HQ em um Quadro: Eu te saúdo, Eternauta – por Héctor G. Oesterheld e Solano López

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Juan Salvo sai pela primeira vez de casa para enfrentar a nevasca alienígena (Héctor G. Oesterheld, Solano López, 1957): “O medo é a filha de Deus”, dizia Jean-Luc Godard em seu famoso curta-metragem Je Vous Salue Sarajevo (Eu te Saúdo Sarajevo, 1993), em que, na enxuta duração de dois minutinhos, criando decupagem cinematográfica para uma única foto (de Ron Haviv), o inimitável diretor franco-suíço falou sobre cultura e arte, civilização e morte, sobre o ocidente e sobre a guerra na Bósnia. A foto é famosa: mostra o exato instante em que um soldado está prestes a chutar a cabeça de uma pessoa rendida no chão. Godard discute, numa de suas notórias ‘narrações em voz over, a regra e a exceção. Sendo a cultura, a regra. A arte, a exceção. Organizar a morte da arte de viver, na Europa cultural, é a regra. Sarajevo, a exceção. “Eu vi tantos viverem tão mal, e tantos morrerem tão bem”, finaliza ele.

O uso deste pequeno filme de Godard para falar d’O Eternauta como alegoria imposta do Brasil contemporâneo acontece por duas razões:

1)    Estamos vivendo uma era de exceção. Diante da imagem do primeiro Eternauta que está em destaque, acredito que muitos podem se familiarizar, considerando o absurdo da atualidade. Juan Salvo, que depois se tornará o “Eternauta”, veste o traje e sai, pela primeira vez, para fora de casa reconhecendo o regime de exceção que se abate sobre o mundo, após uma “nevasca” tóxica cair sobre a cidade de Buenos Aires. No início da saga, uma boa quantidade de tiras foi dedicada a se pensar uma profilaxia para o problema: como sair sem tocar na perigosa neve e morrer? Como acumular mantimentos, comida, gasolina, armas e outros utensílios indispensáveis para o novo regime de atuação na realidade, considerando que o “mundo exterior” é mortífero e o ar, perigoso? Oesterheld concentra a ação nas orientações científicas do professor Favalli, que representa, arquetipicamente, a racionalidade ocidental em seu utilitarismo e capacidade matemática de prever e organizar ações, sem tempo para o luto, para o desespero, para o suicídio. O grupo atravessa pilhas de cadáveres sem poder propriamente refletir sobre esses eventos. O equilíbrio psicológico de Favalli representa também o fio de sanidade que nos separa, de maneira tênue, da entropia representada pelo caos total. A racionalidade científica logo será substituída pela militar. Um regime de exceção logo se tornará uma guerrilha contra alienígenas que são signo de certo status quo mundial. De certa forma, hoje, durante a pandemia, estamos condenados  a também pisar em pilhas de cadáveres, não necessariamente por seguirmos espartanamente à ciência (o rigor adotado pela maioria do resto do mundo – sendo a quarentena o “chamado de Favalli”), mas por um desequilíbrio psíquico-egoico, transfigurado na paranoia e na necessidade narcísica e infindável de autopreservação do presidente Bolsonaro. Trata-se da vitória da pulsão de morte materializada na psiquê de uma única pessoa, que se arrebenta como ondas numa catástrofe que afeta toda uma nação em sua capacidade de racionalizar a situação. Favalli, no Brasil de hoje, é o primeiro a ser executado. O Brasil está sendo governado, na verdade, por Lucas Herbert, o outro companheiro que sai com Juan Salvo para o “exterior” tóxico e morre após ter um surto desesperado. Organizar a morte da arte de viver é a regra.

2)    A crítica político-cultural por meio de uma imagem. “Protegido contra os flocos da nevasca mortal pelo traje hermético, me lancei à rua”, diz o recordatório do requadro selecionado. Como em quase toda a extensão da saga, o texto do letreiro representa os pensamentos retrospectivos do Eternauta. A ilustração mostra um plano de conjunto frontal de Juan Salvo saindo de uma típica casa no subúrbio de Buenos Aires, enternecido pela situação. Quem leu o gibi sabe que um dos grandes trunfos do formato engessado (tiras na revista Hora Cero) em que o Eternauta original foi produzido são justamente as caixas de rebuscadas reflexões sobre a vida e a morte – incluindo suas inescapáveis implicações éticas e até metafísicas – que Oesterheld instila na cabeça do protagonista. Trata-se, nesse caso, do “chamado de Juan Salvo”, que, ao contrário das implicações político-científicas do “chamado de Favalli”, diz respeito a nós mesmos, sobreviventes. Salvo saindo de casa é a transfiguração, agora, do momento em que vamos (ao menos nós que andamos na corda-bamba da sanidade) à rua e somos invadidos pela estranha sensação de querer continuar no espaço aberto, mas ao mesmo tempo sentir um certo asco patogênico pela realidade. É um sentimento indecidível. Flocos invisíveis de coronavírus (mesmo que não estejam lá) transtornam nossos pensamentos. Questões de ordem existencial e social nos tomam nesse momento em que não temos o privilégio de exigir respostas. O chamado de Favalli, sobre a urgência da razão, é político. O chamado de Salvo, sobre o indecidível da existência, é individual. Mesmo assim, ambos se misturam, porque a todas as existências, no Brasil de hoje, são políticas. “Eu vi tantos viverem tão mal, e tantos morrerem tão bem”.    

A imagem de Salvo saindo de casa pela primeira vez, no meio da neve tóxica, portanto, poderia se tornar signo de uma realidade que tensiona questões propostas por Godard no pequeno filme: a regra quer ocultar a exceção de todas as formas, mas o que ocorre quando exceção e regra tornam-se vítimas de ambiguidades quase insolúveis? A loucura narcísica do presidente, uma exceção que se torna regra; e a ciência, vista como “autoritária”, é regra que vira exceção. Diante de tal angústia, fica a inquietação interior de Salvo, que não pode ser traduzida senão como o medo, filha de Deus. (CIM)

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