Ecos Humanos em Santiago
/por Marcão Maciel
O mês de novembro é o principal para os fãs de quadrinhos no Chile, por causa da realização do Festival Internacional del Cómic (FIC Santiago). O principal diferencial deste evento é que ele não possui outros atrativos a não ser gibi. Esqueça cosplayers, stands de mega estúdios e outras firulas. Devido a esta singela – porém crucial – característica, a feira atrai o pessoal que realmente aprecia a nona arte e não quer perder tempo com distrações. A consequência é que as principais editoras e criadores do meio se esforçam para estar presentes. Afinal de contas, tem gente que aguarda o ano inteiro pelo evento, chegando a se deslocar de outras partes do Chile.
Criado em 2011, por Alvaro Herrera, Juan Maulen e Christian Gonzalez, o festival vem crescendo ano a ano e se consolidou como acontecimento máximo do gênero no país. Assim como ocorre no FIQ (realizado em Belo Horizonte-MG), Bienal de Curitiba e similares no Brasil, é daqueles eventos nos quais caminhamos meio que tapando os olhos para não ver muita coisa, caso contrário a tentação de voltar para casa com uma pilha gigantesca de gibis vencerá a eterna batalha contra o bom-senso. Exagerando um pouco e remetendo ao mito grego, todo colecionador é meio Perseu evitando o sempre fatal contato visual com a Medusa.
Bem na entrada da faculdade que abriga o FIC estão os quadrinistas independentes, muitos fazendo a transição do zine para as revistas, em selos próprios. Há muitos stands dedicados a prints, ilustrações e adesivos, nos quais privilegiam-se criações próprias em detrimento de personagens e séries americanas e japonesas. Adentrando o espaço interno, temos acesso ao pátio das editoras, com a presença de empresas vindas de outros países, como Argentina (Hotel de las Ideas). As mais relevantes editoras chilenas, praticamente onipresentes neste tipo de evento, também dão o ar de sua graça. Dentre elas, destacaria: Arcano IV (terror, policial e infanto-juvenil), Acción Comics (aventura, clássicos e mangá), Antu (quadrinhos políticos e históricos), Ariete (ação e ficção científica) e Cazar al Tiburón (quadrinho indie, experimental e fanzinesco).
Com uma programação repleta de atividades como palestras, oficinas e concursos, o FIC também realiza exposições, premiações e lançamentos, numa celebração do quadrinho chileno que privilegia autores clássicos e iniciantes. Nesta última edição, o quadrinho brasileiro teve espaço por meio da obra “Ecos Humanos”, de Ciberpajé e Eder Santos. Lançado pela editora independente Reverso no Brasil em 2018, o gibi foi publicado no Chile pelo selo Mediogato da editora Plaza de Letras.
No dia seguinte ao término do FIC, Ecos Humanos foi lançada na sede do Instituto Guimarães Rosa (IGR), em Santiago. O IGR é um centro de cultura brasileiro financiado pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil (MRE). Além de atuar como escola de português, biblioteca e promotor de eventos, o IGR funciona como ferramenta de difusão do idioma português, divulgando a língua nacional em seus diversos formatos, seja por intermédio da música, cinema, literatura e outras expressões artísticas. Recentemente, o MRE passou a investir pesadamente na promoção do quadrinho brasileiro, que vem abocanhando diversos prêmios em festivais internacionais, devido à sua sofisticação narrativa e originalidade estética, dentre outras qualidades. Um dos frutos desta iniciativa governamental foi o envio – para cada uma das mais de 25 unidades da rede IGR pelo mundo – de cinquenta obras selecionadas do quadrinho brasileiro. O acervo é de excelente qualidade e pode ser emprestado gratuitamente para alunos e não-alunos.
O evento de lançamento de Ecos Humanos no IGR teve a participação de seus criadores; do renomado quadrinista Félix Vega (autor de Fantasmas de Pinochet e Juan Buscamares, ambos publicados no Brasil pela editora Conrad); dos sócios da empresa Artistgo! (especializada em agenciar desenhistas latino-americanos para o mercado dos EUA), Claudio Alvarez (dono da Acción Comics) e Geraldo Borges (desenhista brasileiro com trabalhos para Marvel e DC); além do autor deste texto.
Durante o debate, Ciberpajé e Eder Santos discorreram sobre a produção da obra, totalmente sem palavras, balões ou recordatórios, fato que coloca Ecos Humanos num patamar diferenciado. Afinal, quantas HQs mudas que conhecemos foram feitas por dois quadrinistas, ainda mais quando ambos também são desenhistas? Na história, Ciberpajé nos apresenta um futuro distópico habitado por animais antropomorfizados. O recado deste verdadeiro libelo ecológico-pacifista não poderia ser mais claro: o amanhã será catastrófico caso a humanidade não reveja drasticamente seu comportamento com relação ao meio-ambiente. Na palestra, Ciberpajé revelou que a HQ conta com elementos autobiográficos e – em certa medida – é baseada numa experiência lisérgica que envolveu o consumo de Psilocybe cubensis, espécie de cogumelo bastante comum em fazendas e ambiente rurais.
A conversa teve como público grande parte da comunidade quadrinística de Santiago, incluindo representantes de editoras, quadrinistas, organizadores de eventos, professores universitários e escritores. Não poderia deixar de mencionar a simpatia e digamos “acessibilidade” dos figurões da área. Com zero deslumbramento e estrelismo, os papas do quadrinho chileno mostraram-se bastante abertos para conhecer mais sobre o quadrinho brasileiro e promover trocas entre países que – apesar de bastante próximos geograficamente – ainda precisam estreitar seus laços culturais.