Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja 2022
/por Bruno Porto
Quem acompanhou a ampla cobertura Raio Laser + Eurocomics do 49º Festival International de la Bande Dessinée d'Angoulême (aqui na Raio Laser e aqui no Eurocomics ) talvez se surpreenda com o contraste com este 17º Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, que aconteceu de 27 de maio a 12 de junho em Portugal. Enquanto o maior festival europeu de quadrinhos é pulsante e agitado, o que acontece em Beja é calmo e acolhedor. Mas não se enganem: tal qual Yin e Yang, ambos são complementarmente maravilhosos. E Beja tem particularidades que outros eventos de quadrinhos fariam muito bem em adotar!
Ouvi falar pela primeira vez do Festival de BD de Beja durante um Festival de Angoulême, o de 2018 ou 2020. Soube pelo Paulo Monteiro, uma força da natureza da mais alta grandeza — que atende pelo título de Diretor do Festival bem como pelo de Diretor da Bedeteca de Beja — e que todos os anos combina a energia de um tufão em meio a um tsunami e a amabilidade e elegância do mais britânico de todos os lordes para levar quadrinistas de todos os cantos do globo para a pequena cidade de 25 mil habitantes na região do Alentejo, a umas poucas horas ao sul de Lisboa. Em março deste ano, entrevistei-o em Angoulême e confirmei-lhe que iria finalmente conhecer Beja.
Como em todo evento relativamente longo — um total de 17 dias — o maior índice de circulação e os pontos altos do festival acontecem nos finais de semana, que nesta edição foram três. Paulo sugeriu-me o de abertura, então no início da tarde da sexta-feira 27 de maio lá estava eu no ônibus fretado pela organização que saía do aeroporto de Lisboa para transportar os convidados vindos de outros países — e de outras cidades de Portugal, como o quadrinista multimídia carioca Sama, radicado há anos no Porto, que foi ao festival lançar suas HQs conexas Tranzomba e Detetive Ayahuasca. Além dos países lusófonos, esta edição teve participantes da Alemanha, Chile, Espanha, França, Inglaterra e Itália, que se reuniram na Casa de Cultura de Beja, sede das quinze exposições do festival, do mercado de livros, dos lançamentos de publicações e dos Concertos Desenhados.
JAYME CORTEZ
No aeroporto e durante a viagem de ônibus, conversei bastante com Jaime Cortez Filho e sua esposa Cristina, que moram em Miami, e haviam vindo para as homenagens que o festival faria a seu pai, o luso-brasileiro Jayme Cortez (1926-1987). Já tendo recebido uma exposição retrospectiva de sua obra na edição de 2018 do evento, o grande mestre dos quadrinhos brasileiros de Terror desta vez teve ilustrações editorais selecionadas e reunidas pelo designer e pesquisador Fabio Moraes em uma pequena porém riquíssima mostra (como aliás, comento mais a frente, são as exposições em Beja), com diversos esboços, originais e mesmo as publicações finais.
Na primeira manhã do festival, Fabio fez uma apresentação do livro Fronteiras do Além (Pipoca & Nanquim, 2020), que ele escreveu e produziu, e detalhou o processo de restauração digital dos originais deste e de outros livros da editora, como Terror no Inferno Verde, de Flavio Colin, e Tarzan: O Senhor da Selva, de Roy Thomas e John Buscema. Fabio também anunciou o lançamento, em 2023 pela editora inglesa Korero Press, de dois volumes de The Horror Comic Art of Jayme Cortez, reunindo toda a produção de Terror produzida pelo autor e, na sequência, apresentamos juntos o curta-metragem em animação O Retrato do Mal (2021, MMarte), realizado por Márcia Deretti e Márcio Júnior com base na mais famosa HQ de Cortez.
MERCADO DE LIVROS
Todas as vendas de livros do festival acontece em uma grande tenda anexa à varanda da Casa de Cultura. Diferente de outros festivais e comic cons, não há stands individuais para as diferentes editoras. Todos os livros são democraticamente expostos em mesas, agrupados por editoras e gêneros, e o pagamento é feito em um único local, diretamente à organização do evento, que depois repassa o valor para as editoras. Nesta edição, foram 70 editoras portuguesas de diferentes portes. Isso dá um trabalhão para a equipe do evento — que recebe os livros, etiqueta os preços segundo as tabelas fornecidas, e fica responsável pelas quantias vendidas — mas cria uma experiência agradabilíssima para o visitante, próxima a de uma livraria. Aqui não há que se pagar a cada vez que se vai da área de uma editora para outra, nem há stands disputando a atenção pelo tamanho ou posição. O foco são os livros, e não são raros os casos em que uma descoberta leva à outra.
SESSÕES DE APRESENTAÇÃO DE LIVROS
Outra solução agradabilíssima é a forma como acontecem os lançamentos, que não seguem a regra da tradicional palestra / conversa / entrevista seguida por uma sessão de autógrafos. Na Bedeteca de Beja, localizada no segundo piso da Casa de Cultura, acontecem apresentações de livros, geralmente com cerca de quinze minutos, por seus autores e/ou editores. Os autógrafos — ou, à maneira francesa, dédicaces, que incluem um desenho na folha de rosto — acontecem ao final da tarde, nos arejados jardins da Casa de Cultura, com uma segunda sessão com menos autores, por volta das 20h, na própria tenda.
Isso torna a programação mais ágil, com apresentações consecutivas, e desassocia a aquisição da obra em questão para aqueles que (como eu, em boa parte dos casos), queria apenas tomar contato com o trabalho do autor, sem a pressão (ou espaço de mala, ou interesse mesmo) de comprá-la. É uma dinâmica muito confortável, que me propiciou dois tipos de experiência. Uma foi a de ler o nome de um autor no programa — ou visitar sua exposição — e ir conferir a publicação no mercado, antes de assisitir a apresentação. A outra, de descer e comprar a obra apresentada, que me interessou após entender do que tratava, e até mesmo olhando com mais cuidado outros trabalhos do autor.
Além das apresentações dos livros, a programação na Bedeteca incluiu umas poucas mesas-redondas, outorga de premiações (como a do Prêmio Geraldes Lino 2002 ao quadrinista e fanzineiro Rodolfo Mariano) e mesmo apresentações de não-quadrinistas, como a do radialista Rui Alves de Sousa, que comanda o programa semanal de rádio Pranchas e Balões nas noites de terça-feira na rádio Antena 1 (mas também disponível como podcast ). Com cerca de meia hora de duração, o programa geralmente combina uma entrevista e uma breve resenha com notícias sobre eventos locais — já se encontra disponível o episódio que trata do Festival de Beja — e do campo dos quadrinhos, portugueses e estrangeiros, em geral. Vale a pena conferir!
Uma das mesas-redondas reuniu os quadrinistas Dário Duarte, Cristina Gouveia e Pedro Moura para debater o Dia Nacional da Banda Desenhada — que ainda não existe. Segundo Dário, com quem conversei após a mesa, um dos empecilhos para isso é a falta de consenso quanto à data. Enquanto uns sugerem o nascimento do quadrinista E. T. Coelho (1919-2005), outros preferem Bordalo Pinheiro (1867-1920), me explicou. “Há alguma controvérsia até sobre qual seria a primeira BD portuguesa”. Uma sugestão de Cristina Gouveia é a de que o Dia Nacional da Banda Desenhada seja o da inauguração do Museu da Banda Desenhada Portuguesa, previsto para 2023-2024, em Beja. Apesar de já haver por parte das livrarias promoções de quadrinhos — em datas como o Free Comic Book Day e afins — todos concordam que os autores portugueses se beneficiariam de um dia só para eles, quando não concorrem com super-heróis, ninjas adolescentes ou gauleses irredutíveis.
AS EXPOSIÇÕES
As exposições são um espetáculo à parte. Sucintas, com cerca de vinte pranchas cada, não sucumbem à pretensão de serem mostras definitivas, mas permitem um prazeroso panorama sobre uma HQ ou série específicas, uma fase, ou mesmo um apanhado da produção do(s) artista(s). Isso permite que todas as mostras estejam no mesmo endereço, o que favorece o visitante de fora da cidade e funciona como elemento de integração entre os convidados. As montagens são sóbrias, mas não frugais ou circunspectas. Os textos e legendas expositivos são eficientes, mas cabe a ressalva que poderiam estar também em outro(s) idioma(s) que não apenas o português (pois isso me enlouquece em festivais internacionais realizados em países como França e Holanda).
Há um breve panorama das exposições no primeiro episódio do Eurocomics — que inclui a dos italianos Andrea Ferraris & Renato Chiocca, da francesa Chloé Wary, do inglês Andrew Smith e dos portugueses Joana Rosa e Artur Correia — sobre esta edição do Festival de Beja, mas creio que vale destacar aspectos específicos de algumas outras. Uma das ausências sentidas do festival — por motivo de saúde de familiares — foi a do galego David Rubín, cuja exposição se mostrou uma baita aula de como se resolver toda a composição (e sombreamento, e balões, e tudo mais!) no desenho à lápis, antes de se partir para a arte-final — que se mostravam impecavelmente limpas! Isso ficava claro quando comparávamos os desenhos à lápis e a arte-final tanto da graphic novel Beowulf (Astiberri, 2013), com roteiro de Santiago García, como a do número 9 da revista Black Hammer (Dark Horse, 2017), com roteiro de Jeff Lemire. Em especial neste segundo caso, haviam também expostas algumas páginas coloridas digitalmente.
Uma outra comparação interessante acontecia entre os desenhos à lápis, feitos à mão, e a arte final, integralmente digital, do desenhista espanhol Keko, na exposição que reunia páginas dos seus álbuns em parceria com o escritor basco Antonio Altarriba. Trabalhando em alto contraste — com a eventual inserção de uma cor sobre o preto e branco — Keko me disse que faz assim por que a arte digital o permite corrigir com mais facilidade os desenhos, mas gosta de resolver os enquadramentos à mão. Isso se torna bastante perceptível quando há a inversão de um requadro ou redimensionamento de personagens na composição. Em algumas páginas, no entanto, era quase doloroso perceber os detalhes e a complexidade do desenho original de alguns requadros que não chegaram à versão final, que prima pelo impacto e pela limpeza.
Simpaticíssimos, Altarriba e Keko talvez tenham sido os autores estrangeiros mais badalados desta edição. Na sessão de autógrafos do primeiro sábado, ficaram cerca de três horas assinando livros da sua “Trilogia do Eu” — composta por Eu, Assassino, Eu, Louco e Eu, Mentiroso, publicados em Portugal pela Arte de Autor (o primeiro volume) e pela Ala dos Livros (os dois últimos, traduzidos pelo editor Ricardo Pereira) — e participaram de uma conversa na Bedeteca com Alexandra Sousa e Carlos Cunha, editores da revista digital sobre quadrinhos Juvebedê. Findo o dia, sentamos à uma mesa para assistir o Concerto Desenhado, e quando soube que eu era brasileiro, Altarriba falou com muita admiração e carinho de Rogério de Campos, que publicou sua A arte de voar (Veneta, 2012, com tradução de José Feres Sabino), com desenhos do também veterano Kim. Essa contundente graphic novel, aliás, foi resenhada pelo nosso Marcão Maciel em paralelo com No Pasarán (Corriere della Sera, 2020), do italiano Vittorio Giardino, e pelo editor e tradutor Jotapê Martins , que também esteve em Beja e torce para que esta trilogia, que explora as diferentes dimensões da corrupção na sociedade contemporânea, encontre editora no Brasil.
CONCERTO DESENHADO
Finda a programação diurna, os jardins da Casa de Cultura receberam, nas noites de sexta e sábado do fim de semana de abertura, os Concertos Desenhados: músicos se apresentam ao vivo tendo como cenário um telão que exibe os desenhos que um quadrinista — Rodolfo Mariano na primeira noite, Sama e Andrew Smith na segunda — faz simultaneamente em uma prancheta ao lado do palco. Animados e com presença maciça dos moradores, os shows seguem noite adentro. Já a noite de domingo nos brindou com um delicioso jantar regional no restaurante O Alentejano, após o qual todos os participantes, artistas visuais ou não, seguem a tradição de desenhar na toalhas de papel, que são recolhidas para a posteridade.
Como bem disseram os editores da Juvebedê, no Festival de Beja “respira-se e vive-se um ambiente de camaradagem que não se vê em mais lado nenhum”. É um festival pensado em todos os seus detalhes para o convívio e o deleite dos quadrinhos, de seus autores e editores. Contribui muito para isso uma equipe dedicada e plurivalente, que nitidamente ama o que faz, além do apoio da Câmara Municipal da cidade e, claro, a delícia que é Portugal, onde podemos nos reconhecer das formas mais inesperadas. Um espetáculo de festival.
COBERTURA RAIO LASER + EUROCOMICS EM VÍDEO DO FESTIVAL DE BEJA:
Festival Internacional de BD de Beja - Parte 1: Abertura, exposições, mercado de livros + entrevistas com Paulo Arsénio e Rui Brito.
Festival Internacional de BD de Beja - Parte 2: Tarde de autógrafos + entrevista com Francisco Ucha.
Festival Internacional de BD de Beja - Parte 3: Do esboço à colorização, Concerto Desenhado + entrevistas com Pedro Bouça, Fabiano Denardin, Bernardo Majer, Fabio Moraes e Rodolfo Mariano.
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