HQ EM UM QUADRO: As vicissitudes do TOC em Binky Brown. Por Justin Green.
/por Ciro I. Marcondes
Binky procura expurgar seu transtorno cercando-se de estátuas da Virgem Maria (Justin Green, 1972): Como se pode ver neste grotesco quadro do final de Binky Brown Meets The Holy Virgin Mary (spoilers, dã), temos configurada aqui uma cena que reúne delírio, ritual, profanação, enfrentamento, expurgo. Trata-se de um ponto de convergência na aquebrantada história, zênite emocional para personagem e artista, paroxismo das tentativas de redenção para um inimigo invisível e imperturbável: a máquina de moto perpétuo mental chamada transtorno obsessivo-compulsivo.
Binky Brown Meets The Holy Virgin Mary foi produzida em São Francisco pelo quadrinista Justin Green em 1972, em meticulosas 44 páginas que formaram um comic book da Last Gasp Eco Funnies, do paciente e inspirado editor Ron Turner. Ele financiou a empreitada transgressora e alucinatória de Green numa época em que nem histórias na chamada “forma longa”, nem autobiografias radicalmente ficcionalizadas, e nem assuntos inviáveis e tabu eram comuns em revistas em quadrinhos. Justin Green, um cara meio que da “segunda divisão” dos comix underground (estudante de artes e fã especialmente de Crumb e S. Clay Wilson) tinha ainda pouca experiência com publicação de quadrinhos (havia publicado na Bijou) quando investiu tudo que tinha (financeiramente e emocionalmente) para completar esta história que hoje se tornou espécie de clássico incontornável. Chocante demais para a sua época, foi apadrinhada por Art Spiegelman como uma das fontes de inspiração para Maus. Daí para ser considerada, de certa forma, um dos “pais” do romance gráfico moderno, foi um passo.
Essa coisa de “pai do romance gráfico” é capciosa, bem sabemos. Se formos observar alguns critérios específicos, o romance gráfico pode remontar até mesmo a Töpffer, e a discussão historiográfica (com seus fetiches, definições, e mitos de origem) se torna inútil. Porém Binky Brown de fato recolheu alguns elementos que seriam aproveitados na profusão de quadrinhos em “forma longa” autobiográficos que vemos aos borbotões hoje por aí. Em especial, a honestidade radical para revelar suas fantasias mais ultrajantes e repulsivas, e a capacidade de dobrar formas e recursos de quadrinhos para dar conta de tudo aquilo que é muito dificilmente retratável nos fenômenos que compõem a mente de alguém com transtorno obsessivo-compulsivo. Green se coloca em perspectiva, alterna imaginação, referencialidade, schematas mentais e mesmo pura invenção, além de experimentar com os quadros, para traduzir o incômodo radical e minuto-a-minuto do transtorno. E é sobre isso que gostaria de falar.
Neste quadrinho, seu alter ego Binky, de criação rigidamente católica, passa a ter, desde tenra idade, uma série de pensamentos intrusos que confrontam os dogmas que aprende na escola: ele não consegue parar de imaginar, compulsivamente, situações que o fazem sentir desesperadora culpa e medo do inferno. Cenas profanas envolvendo Jesus e Maria, questionamentos involuntários e blasfemos diante de preces e situações litúrgicas, além de imaginar coisas sexualmente constrangedoras para absolutamente cada maldito ser humano que aparece na sua frente. Aos poucos, ele começa a imaginar, incontrolavelmente, “raios” em forma de pênis que saem de seus dedos, pernas, braços (além do seu próprio pênis obviamente) que “voam” em direção à mais próxima estátua da Virgem Maria de que ele tem conhecimento. Daí, como forma de compulsão, ele precisa criar caminhos específicos para estes “raios” imaginários refletirem em superfícies e acabarem não “atingindo” o alvo, que seria a própria Virgem Maria. Por bizarra que possa parecer, esta é uma situação incontrolável para ele, que precisa vivenciar esse pesadelo 24 horas por dia, sem ao menos um minuto de sossego.
Como alguém diagnosticado com TOC há quase 20 anos, confesso que Binky Brown era um dos quadrinhos que eu mais tinha medo de ler em toda a minha vida. Porém, enfrentar esse desafio desesperador em forma de comix underground me serviu também como espécie de purgação, porque, por mais que meus sintomas estejam relativamente controlados há vários anos (com remédios. Thanx aripiprazol), as obsessões, os pensamentos repetitivos e intrusos, e especialmente sua condição incapacitante – não conseguimos fazer outra coisa até que resolvamos os problemas imaginários – estão sempre à espreita, esperando um vacilo para retornarem.
As pessoas acham o TOC meio engraçado (virou até gíria) porque muita gente manifesta suas obsessões em compulsões motoras e funcionais, tipo contar degraus, só vestir determinada cor, abrir e fechar uma porta dezenas de vezes, arrancar os próprios fios de cabelo, etc. Acontece que isso aí é apenas a ponta do iceberg de uma verdadeira máquina de Goldberg mental muito troncha e zoada, em que você, plenamente consciente do quão absurdo é tudo isso, precisa executar inúmeros rituais mentais antes que eles passem para o mundo físico. Eu mesmo não conto degraus, nem tenho rituais práticos (as compulsões em si). Tudo se passa, de um jeito caótico relacionado a questões histriônicas de controle, dentro da mente. E é assim que a gente sofre, numa incomensurável solidão, porque os fenômenos do TOC são tão complexos, abstratos e diversos, que é extremamente difícil comunicá-los, mesmo pra um psiquiatra.
Um exemplo prosaico, que nem mesmo de longe é o mais perturbador que já me ocorreu: certa vez, num momento de crise, eu imaginei a hipótese de que poderiam existir alienígenas invisíveis, de outra dimensão, que teriam acesso aos meus pensamentos. Ok, eis uma hipótese um tanto ridícula que, dadas as suas próprias condições de existência, é muito difícil de provar. Porém o relógio quebrado do TOC não me deixava pensar em absolutamente nada enquanto eu não resolvesse esta questão com provas ou com uma condução mental que remetesse a alguma lógica irrefutável.
Ou seja: se alienígenas existissem, e se eles tivessem uma capacidade absoluta de camuflagem, e se por acaso além disso fossem capazes de captar frequências mentais de pensamento, etc, etc. Eu tinha que responder a cada um destes “difíceis” questionamentos sozinho, em ordem e com um dependendo da resposta do outro, sem poder perguntar para ninguém (dado o ridículo da situação), e sem poder me concentrar em qualquer outra coisa (estudos, trabalho, vida social) enquanto esse problema, que, caso fosse real, me pareceria de maior urgência, não fosse resolvido. Ao mesmo tempo, você detém a consciência de todo o absurdo do processo, e sua psiquê vai reagir deprimindo a si mesma. Você acha que está ficando louco, e isso gera depressão e uma aflição aguda.
As obsessões do TOC operam em diversas frentes: existenciais, afetivas, sexuais, operacionais. Ainda hoje, quando sento para estudar, às vezes preciso ficar relendo uma mesma simples frase dezenas de vezes até que se afigure o sentido na minha cabeça, pois, como transtorno de ansiedade, o TOC quer interromper as suas atividades com questionamentos obsessivos até que elas sejam efetivamente sabotadas.
Ler Binky Brown, porém, após muitos anos de convivência dentro desta condição, pareceu-me estranhamente aliviante. Uma das coisas que mais facilitam o entendimento deste transtorno sem cura é saber que muitas pessoas passam pela mesma situação (em diferentes configurações) e seguem a vida, em meio ao caos mental, a meio caminho do delírio, mas com a consciência intacta. Justin Green escreveu Binky numa época em que pouco se sabia desse diagnóstico. Só consigo imaginar o tamanho de sua extensa perturbação ao longo dos anos. Hoje, é reconhecido como um mestre em sua arte, apesar de ter passado décadas como simples pintor de placas. Li seu famoso romance gráfico na edição deluxe da McSweeney’s de 2009 (tipo uma “edição de artista”), com extenso e elucidativo posfácio pelo autor. Para mim foi mistura de autoajuda e de desvendar efusivamente um clássico das HQs. Caso você não se interesse por TOC, o segundo motivo certamente já basta por si só. (CIM)