Aprendendo a roteirizar: uma aula com Peter David
/por Pedro Ribeiro
Enquanto me preparava para escrever este texto ontem de madrugada, a música "Aprendendo a jogar", de Elis Regina, permeava a minha cabeça. Nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas, aprendendo a jogar. Essa é a mensagem da gravação de 1980 por Elis, que eu nem sabia ter sido escrita pelo pré Coldplay Guilherme Arantes. Mas o texto não é sobre música, é sobre criar um roteiro de quadrinhos. Tentativa, erros, acertos, sucesso. Isso tudo está no primeiro livro de roteiro específico de quadrinhos que li, Writing for Comics and Graphic Novels with Peter David, de 2009 (ainda não publicado no Brasil).
Não sei por que, mas sempre achei difícil achar material, qualquer que fosse, sobre como escrever roteiros para histórias em quadrinhos. Talvez seja porque me formei na área visual, Desenho Industrial/Design Gráfico, onde só se falava, lia e praticava o desenho, a narrativa gráfica imagética. E eu, como vários, já desenhei, criei meus personagens, minhas pequenas HQs. Mas meu interesse foi além, queria saber como se escreve, como se cria uma trama interessante. Qual o segredo de um bom roteiro de ação? Alguém poderia me fornecer uma receita de bolo? E Peter David me proporcionou isso. Vibrei quando achei seu livro em um sebo, demorei algum tempo para consumi-lo porque o coloquei em minhas pilhas monstruosas de HQ para leitura, mas fui indo, escolhendo o momento oportuno para mergulhar fundo. Writing for Comics and Graphic Novels é básico, mas vale. Seria a versão roteiro do How to draw comics - The Marvel Way (clássico livro de como desenhar quadrinhos no estilo Marvel, por Stan Lee e John Buscema, considerado a bíblia de como se criar qualquer quadrinho Marvel dos anos 70 e 80).
O livro de Peter David tem diagramação e cores berrantes, no melhor (ou pior) estilo gibi anos 90, e é extremamente didático. Fala sobre cada elemento das histórias em quadrinhos, como trama, composição de página, desenho, cores, balões, texto, letreiramento, etc. Menciona o roteiro padrão nas editoras e o Marvel Way (estilo mais solto criado por Stan Lee onde o roteirista fornece um argumento básico, o artista tem mais liberdade em relação a como desenvolvê-lo, e o escritor escreve as falas após receber a arte finalizada).
Writing for Comics and Graphic Novels exemplifica suas teorias com histórias que Peter David escreveu em sua longa e produtiva carreira de roteirista na Marvel e outras editoras, em revistas como X-Factor, Homem-Aranha, e principalmente O Incrível Hulk. Este, um título que ele escreveu mensalmente durante 12 anos, além de spin-offs como a clássica minissérie de 1992 Hulk: Futuro Imperfeito ("eu queria muito fazer algo com o lendário artista George Pérez, e Futuro Imperfeito foi minha chance para realizar esse sonho", disse David).
Segundo David, o roteiro nas histórias em quadrinhos (seria assim também no cinema e nos seriados de TV?) é resumido em apenas 3 conflitos básicos: homem versus homem; homem versus si mesmo; e homem versus natureza. E é impressionante como esses conflitos funcionam até hoje! O livro cita como exemplo do caso homem versus homem a história "Esse homem, esse monstro", do Quarteto Fantástico de Stan Lee e Jack Kirby, 1966, e destrincha o conceito com começo, meio e fim, executado em apenas 22 páginas (hoje em dia a história seria diluída em umas três edições no mínimo, pois os quadrinhos americanos estão com um ritmo de leitura parecido cada vez mais com o mangá, com muitas imagens e pouco texto). A história, focada no personagem Coisa, mostra a insatisfação do personagem por ter sido transformado em uma criatura rochosa e seu desejo de voltar ao normal. Andando na rua, ele vê uma figura misteriosa que adentra a trama, um homem que diz que irá curá-lo. Na verdade, esse vilão se aproveita da confiança do personagem e faz algo ruim para prejudicá-lo. No final da trama, o twist: o vilão percebe a bondade do protagonista, se arrepende e se sacrifica por ele. Fim.
Eu, que estou acompanhando neste ano a série Marvel Saga: Homem Aranha (editora Panini), achei interessante ver exatamente a mesma ideia na Saga de Ezekiel, de 2004. A história de Lee/Kirby foi exatamente repetida pelo escritor J. Michael Straczynski. Mas é claro que Lee e Kirby não inventaram a roda. Peter David diz, por exemplo, em seu livro, que qualquer história romântica contemporânea vai ter, de alguma forma, um pezinho em Romeu e Julieta, de Shakespeare.
Paralelamente à leitura de Writing for Comics and Graphic Novels resolvi revisitar a fase de Peter David em Hulk, que funcionou para mim como uma leitura complementar, pois David cita diversas vezes essa fase em seu livro. David faz o que eu chamo de "novelinha" nos quadrinhos, no bom sentido. O leitor, no geral, quer encontrar na sua HQ de heróis uma novela, ele quer ser entretido, envolvido. Há de se ter densidade, desenvolvimento, expansão de cada personagem. Briga, porrada, é o menos importante na maioria das vezes. Procuramos as histórias de super-heróis não só pela ação, mas sim por mistérios, intriga, romance: o desenvolvimento de personagens principais e secundários. Vimos isso com Peter David em Hulk, com Claremont e Byrne em X-Men, Wolfman e Pérez nos Novos Titãs, Simonson em Thor... são muitos exemplos dessas "novelas" nos quadrinhos de herói, sucessos de público e crítica. O perfeito significado de uma saga.
David pegou a mensal do Incrível Hulk quando a revista estava bem ruim. O famoso escritor/artista John Byrne tinha saído abruptamente, o veterano Al Milgrom foi chamado para tapar buraco e desfazer mudanças de Byrne no personagem principal, e as coisas estavam indo de maneira bem mais ou menos, com muitas reclamações. O editor resolveu então, na teoria do "pior que está não fica", chamar o novato Peter David, que na verdade trabalhava na área comercial da Marvel e que sonhava seguir a carreira de escritor de quadrinhos. O jovem escritor embarcou no título com o também iniciante Todd McFarlane (que depois fez sucesso com o Homem Aranha e com a criação da editora Image Comics, com outras estrelas dos quadrinhos) para escrever sobre um Bruce Banner que se transformava em Hulk cinza à noite e o desenvolveu diversas vezes, transformando-o no Senhor Tira-Teima (o Hulk leão de chácara de um cassino) e finalmente na aclamada fase do Hulk inteligente (com o intelecto do cientista Banner). A força e a inteligência, o melhor de dois mundos. Essa versão do Hulk inclusive é mostrada no blockbuster de Hollywood Vingadores: Ultimato (2019).
A primeira coisa que Peter David fez no comando dos roteiros foi devolver Rick Jones, que absorveu radiação e se transformava em um Hulk verde, à condição de personagem coadjuvante. Essa é a grande essência de Jones: o jovem que se mete em apuros e faz o herói, ou personagem principal, se lascar para salvá-lo. Peter David é pragmático na máxima do roteiro: ele tem que ser interessante, criativo. Você não vai na maioria das vezes, criar algo que nunca foi feito por ninguém em matéria de roteiro, mas sua história tem que ser interessante pra você e também para os outros, senão não vale a pena contá-la. O exercício de se escrever uma história é artesanal, tem que ser desenvolvido, burilado. Nem sempre a primeira tentativa irá dar certo. É como disse a poeta a polonesa Wisława Szymborska, que em 67 anos de carreira não publicou mais de 350 poemas. Questionada por que publicou tão pouco, a poeta respondeu: "eu tenho uma lixeira na minha casa".
Na fase Peter David de Hulk, Betty Banner, par romântico de Bruce e recém-casada com ele, foge do protagonista, desaparece. Também descobrimos que ela tem Ramon, ex de um relacionamento que ocorreu enquanto ela estava nas idas e vindas com Bruce. A Shield, com agentes de boa e má índole, passa a se interessar mais pelos projetos de radiação gama que estão sendo feito em bases militares dos Estados Unidos. O agente da Shield Clay Quarterman (famoso na fase clássica das aventuras de Nick Fury por Jim Steranko na década de 60) vira um renegado e se junta a Bruce Banner e Rick Jones em sua saga. Foi aí que David resolveu arregaçar suas mangas e mostrar seus truques, como diz no livro. Por exemplo, há uma edição onde Peter David usa o termo "dar uma piscadinha para o leitor": quando o roteirista resolve alguma coisa de qualquer jeito e pronto, de maneira marota mesmo. Como em uma edição onde Rick Jones estava em uma nave e ela explode no ar. Alguns quadros depois Jones aparece normalmente, e questionado por Hulk como sobreviveu, ele simplesmente diz "eu tinha um paraquedas portátil por dentro da jaqueta".
Outro truque é quando David tem a oportunidade de dar o que o leitor quer (fazer o leitor feliz) em uma edição: depois mostrar Betty Banner por meses se desencontrando de Bruce, ele chega em uma estação, mas o trem dela já havia partido. Betty tem uma intuição e pede para o maquinista parar o trem, no meio do nada, desce e se encontra com Bruce. Por que não ser generoso de vez em quando com seu público? Foi exatamente isso, por exemplo, que Grant Morrison fez no epílogo de sua passagem por Homem-Animal, da DC Comics, em 1990. Ele tomou uma decisão em favor de retomar o estado original do protagonista Buddy Baker e de sua família, a fim de tornar a história feliz, e não proporcionar um desfecho trágico para os leitores.
O final do livro tem uma seção de perguntas e respostas muito boa, coletada nos fóruns de internet de Peter David, onde ele responde várias dúvidas e dá dicas valiosas em relação ao processo criativo e também profissional, em relação a contatos com empresas e editores de quadrinhos. Algo importante para quem quer trabalhar com isso tanto no mercado nacional, quando lá fora.
Por fim, fica a dica aqui caso alguma editora brasileira tenha interesse em publicar esse livro para que mais pessoas saibam o que Peter David tem para dizer. Outra grata surpresa em relação a livros de roteiro para HQ foi a publicação, no ano passado, do livro Escrevendo para quadrinhos: a arte e o mercado de roteiros para HQs e Graphic Novels, de Brian Michael Bendis (ed. Martins Fontes). Mas isso será assunto para um próximo texto.