DRUUNA: PRAZERES ROUBADOS

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por Márcio Jr.

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2019. Comprimido à direita pelo moralismo mais hipócrita, e à esquerda pelo politicamente correto, o erotismo se converteu, novamente, em tabu. Nesse panorama, o que representa a republicação em terras brasileiras de Druuna, obra máxima do italiano Paolo Eleuteri Serpieri?

A Itália possui uma das mais expressivas tradições da HQ erótica mundial. Artistas como Guido Crepax, Milo Manara e Giovanna Casotto têm alimentado a libido de leitores e leitoras mundo afora. E o mais importante: sem descambar para a pornografia pura e simples. Por intermédio de Druuna, Serpieri adentrou de modo incontornável neste panteão. Não é para menos, conforme comprova sofregamente o primeiro volume – dos três previstos – lançado pela editora Pipoca & Nanquim. Compilando em luxuosa edição Morbus Gravis, Delta, Criatura e Carnívora – os quatro primeiros álbuns da icônica personagem –, o livro é material mais que suficiente para suscitar algumas reflexões.  

As aventuras inaugurais da voluptuosa morena já haviam sido publicadas por aqui nos anos 90 – tanto nas páginas da edição nacional da Heavy Metal quanto em modestos álbuns próprios. Conquistaram uma considerável legião de fãs – com destaque para os devotos de Onan. Naqueles idos pós-ditadura, com o (agora saudoso) clima de “censura nunca mais”, o erotismo estava em alta. Druuna povoou os sonhos de toda uma geração.

É um equívoco, porém, supor que as HQs de Druuna são um mero pretexto para tórridas sequências de sexo explícito. A saga de Serpieri é, antes de mais nada, ficção científica distópica e pós-apocalíptica. O mundo se deteriorou. Uma doença altamente contagiosa aflige os humanos, transformando-os em mutantes assassinos hiperlibidinosos, confinados aos subterrâneos das cidades. Sacerdotes exercem poder através de crenças absolutistas. O sexo é moeda corrente.

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Ainda que as premissas não sejam exatamente originais, o arcabouço elaborado por Serpieri é consistente. Em última instância, Druuna é uma alegoria sobre a corrupção. Poderes, relações e, principalmente, corpos que se corrompem. Existe potência nos temas abordados pelo autor italiano. Falta-lhe, contudo, maestria como roteirista. Os elementos estão lá. Existe profundidade. Mas a construção da narrativa sempre deixa um retrogosto de dívida: a ausência de um clímax antológico, personagens mais carismáticos, reviravoltas desconcertantes.

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Drunna, enquanto personagem, traduz uma perspectiva bastante singular. Ao menos nestes quatro primeiros episódios, ela não exerce qualquer protagonismo, invariavelmente ocupando a posição de vítima das circunstâncias. Bela e saudável num mundo de carne abjeta e corrompida, está sempre em fuga e sujeita ao desejo de terceiros: buscar soro para o amante contaminado, destruir o epicentro da nave-cidade, ser emprenhada por seus captores. Se no caminho tiver que se submeter à voracidade sexual dos inimigos, fará isso sem maiores pudores, desde que salve a própria pele.

A quantidade de estupros nas HQs é sintomática. Drunna não é senhora de si. E nós acompanhamos suas violações – eventualmente prazerosas – com um olhar voyeurístico. De modo que não resta dúvidas: tal e qual um gibi de super-heróis, a obra de Serpieri é dirigida a um público eminentemente masculino.

O erotismo em Drunna está longe da sofisticação alcançada por Guido Crepax, ou mesmo Milo Manara. Ainda que a narrativa não exista como mero adereço para o sexo, quando este surge, quase sempre possui uma abordagem hardcore. Sinal dos tempos. Morbus Gravis é fruto dos anos 80, época em que o erotismo audiovisual migrava dos cinemas para o pesado mercado do home vídeo. Logo, adeus às sutilezas.

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Se o roteiro de Drunna carrega fragilidades, é na arte de Serpieri que a obra se faz irretocável, inesquecível e irrepreensível. O italiano é um ás da narrativa gráfica e um dos mais brilhantes desenhistas a colocar sua pena a serviço de uma história em quadrinhos. Visto que as contemporâneas HQs de super-heróis têm se embrenhado num pretenso hiper-realismo, seus autores deveriam tomar aulas com o mestre europeu. Não há uma página sequer que não seja marcada por uma clareza ímpar e compreensão imediata daquilo que se anseia mostrar. Serpieri, tal qual um diretor de primeira grandeza, coloca nosso olhar onde bem entende.

Cada quadro de Drunna explode em imagens de realismo exuberante. Seu domínio do claro-escuro por meio de inconfundíveis tramas de hachuras é algo único – como evidencia o rico e indispensável caderno de extras. E a destreza no uso da aquarela, bem como a primorosa escolha da paleta de cores – sempre em função da atmosfera narrativa – deveriam ser suficientes para proibir o vulgar uso de Photoshop na colorização de quadrinhos. As páginas de Serpieri são puro deleite visual – que finalmente ganham edição à altura no Brasil.

Drunna é um clássico, não uma obra-prima. Nestes dias de sexualidade reprimida, é aposta corajosa da editora Pipoca & Nanquim. Embebida numa espécie de machismo não necessariamente misógino, a HQ é testemunho de um olhar erótico de outra época. Hoje, resgata a ideia de prazer sexual nos quadrinhos. Não é pouco. Como tudo, exige leitura crítica – o que só aumenta o gozo proporcionado.

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