrante e única. Simples, marcante e prenha de brasilidade. - Selma Oliveira - Pesquisadora e professora em Comunicação Social, autora do livro Mulher ao Quadrado: as Representações Femininas nos Quadrinhos Norte-Americanos: Permanências e Ressonâncias

Flavio Colin pra mim é inevitável. Seu grafismo está gravado na minha retina de tal maneira que é impossível eu desenhar qualquer coisa que não fique um pouco parecido com o desenho do mestre Colin. Posso ficar horas pirando no poder de síntese e soluções geométricas dos personagens, da arquitetura e naquela vegetação pontudinha obrigatória. Se eu olhar demais vai me dando vontade de desenhar também, inevitável. - Gabriel Góes - Ilustrador e quadrinista

Fui um cara que lá atrás, quando comecei a ter minhas primeiras influências dos quadrinhos e seus maravilhosos artistas, bebi muito de caras que produziam HQs por nossas bandas como Nico Rosso, Rodolfo Zalla, Colonnese, Seto, Mozart Couto. Um panteão de deuses do traço que ainda hoje me fazem a cabeça. Havia Shima e Flavio Colin. Esses caras, mesmo consumindo muita coisa deles em publicações da Grafipar e posteriormente nas edições das revistas Calafrio e Mestres do Terror, além de álbuns individuais, é deles que confesso que a influência não veio no campo “técnico”: da apreciação dos maravilhosos traços e vanguardismo de ambos. Prefiro dizer que Shima primeiramente, e Colin depois, vieram da forma que melhor poderia ajudar na formação de um artista: inspirando, trabalhando em campos onde nosso racional não se comunica, atuando na comunicação dos sentimentos, da expressão, o termo mais correto. Dizer da genialidade do Colin em seus traços sintetizados, enxutos, tremendamente bem acabados, com a maestria de quem sabe o que está fazendo desde quando pega no lápis até finalizar no pincel, é cair no óbvio, pois todos já disseram e tem que ser dito muito ainda. Colin inspira e basta. Um monolito se fazendo presente, absoluto e único em meio à uma paisagem deserta. Emanando sempre a criatividade. A criação. É uma experiência ler uma HQ de Colin. Seja qual ela for, pequena ou grande. Com texto dele ou de outro roteirista. Não importa. Ele é aquele monolito. Ele é aquele farol que ilumina nossa mente naquele ponto que precisa chegar com sua luz. Por isso ele inspira. Por isso, ainda hoje, ele nos inspira a sermos brasileiros e artistas brasileiros, sem bandeiras, sem estar acima de nada, sem rezarmos para deuses vingativos, sem ditarmos regras. A sabedoria silenciosa e gritante de quem extrapolou os tipos, as características óbvias e aclichezadas para ser o que é. Eu sempre evoco todos esses acima mencionados. E aqui evoco e saúdo Flavio Colin. - Laudo Ferreira - Quadrinista

Uma rara ilustração colorida! Foi usada na contracapa de “O Boi das Aspas de Ouro”. Original de Colin.  (Acervo Ricardo Leite)

Uma rara ilustração colorida! Foi usada na contracapa de “O Boi das Aspas de Ouro”. Original de Colin. (Acervo Ricardo Leite)

A importância de Flavio Colin para os quadrinhos brasileiros é imensa. Seu traço inconfundível aparece em HQs de aventura, terror, históricas, folclore e eróticas, além de uma produção incrível, porém menos conhecida, de quadros e esculturas. Colin e sua obra merecem toda a celebração e deferência por parte dos fãs de quadrinhos e de arte em geral. - Ivan Freitas da Costa - Produtor da CCXP e gestor do acervo Flavio Colin

Quando conheci o trabalho de Flavio Colin fiquei até triste, porque descobri que eu não sabia nada de desenho e narrativa e tinha muito a estudar. Então, pode-se dizer que ele foi um dos meus professores. Tive contato com o trabalho dele quando cheguei em SP pra estudar (escola normal, nada ligado a desenho), tinha uns 17 anos no máximo e comprava suas coisas pra estudar. Seu conhecimento de massa de pretos e luz é algo pessoal e inigualável, assim como seu andamento de narrativa era quase perfeito, tinha controle de velocidade, uso de elementos. Observar seu planejamento de página e o desenho de quadro faziam a diferença. Às vezes narrativas boas se perdem por conta de uma falta de equilíbrio dos quadros e o Colin fazia isso maravilhosamente bem, esse balanço. Além de narrativa, a minha personalidade gráfica com massas de preto e usar esses espaços negativos vieram diretamente dele.

A personalidade de Colin era tão forte que não tinha como compará-lo a outros, eram traços dele. Era um gigante e ainda tenho uma pequena inveja de seus trabalhos, mas acho que isso nunca vai passar. - Marcelo Campos - Quadrinhista, diretor e sócio fundador da Quanta Academia de Artes

Ilustração de Colin para a Revista BUNDAS

Ilustração de Colin para a Revista BUNDAS

Lembro que a primeira vez que vi o traço de Flavio Colin, torci o nariz. Acostumado aos super-heróis, ainda menino, não enxerguei naquele momento o quanto aquela arte, tão diferente, trazia de brasilidade, de autenticidade. Felizmente, não tardei tanto a entendê-la e admirá-la.

Mas é uma pena que tão poucos leitores desconheçam o quão genial foi Colin – alô, editoras: resgatem suas obras pras novas gerações!

Conversei com Colin ao telefone duas ou três vezes. E o velho mestre, numa humildade impressionante, agradecia por tentarmos mostrar aos mais jovens um pouco do muito que ele fez.

Quando o Samir Naliato o entrevistou pro Universo HQ, em 2001, Colin falou que “se deveria mostrar o Brasil para o brasileiro”, nos nossos quadrinhos.

Sabe, é óbvio que ainda temos muito mais espaço a conquistar no mercado nacional, mas olhando em retrospecto para os últimos anos, fico com a sensação de que Flavio Colin, lá do andar de cima, está (enfim) vendo isso acontecer. Seja em obras lançadas por editoras, que ganham prêmios mundo afora com histórias literalmente brasileiras (obrigado Marcello Quintanilha e Marcelo D’Salete!), seja nas pujantes produções independentes.

Por isso, cada vez que leio uma boa HQ nacional que se passa aqui mesmo, no Brasil, com traços das nossas diferentes regiões, enxergo naquelas páginas um pouco do antigo (e eterno) desejo do Colin.

Mesmo que muitos dos autores nem saibam quem foi ele e o tanto que batalhou pra que hoje tivéssemos essas oportunidades. Viva Flavio Colin! - Sidney Gusman - Jornalista e editor

A porrada come na HQ “Briga de famílias”!

A porrada come na HQ “Briga de famílias”!

Meu pai falava o tempo todo para mim sobre o Colin, seu autor favorito, a sensação sendo quase a de que o próprio Colin vivia com a gente, ou era uma espécie de membro familiar distante.

E de fato eu cresci com um Colin em casa – mais especificamente, um original pequeno e lindo,  que meu pai pendurava na parede do estúdio. O desenho à nanquim era uma homenagem ao Sin City de Frank Miller – um pinup que aconteceu, acho, por conta das edições brasileiras da obra, pela Pandora. Colin não se rendeu aos personagens originais e fez sua versão brasileira da loucura noir intensa do Miller.

Lembro de sempre achar que uma grande área do desenho, o céu ao fundo, preenchida de uma padronagem impecável, era feita em retícula. Até que meu pai me trouxe pra perto do desenho um dia e apontou que eram na verdade hachuras cuidadosíssimas, feitas uma a uma, à mão, pelo Colin.

Essa imagem e essa ideia seguiram vivas na minha cabeça depois, quando eu também já havia me tornado, inevitavelmente, um autor de quadrinhos. Um lembrete de dedicação intensa. E a própria obra do Colin, vasta, também: o pincel elétrico atravessando gêneros e mais gêneros com linhas inconfundíveis, tropicais. Revolucionárias.

Colin me ensinou que o quadrinista brasileiro não só tem potência para, mas deve ser grande, imenso, único. No Mapinguari, que é uma história clássica, o mega-empreendedor gringo chega na (profundamente rica de recursos) selva brasileira na tentativa de mega-empreender uma mega-construção, ou coisa assim. Na hora que pisa no mato, descido do helicóptero, o Mapinguari taca-lhe as garras e devora a cabeça do gringo. Depois, é claro, ele vomita tudo. Obrigado, Colin. - Pedro Cobiaco - Quadrinista

Mapinguari

Mapinguari

Do alto da minha soberba e ingenuidade, antes que eu tivesse coragem de fazer histórias em quadrinhos, eu tinha certeza que iria revolucionar as histórias em quadrinhos. E como eu não acreditava muito no meu desenho, eu só via uma saída: escrever roteiros.

Nunca escrevi um roteiro sequer para quadrinhos na minha vida, então dá pra julgar o tamanho da minha ingenuidade e soberba. De qualquer maneira, eu achava que poderia escrever algo para outros desenhistas, os maiores, ou pelo menos os que mais me impressionavam, e assim revolucionar as histórias em quadrinhos. Colin era o que mais me impressionava no que diz respeito ao que se produzia de quadrinhos feitos no mercado da época.

Não estou falando de minhas influências e referências, os que eu copiava etc. Esses escreviam seu próprio material e era o que gostaria de fazer um dia se tivesse capacidade. Estou falando dos desenhistas que ocupavam as revistas que o Ota editava na Vecchi, por exemplo. Os que faziam parte da nossa “indústria”. E muitos deles, muito bons. No fundo, pensando agora, eu queria era pegar carona com o Colin pra entrar na indústria.

Claro que nunca passei essa vergonha de oferecer um roteiro para o Colin, mas esse sonho de escrever para um desenhista que eu admiro era algo que eu ainda alimentei, não como uma possibilidade, mas como uma divagação divertida, por muito tempo. Outro para quem eu queria escrever era o Law, mas aí eu começo a supor que o que eu queria era pegar carona num desenhista talentoso não para entrar na indústria, mas para entrar no maravilhoso mundo dos fanzines. Também não aconteceu, tive que entrar nesse mundo por minhas próprias mãos.

Gostaria de ver mais trabalhos do Colin, tanto da fase em que a influência do Milton Caniff é mais perceptível, até coisa dos anos 60, tipo Vizunga (será que tem mais coisas daquele tipo?). Eu lia bastante das revistas da Vecchi e foi uma época pra mim muito divertida, de descoberta. Não queria realmente fazer parte da indústria, nem desenhar histórias de terror, mas eu via muitos desenhistas que eu gostava e que eu acreditava que mereciam ganhar seu dinheiro fazendo aquilo. O Colin e o Shima, felizmente, são tão marcantes que uma nova geração de roteiristas pode realmente escrever roteiros que puderam explorar a força e a inquietação que eles demonstravam no desenho e que são assinaturas dos trabalhos dos dois.

Vizunga

Vizunga

A precisão e o controle do desenho do Colin é algo que o destaca no meio dos quadrinhos feitos no Brasil na época em que ele produziu. O próprio Shima trabalha com outro tipo de energia, com uma agilidade e uma sujeira muito particular. E não havia nada do barroco do Nico Rosso, por exemplo. O traço do Colin era límpido. O Colin foi capaz de, a partir da elegância e força dos contrastes do Caniff, criar seu próprio estilo, sem perder nada da elegância e da força.

Hoje, meus devaneios não me levam a pensar em revolucionar os quadrinhos nem a escrever roteiros para ninguém. O que eu faço é imaginar bibliotecas repletas de livros como tijolos da Taschen com desenhos dos desenhistas que produziram o suficiente pra isso. Tem um tijolo do Colin lá. - Fabio Zimbres - Quadrinista

A primeira vez que vi trabalhos de Flávio Colin foi em 1972. Comprei na hora. Era um gibi em formato de bolso, com a HQ O Morro dos Enforcados. Poucos meses depois tive a sorte de encontrar a edição de Sepé, publicada pela CTPA, de Porto Alegre. Essas obras foram realizadas a pincel. O desenho de Colin possuía um preto e branco arrebatador e sua narrativa dinâmica se distinguia dos outros artistas da época. Ninguém no Brasil seguia a “escola Caniffiana” com tanta propriedade como ele. Esses trabalhos tinham sido realizados antes do mestre entrar para a publicidade.

Ele ressurgiu nos quadrinhos em meados dos anos 70, no Grande Livro do Terror, editado por Jayme Cortez. Novamente fazendo Sepé, em nova HQ, em novo estilo, usando pincel seco e figuras mais estilizadas. Uma técnica à qual não mais retornou.

No final dos anos 70, retornou com um novo estilo. Mais cômico, mesclando no acabamento a pena com o pincel. E construindo quadrinhos primorosos. Tive a honra de conviver com Colin entre 1982 e 1985. Até realizamos uma HQ em parceria para a Mundo do Terror, que eu editava. E ele ficou em casa uma vez, ao vir a São Paulo receber o Prêmio Ângelo Agostini. Ainda hoje curto seus Sepé e, muito, seu Yellow Submarine, que fez para a Editora Escala, em cores. Colin foi um gênio insubstituível. - Franco de Rosa - Editor e quadrinista

Revisitando o Hotel Nicanor em “Hotel do Terror”

Revisitando o Hotel Nicanor em “Hotel do Terror”

Quando iniciei na Vecchi, algum tempo depois, o Shima me apresentou o Colin. Pra mim era o máximo conhecer desenhistas que curtia quando moleque! Eu tava numa fase de comprar bicos de penas que se adequassem ao que queria fazer, mas não encontrei nenhum. A gente sempre se encontrava nos finais de mês e sempre ficávamos trocando ideias sobre trabalhos e, nesse dia, Colin tava com originais para entregar na editora e pedi pra ver.

Nossa! Não era mais aquele estilo do Anjo! Ele havia estilizado os traços e, de cara, percebi que se encaixava na linha europeia, embora o mesmo não acreditasse nisso. Mas como eu vivia vendo tudo o que saía por lá, o estilo do Colin estava dentro do contexto e com um detalhe a mais: os traços eram ímpar! A princípio pensei que ele finalizava só no pincel, mas me falou que usava um bico de pena e dava o acabamento com o pincel! Perguntei que tipo de bico de pena e expliquei minha procura...

Ele me levou na livraria onde comprava no ato! Achei o que buscava há tempos! Ele era o tipo de pessoa que não media esforço pra ajudar, pelo menos, não comigo. A nossa amizade se consolidou e fiquei mais à vontade com ele e o Shima – difícil falar do Colin sem citar o Shima! Eu o chamava de “Voz de Trovão” e ele ria. Eu costumava ir na casa do Shima, mas o Colin morava longe, então vez ou outra, escrevíamos cartas. Ele mostrou um projeto que estava trabalhando em forma de tiras e eu li e gostei no ato (não lembro o nome do personagem agora)!

Percebi que seus originais eram bem limpos e questionei se não usava borracha! E ele me disse que só pra apagar a diagramação de páginas. Os desenhos ele fazia em papeis à parte. Ia desenhando tudo no lápis e depois finalizava na mesa de luz! A primeira ideia, aproveitei, mas fazia o traço a lápis na mesa de luz, mas não usava o bico de pena porque a solidez do vidro tirava o domínio que eu tinha com esse material! O Colin já estava habituado a fazer isso e muito bem.

Depois fui morar em Curitiba e a gente só se comunicava por cartas. Em Sampa, nos encontramos de novo e era sempre uma festa! A última vez que tive contato com o Colin, eu morava no Recife e ele me ligou pra perguntar se eu tinha uma edição do Anjo, que ele estava precisando, mas eu não tinha a revista que ele queria.

O Colin era dono de um estilo muito pessoal e estava mais pros padrões europeus. Não era o tipo de trabalho que o mercado nacional estava preparado pra absorver, devido à colonização dos super-heróis, daí a aceitação não ter sido tão ampla como ele merecia! Os mais lindos trabalhos que vi, porque fugiam dos padrões tradicionais. Grande amigo e artista. - Watson Portela - Quadrinista

A primeira vez que eu me atentei de fato ao nome Flavio Colin foi por volta de 2006, quando peguei O Curupira, da Editora Pixel. Foi quando juntei o nome ao traço — estava acontecendo muito esse tipo de coisa comigo na época, pois foi quando passei a me dedicar a aprender mais sobre HQs. Fiquei completamente fascinado. Sai à caça de tudo que tinha sua assinatura, comprei Filho do Urso, Estórias Gerais, Fawcett, corri pros sebos em busca das revistas Calafrio, Mestres do Terror, Spektro, revirei minha parca coleção pra ver se tinha algo dele... Enfim, Colin foi a principal chave para o meu desbravamento dos quadrinhos nacionais. Desde então, sou completamente maluco por suas histórias.

Todos sabemos que ele foi fundamental para o cenário brasileiro, mas quero aproveitar este momento para dizer que ele também foi fundamental pra mim, pois ampliou meu horizonte de uma maneira que só um artista genial é capaz de fazer. - Daniel Lopes - Editor (Pipoca & Nanquim)

Fawcett

Fawcett

Ainda menino, quando comecei a ler gibis, sempre me interessava mais pelos desenhos do que pelas historias em si. Me lembro bem quando meu irmão apareceu com um gibi, As aventuras do Anjo, e eu comecei a prestar mais atenção naqueles desenhos cheios de contrastes e muita ação. O nome Flavio Colin ficou gravado na memoria desde então. Mas confesso que naquela epoca eu vi pouca coisa dele além do Anjo.

As aventuras do Anjo (edição # 10)

As aventuras do Anjo (edição # 10)

Muito tempo depois, já trabalhando no mercado de HQs e ilustração, eu comecei a entender quem era esse artista que assinava o Anjo que eu lia lá na minha infância. Comecei a notar a influência de grandes artistas americanos no seu trabalho, como Milton Caniff e outros, mas também a sua personalidade nos traços e enquadramentos, e sua narrativa fluente e arrojada.

Colin já era então dono de um traço inconfudível, muito diferente do Anjo que eu lia, mas de uma personalidade única e expressiva. Continuava fera. E melhor.

Transitamos pela mesma área durante um bom tempo nas HQs e na publicidade, mas só nos encontramos uma vez. Infelizmente. E foi sem querer, confesso, mas me marcou.

Isso foi em 1990 e pouco, numa reunião de trabalho para um livro que eu estava ilustrando em parceria com o Getulio Delphim, para a editora Ática, em São Paulo. E lá estava Colin, para mim ele ainda era o cara que desenhava aquele personagem da minha infância.

Dali nós três fomos a um restaurante e nossa conversa foi se esticando num almoço e continuou tarde afora com muito bate-papo e muitos casos sobre o mundo das HQs. Pena que nunca mais nos encontramos.

Me sinto realizado de ter conhecido pessoalmente quase todos os artistas nacionais que lá atrás eu sonhava um dia chegar e dizer: sou seu fã. Flavio Colin foi um deles. Só me arrependo naquele dia, lá na editora, de não ter apanhado do lixo um rabisco seu que ele jogou porque não gostou.

Colin faz muita falta para a nona arte. Mas deixou um vasto legado para os fãs. Basta conferir! - Pedro Mauro - Quadrinista

Sou um apreciador tardio do trabalho de Flavio Colin. Era muito novo para ter lido seus quadrinhos da fase de O Anjo ou suas histórias de terror mais antigas. Não me lembro de quando foi a primeira vez que li uma história dele, mas deve ter sido no meio da década de 1970, e acho não me chamou a atenção. Aliás, preciso confessar que, no começo, nem gostava tanto daquele tipo de desenho que eu achava muito estilizado para o tipo de narrativa. Por essa época, eu estava muito impactado pelos trabalhos de Alex Raymond e Harold Foster, que eu descobrira nos gibizinhos da Paladino, e de Will Eisner, cujo Spirit, eu lia no Gibi Semanal, da Rio Gráfica.

Só comecei a gostar do Colin quando li Vizunga, na revista Eureka número 11, da Vecchi, de 1978. Era uma história que havia sido publicada anos antes como tiras de jornal e mesclava dois estilos distintos. Quando aparecia o narrador, era mais realista, mas quando se tratava das histórias fabulosas que ele contava, o traço era estilizado.

Vizunga

Vizunga

Aquilo para mim foi uma revelação. Não me lembrava de até aquela leitura, ter visto um artista tão versátil. Era como se duas pessoas distintas tivessem feito aquela história, “ambos” excelentes em seu modo de fazer. Mas eu sabia que era um desenhista só. A partir de então, passei a me interessar por seu trabalho e a curtir seu uso vigoroso do pincel, os contornos bem marcados de suas figuras. Acompanhei o trabalho de Colin em publicações esparsas e, de forma mais apropriada, nos álbuns da L&PM, da Opera Graphica e da Pixel e também em produções independentes como os excepcionais Estórias Gerais, com roteiro de Wellington Srbek, e Fawcett, escrito por André Diniz.

O tempo e o amadurecimento como leitor me fizeram entender melhor a grandeza do talento de Flavio Colin, um dos poucos artistas a deixar uma marca inconfundível no jeito de fazer quadrinhos no Brasil. - Nobu Chinen - Pesquisador de quadrinhos

Eu tinha 15 anos e fui fazer uma entrevista pra uma vaga de office boy. Muleque de periferia, não manjava nada do centro. Meu cunhado fez um mapinha do caminho que eu tinha que fazer, desde o metrô Anhangabaú até a Bela Vista. Nesse caminho tinha uma banca de jornal.

Ok, lá vai moleque magrelo de calça de skatista e bonezinho. Fiz a entrevista e consegui a vaga. Urrú! Primeira vitória do dia! O meu novo patrão, acho que ficou com dó de mim, sei lá, sacou a carteira e me descolou uns trocados pra passagem de volta pra minha longínqua morada na Zona Leste. Não me fiz de rogado e aceitei. Dava pra comer um lanche na escola e tomar um refri com aquela merreca. Segunda vitória!

Esse era o plano. Mas aí eu passei naquela banca que ficava no caminho. Entrei meio pra bizoiar os gibis como sempre fazia. E vi um gibizão lindo com o título, em letras douradas: O Boi das Aspas de Ouro, do Flavio Colin. Foi a primeira vez que vi algo do mestre. Bom, nem preciso dizer que não teve lanche no intervalo daquele dia. Não tirei os olhos do gibi no caminho inteiro. Essa não foi a terceira vitória, foi a glória. Desde então sou devoto de Flavio Colin pra sempre. - João Pinheiro - Quadrinista

O Boi das Aspas de Ouro

O Boi das Aspas de Ouro

A arte de Flavio Colin é singular na história dos quadrinhos brasileiros, e fez escola, sendo talvez o seu herdeiro mais famoso André Diniz. Colin opera algo que está para além dos pobres manuais teóricos de quadrinhos que distinguem realismo do cartunesco. Colin é realista ao ser cartunesco. Não apenas isso. O realismo cartunesco que ele produz acontece através do achatamento da perspectiva, como faz também um Jack Kirby. Porém, diferentemente, Colin faz isso por hachuras múltiplas, paralelas e perpendiculares, em uma economia gráfica muito mais substanciosa que um Moebius. Está em jogo na arte de Colin, portanto, pelas hachuras, fazer com que as figuras cartunescas de traços suaves ganhem sua textura, impregnadas de um relevo e um volume que, ao final, confere realismo. E aqui realismo não é mais o da representação, mas o da sensação. O mundo quadrinizado de Colin é realista, justamente assim, por expor a opacidade gráfica do cartum ao mesmo tempo que o desenha numa equivalência realista, revolvendo a tensão inerente a todo cartum que ousa ir e vir na informação visual que o mundo real quer impregnar. Desconheço artista que faça isso da maneira como faz Colin, e, sobretudo, arte mais pertinente para construir um olhar sobre o próprio Brasil, essa realidade fantástica, fábula carregada e tracejada das dimensões do mundano. - Alexandre Linck - Pesquisador de quadrinhos e crítico (Quadrinhos na Sarjeta)

Bandeirante embandeirado

Bandeirante embandeirado

A peleja pra saber qual é o melhor desenhista de histórias em quadrinhos do mundo é árdua. Mas o mais original é certamente o Flavio Colin! Ao se inspirar na arte de Milton Caniff ele acabou por chegar num traço próprio, que atravessa os anos sem envelhecer, além de um jeito único de contar histórias.

Vou dar um exemplo. Fui estagiário da Bienal Internacional de Quadrinhos do Rio de Janeiro em 1991 e 1993, quando tive o prazer de conhecer o homem em pessoa, já era fã das HQs que lia nas coletâneas de terror e sacanagem, principalmente da D-Arte. Foi engraçado ver que aquele era o senhorzinho que desenhava aquelas histórias cheias de sacanagem.

Mas vamos ao exemplo. Ajudei a montar no Paço Imperial, um museu do Rio de Janeiro, uma exposição só com autores brasileiros. Se a memória não me falha, eram mais de 500 metros, em linha reta. Ela atravessava todo um andar do prédio. Quase todo mundo estava lá. Um dos nosso prazeres era mostrar a prata da casa para os desenhistas internacionais convidados.

Nosso séquito acompanhava o Moebius pela peregrinação sagrada. Passo a passo, Patati traduzia do patatês (seu dialeto) para o francês, quem eram aquelas pessoas. Compenetrado, Moebius ouvia tudo sem exprimir uma única reação digna de nota. Quando chegamos nas páginas do Colin, ele se estancou na frente dos desenho e perguntou para o Patati quem era aquele jovem. Essa foi a única reação dele em todo o trajeto. “Aquele jovem” tinha, naquela época, 61 primaveras. Colin era uma espécie de “Retrato de Dorian Grey” ao inverso. Quanto mais envelhecia e se tornava um sujeito amargo, mais o seu trabalho ganhava vigor e originalidade.

Nada é parecido com o que ele fazia. E ouso dizer que deixou poucos seguidores. Fico muito feliz quando percebo o DNA do Colin na obra do André Diniz e do Caco Xavier.

Por uns poucos anos fomos vizinhos na Rua Sorocaba, no bairro carioca de Botafogo. Tomamos cerveja juntos num pé sujo na esquina com a Mena Barreto. Tenho memória da sua voz grave, baixo profundo, tossindo e reclamando da vida. Toda conversa começa com um rol de reclamações, mas quando passava a rebentação, falava apaixonadamente sobre nossa história do Brasil. Ele conhecia profundamente a nossas histórias, nosso povo, nossas lendas e folclores. Contava sobre os projetos que um dia faria, como por exemplo uma história passada na Guerra do Contestado, entre Paraná e Santa Catarina. Ele amava tudo isso.

Lembro de outra cena emblemática do Colin, ainda em uma das Bienais. Um editor, ainda na ativa, furou uma roda de papo dele com vários outros desenhistas. Meio bêbado, abraçou o Colin e começou a dizer que esse negócio de desenhar saci não tava com nada, o dinheiro estava nos grandes clássicos, “vamos fazer Emma Bovary!”, gritava. Colin fechou a cara, deu um chega pra lá no sujeito, que nem percebeu nada, olhou pra mim e disse, “Emma Bovary, o caralho!”, e tossiu de tanto rir.

Naquela época eu queria ser roteirista. Quem sabe um dia ele não desenha uma história minha? Muitos e muitos anos depois me tornei editor. Infelizmente o Colin não estava mais entre nós. Ele não desenhou nada meu, mas tive o prazer de publicar o álbum Caraíba, que considero o seu canto do cisne. Pegar os estudos, rafes e originais daquelas páginas estão até hoje gravados na minha memória. Foi um sonho tardiamente realizado, pena. Do Colin não herdei o talento, esse ficou todo com o André Diniz e o Caco, mas herdei o amor pelo nosso povo, ele me ensinou a enxergar as histórias que existem na nossa gente. - Lobo - Editor

Caraíba, de caçador a defensor da floresta

Caraíba, de caçador a defensor da floresta

Estudos em lápis de páginas para o livro Caraíba (Acervo Ricardo Leite)

Estudos em lápis de páginas para o livro Caraíba (Acervo Ricardo Leite)

O primeiro encontro foi no começo da década de 1980. O “Hotel Nicanor” aparecia na revista Spektro da editora Vecchi revelando ao mundo seus monstros antropofágicos. Algumas noites mal dormidas e o estilo do Colin estava gravado na minha memória. O segundo encontro foi nas páginas das revistas da editora D-Arte, isso alguns anos depois do primeiro. Que maravilha! Estilo musculoso e que abusava das áreas de preto.

Uma perfeição brutal e, graças, nem um pouco asséptica. Me pegou bem à altura da vida em que eu havia decidido a começar a produzir quadrinhos amadores ou fanzines, como chamávamos as publicações independentes nessa época.

O terceiro encontro foi definitivo. No começo dos anos 1990 Colin foi, acompanhado do Ota, a um salão de quadrinhos em Jundiaí, onde eu morava na época. Lembro de distingui-lo, de longe, entre algumas figuras conhecidas das HQs. Cheguei morrendo de vergonha e, me desculpem o fanatismo, peguei sua mão, beijei e pedi a benção.

Depois de anos estudando páginas e páginas e mais páginas de suas obras em todas as fases do mestre, seria pouco apenas apertar sua mão e cumprimentá-lo, eu havia encontrado meu ídolo, cáspita. Passamos a noite conversando sobre vários assuntos (até quadrinhos!), trocamos endereço e nos correspondemos por alguns anos. Naquele tempo não havia e-mails, zaps ou SMS! Era uma satisfação enorme receber uma carta do mestre. Sempre cheia de lições, dicas e “filosofadas” a respeito da encrenca que é fazer HQ nesse país.

Algum tempo mais tarde me mudei para a cidade de Teresópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Uma vez, conversando com meu querido amigo Sidney Gusman, fiquei sabendo que o Colin também estava morando lá! Putz, era a chance de conhecer o estúdio (tinha fetiche por estúdios), ver os originais, as pinturas e as esculturas do mestre ao vivo e acompanhado do autor! Infelizmente uma série de infortúnios me tirou essa chance de upgrade na minha escalada.

Colin partiu, cansado de tanto lutar pelo reconhecimento que até então ele não havia recebido.

Mais alguns anos e encontro em São Paulo, na loja Comix, sua viúva, Dona Norma. Que prazer! Pude adquirir alguns originais do Colin, conversar um pouco sobre os últimos anos do mestre e saber que ele realmente via em mim alguém com potencial para seguir em frente.

Tem sido uma luta para provar (a mim mesmo) que ele não estava enganado. Mestre Colin, desculpe qualquer coisa. Te admiro muito. - Fábio N. Cobiaco - Quadrinista

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Amo um calendário promocional da Petrobrás que contava a história de Santos Dumont e da “Conquista do Espaço” com todas as minhas forças. No finzinho de 1973, corri para recortar as “figuras” do calendário da cozinha, antes que fosse para o lixo. Tinha quase 10 anos e por muito tempo segui viajando nessas ilustrações, feitas por Flavio Colin com canetinhas de hidrocor.

O saber se constrói de muitas maneiras. Citando Paul Rand, aprendemos vendo imagens, quando as contemplamos. A melhor forma de educar nosso olhar para dinamizar essa modalidade cognitiva é através do desenho, de sua prática livre, com demandas próprias, objetivos, projetos. O Colin, mesmo à distância, foi meu primeiro professor de desenho.

Suas ilustrações diziam, dizem, tanta coisa a respeito das escolhas que fazemos, dos estilos e estéticas, do respeito aos materiais, que não lembro de ter entendido melhor em qualquer discurso. Não tínhamos o amparo da informação que temos, hoje. Ninguém na minha família tinha essa relação de afeto pelo desenho e sequer entendia a atividade como algo possível, viável. Não tinha ninguém com quem partilhar essa paixão.

Quando essa folhinha apareceu lá em casa, fui completamente seduzido por aquelas imagens. Até a assinatura do Colin, o gesto que insinua, me fascinava. Passava horas sozinho, tentando reproduzir e criando sobre aquele tema. Colin foi meu melhor amigo por muito tempo. - Carlito Machado - Ilustrador e professor

Os brutos também amam (Shane)

Os brutos também amam (Shane)

O traço do Flavio Colin é tão particular que o coloca numa categoria à parte, mesmo entre os grandes. O domínio da composição, a simplificação das formas, o uso dos contrastes – tudo ali é brilhante.

Foi com isso em mente que, ainda estudante de design em algum momento do início dos anos 1990, topei a tarefa de fazer a capa de uma revista do selo do Ota, que trazia a adaptação de Colin para O Caso dos Dez Negrinhos. Na minha cabeça, não fazia sentido colorir aquele desenho com os degradês de computador que começavam a se impor no mercado.

Xeroquei a arte reduzida em uma folha de canson e, no verso, pintei a cena com pastel, criando manchas e texturas fortes que ganhariam na ampliação. Usando a mesa de luz, não dava para ver o resultado do conjunto traço + cor, era uma aposta.

Entreguei a arte no estúdio sem saber se iriam gostar. Algum tempo depois, voltei lá para entregar meu material da MAD, e todo mundo comentava que a prova de capa tinha ficado incrível e que o próprio Colin tinha adorado e elogiou muito.

Nunca vi a tal prova de prelo e a revista jamais saiu, mas a aprovação do mestre foi para a minha prateleira de pequenas grandes conquistas. - Marcelo Martinez - Designer, ilustrador e roteirista

Material para a MAD - originais de Colin  (Acervo Ricardo Leite)

Material para a MAD - originais de Colin (Acervo Ricardo Leite)

Flávio Colin dizia que, em um desenho, é bem mais fácil acrescentar do que retirar detalhes. Hachuras podem encantar os olhos como também podem esconder fraquezas… Quem olha um desenho estilizado pode ter a ilusão de que é mais fácil ou mais rápido de ser feito. Não é. Um desenho econômico geralmente é fruto de um estudo imenso. Posso garantir: alcançar a simplicidade e o poder de síntese que Colin desenvolveu é para poucos.

Chegar nesse estilo único e inconfundível foi fruto de um longo percurso. Na largada, pelo aprimoramento de seu traço autoral, sofreu influência assumida de Milton Caniff, criador de Terry e os Piratas, que, aliás, influenciou toda uma geração de artistas (Hugo Pratt entre eles, para se ter uma ideia da magnitude de seu legado). Basta folhear algumas revistas d’O Anjo para se certificar disso. Outra grande preferência entre as suas leituras foi Dick Tracy, assinado por Chester Gould. Lá estava o farol iluminando um caminho possível para o Colin que ainda viria a se revelar num futuro distante. Livros como Caraíba ou O Curupira apresentam alguma sinergia com os personagens de Gould, feitos com linhas gráficas e simples. Traços de Tracy?

Mas arrisco dizer que foi o seu interesse por temas brasileiros e o seu estudo de nossa arte popular que abriu a verdadeira trilha para que Flávio encontrasse o grande Colin que tanto nos encanta. Das carrancas talhadas em madeira até as xilogravuras dos livros de cordel, tudo está presente em sua arte. Até sua assinatura demonstra sua personalidade gráfica ímpar. Um Mestre Maior da síntese, com dois Ms maiúsculos. - Ricardo Leite - Designer, ilustrador e roteirista

HQ “O bebê de tarlatana rosa”

HQ “O bebê de tarlatana rosa”

Vou aproveitar trechos do meu depoimento em 2000, que fiz para Fawcett, álbum escrito pelo talentoso André Diniz e magnificamente desenhado pelo saudoso mestre Flavio Colin. Conheci-o em 1962, num animado dia de pagamento da Editora Outubro, em São Paulo. Viera acompanhado por outros colegas do Rio: Getúlio Delphim, Juarez Odilon, Aylton Thomaz e José de Arimatéia. Eles aproveitavam esse dia para trazerem seus originais consigo para evitarem o risco do correio. Quem não teve a sorte de conhecer pessoalmente e usufruir da amizade de Flavio Colin, esse incrível artista e ser humano, deve invejar-me. Entretanto, só iniciamos nossa amizade quando vim para o Rio de Janeiro em 1972, período em que nós trabalhávamos com publicidade.

Costumava passar-lhe freelances de ilustração, sobretudo de storyboards de comerciais. A partir de 1976, quando retornamos ao mundo dos quadrinhos, nosso vínculo tornou-se como de dois irmãos de sangue, trocando ideias, enxovalhando políticos e enfrentando vicissitudes de uma profissão instável de parcos ganhos em troca da liberdade de sobreviver fazendo o que gostávamos.

Embora morássemos distanciados um do outro, mantivemos longos contatos telefônicos ao menos uma vez por semana. Assunto é que não faltava, sendo ele muito vivido e dotado de inteligência enciclopédica de leitor voraz. Disse-me que ganhava livros de uma cunhada bem de vida viciada em leitura. Conversar com Colin era sempre enriquecedor, estando ele bem-humorado ou não. Um artista completo que, além de quadrinista de nível superlativo de estilo único, “inclonável”, suas ilustrações de livros, pinturas, talhas e esculturas em madeira despertavam vivo entusiasmo da crítica.

Por tudo isso, mestre Colin colecionou incontáveis e importantes troféus e homenagens. De memória, destaco alguns pontos altos de seu esplêndido currículo nos quadrinhos: O Anjo, Shane, Vigilante Rodoviário, Sepé Tiarajú, Vizunga, o livrão Estórias Gerais (roteirizado pelo inspirado Wellington Srbek), Guerra dos Farrapos, Mulher Diaba no Rastro de Lampião, Caraíba, O Boi das Aspas de Ouro, O Curupira, O Filho do Urso, outro livrão O Continente do Rio Grande (texto de Barbosa Lessa), Fawcett.

Curiosidades: numa viagem no meu velho fusquinha para uma visita à Editora Ática, em Sampa, confidenciou-me que detestava desenhar capas. Não explicou por que (trauma?). Sobre a influência em seu quadrinho, vai surpreender muita gente: excluiu Milton Caniff enfaticamente, e que ficava contrariado com essa alusão constante. Enfatizou-me que adorava Dick Tracy, de Chester Gould, sua verdadeira inspiração.

Nesse dia, jantamos e passamos a noite na casa de minha mãe, em Santo André. Desde então, ele sempre me falava com saudades da sopa missoshiru (soja fermentada) que mamãe nos servira. Agora sinto um aperto no coração, já que ambos já partiram faz bom tempo. - Julio Shimamoto - Quadrinista

Mulher-Diaba no rastro de Lampião (Graphic Brazil #01)

Mulher-Diaba no rastro de Lampião (Graphic Brazil #01)

Foi no começo dos anos 1990 que passei a me interessar mais especificamente pelos quadrinhos brasileiros. Para minha sorte, na época ainda eram vendidas em bancas revistas reunindo HQs de vários autores nacionais. Embora fossem minoria entre os quadrinhos norte-americanos e as revistinhas infantis, essas publicações brasileiras se destacavam. A começar por serem em P&B, mas também por geralmente terem formato maior, além de suas temáticas tenderem a ser mais adultas. Foi numa daquelas revistas vendidas em banca que vi pela primeira vez o traço genial de Flavio Colin.

Posso dizer que foi “amor à primeira vista”, pois bastou ver uma HQ desenhada por Mestre Colin para me tornar imediatamente seu fã absoluto. A partir dali, comecei a comprar qualquer revista que trouxesse uma HQ com aquele traço inconfundível, em novas edições que chegassem às bancas e principalmente em exemplares que eu encontrava em sebos e lojas de revistas antigas. Nos anos que se seguiram, minha coleção ganhou exemplares de Mestres do Terror, Calafrio, Hotel do Terror e Guerra dos Farrapos, além de edições especiais e alguns exemplares raros de As Aventuras do Anjo.

Naquele ponto, já reconhecia todas as principais fases do traço de Colin, desde a agilidade expressiva do começo dos anos 1960 até a concisão poderosa de meados dos anos 1990. Naquele ponto desta história, eu tinha também passado de aspirante a desenhista para roteirista e editor independente, após lançar alguns fanzines e as edições da revista Solar. Então, em agosto de 1997, lancei a revista Caliban nº1. Foi quando chegou às minhas mãos uma lista de endereços dos principais autores de quadrinhos brasileiros. Fã dos grandes mestres de nossas HQs, fiz pacotes e enviei pelo correio para vários deles as cinco edições de Solar e a primeira edição de Caliban.

Estórias Gerais - uma das grandes obras de Colin, parceria com o roteirista Wellington Srbek

Estórias Gerais - uma das grandes obras de Colin, parceria com o roteirista Wellington Srbek

Sabia que poderia não receber respostas, mas ao menos tive a oportunidade de enviar a eles o que eu estava publicando na época. Para minha satisfação e surpresa, um dos que respondeu, sendo até o primeiro a responder, foi ninguém menos que o grande Flavio Colin! Sua carta incentivadora, escrita para o então jovem colega quadrinista, ainda pode ser lida por aí, pois a publiquei em página inteira na revista Caliban nº3. Afinal, não é todo dia que o maior desenhista da história dos quadrinhos brasileiros envia uma carta para você, não é mesmo? O fato é que, após aquela primeira troca de cartas, outras foram e vieram no que se tornou uma correspondência constante entre Belo Horizonte e Teresópolis. E depois das cartas vieram também longos telefonemas interurbanos no horário do meio-dia, quando a tarifa era mais barata.

Naquele ponto, Mestre Colin já me chamava de amigo, o que era motivo de alegria e honra para mim. E também já trabalhávamos juntos, pois em janeiro de 1998 ele havia aceitado meu convite para ser o desenhista de uma história em quadrinhos passada no sertão mineiro na década de 1920. Abrir o envelope com as páginas do primeiro capítulo desenhado do que se tornaria o álbum Estórias Gerais foi um dos momentos mais especiais de minha vida como autor de HQs! Assim, entre envelopes que iam com páginas de roteiro esboçadas acompanhadas do texto impresso e envelopes que voltavam com as páginas já desenhadas, passaram-se os meses de uma das maiores aventuras criativas de minha vida. Quando chegou o pacote com o terceiro capítulo, veio junto uma pequena carta que Mestre Colin concluía dizendo: “Você é o roteirista que sempre me faltou”. Na certa, aquela meia folha de papel manuscrita é um dos maiores prêmios que ganhei em minha trajetória nos quadrinhos!

Nos anos seguintes, Mestre Colin e eu continuamos o contato pessoal especialmente por telefone, quando eu ouvia sua voz de estilo bonachão, mas cada vez mais expressando desânimo pelas dificuldades de trabalhar com quadrinhos no Brasil.

Felizmente, tive o privilégio de poder contratá-lo para desenhar para mim mais três HQs, lançadas em revistas independentes e depois reunidas na coletânea Fantasmagoriana – e Outros Contos Sombrios. Elas incluem a última história em quadrinhos desenhada por ele, um mês antes de seu falecimento em 13 de agosto de 2002. Quem me deu essa triste notícia, numa ligação naquela noite, foi seu grande amigo de longa data, Julio Shimamoto, outro mestre de nossas HQs que recebeu meu pacote de edições em 1997, nosso samurai do traço de quem também ganhei o privilégio de ser chamado de amigo.

O Mestre

O Mestre

Meus trabalhos desenhados por Flavio Colin já tiveram novas edições, depois das premiadas publicações independentes lançadas há quase 20 anos. Neste momento em que o maior desenhista da história dos quadrinhos brasileiros completaria 90 anos de idade, é muito bom e bem saudoso lembrar dele.

Inclusive porque, em cada traço de cada página, ele nos mostra o potencial de originalidade e criatividade que nosso país possui, mas raramente valoriza e comumente desperdiça. Ele e eu nunca nos encontramos pessoalmente. Todo nosso contato foi por carta ou telefone. Mas esse tempo em que nos falamos, entre 1997 e 2002, foi uma convivência inestimável para mim. Ainda tenho todas as cartas que ele me enviou. Elas ficam guardadas como tesouros para mim. São uma parte material do que compartilhei com um dos maiores desenhistas da história dos quadrinhos mundiais. O grande Mestre Colin que, para minha honra e minha alegria, me chamava de amigo. - Wellington Srbek - Editor e roteirista de quadrinhos