American Flagg! de Howard Chaykin: uma sociedade de espetáculos violentos
/Quem estreia hoje como colaborador da Raio é o amigo das antigas Jota Erre, em um texto estiloso e cheio de marcas autorais sobre o choque provocado pelo maravilhoso American Flagg!, de Howard Chaykin, que me lembrou este famoso aforismo de Guy Débord: “A especialização das imagens no mundo se realiza no mundo da imagem autonomizada, no qual o mentiroso mentiu para si mesmo.” (CIM)
Jota-Erre é Servidor Público, Artista Visual de formação, Sommelier de Tapioca e Ukuleleísta Amador.
por Jota-Erre
Naquela paisagem incerta e pop – à enésima potência – que era a realidade urbana dos anos 1980 e 1990, mais propriamente em 1983, surge, entre as capas da produção gráfica nas bancas de jornais e revistas, do traço pop de Howard Chaykin, American Flagg! As capas das revistas de diversos assuntos, e os comics ali misturados, eram como um display sem scrolling de alguma rede social, e refletiam o que estava sendo desenvolvido na linguagem artística que talvez tenha desempenhado o papel mais forte na formação do imaginário urbano, sobretudo no ocidente, nas grandes cidades, nos últimos 150 anos: a imagem publicitária. A relação dessa linguagem gráfica com outras artes, e sua capacidade de jogar uma reflexão sobre a condição material humana ou sobre nossos sentimentos e desejos, é observada nos grandes centros culturais dessa era industrial, desde as litografias que anunciavam espetáculos, desenhadas por Toulouse-Lautrec na Paris do final do século 19, quanto na abordagem intrigante do Pop de Warhol.
American Flagg! aparece nesse contexto, em que as fronteiras entre as diversas linguagens artísticas se definiam, se nublavam ou se redesenhavam: é a época do grafite de Basquiat – Samo por exemplo - , e uma época em que o debate político entrava em diversas encruzilhadas, das quais hoje, em certos aspectos, ainda nos imbricamos.
Outro elemento importante é a tecnologia como parte da própria percepção e da possibilidade de discurso sobre o mundo, ou de possibilidade de arte.
A narrativa traz muitos elementos do que seria a imersão nesse mundo televisivo, sobretudo, mas há um paralelo interessante com o atual mundo de multitelas scrollizáveis, em perpétua alimentação-consumo da parte de massas produtoras-consumidoras de conteúdos em progressão geométrica e em tempo real – o que poderíamos em outros momentos comparar com a noção de espectator de Boal, no âmbito do Teatro-Vida em que estamos.
Mas seria o mote talvez para outras veredas.
No entanto, Reuben Flagg é um ator, e é interessante o mergulho metalinguístico.
A palavra Vídeo, para o autor do início dos anos 1980, com certeza desponta como uma condição de imersão na esfera social de massas consumidoras de centros difusores de mensagens – subliminares ou escancaradas. Curiosa comparação podemos fazer hoje com a importância renovada da própria palavra Vídeo. Hoje os vídeos que acesso são múltiplos, desde o tutorial para usar uma mesa digitalizadora para desenho, quanto para aulas de Yoga.
Nesse sentido, é muito interessante como o potencial subversivo explorado por uma estação pirata de vídeos é interpretada por American Flagg! Se pensarmos também em movimentos de mídia livre e de mídia independente, tão importantes em seus papéis tanto na subversão política possível em nossa atual distopia fascista quanto nos primórdios do que viria a ser a Web 2.0 e as redes sociais, a abordagem de American Flagg! traz imagens e propostas curiosas.
Puxo outro fio para essa outra palavra importante, o fascismo, como ele é tratado em American Flagg! não é muito idêntica ao modo como a vimos diariamente nos nossos feeds de notícias, ou nas mesas de bares, antes da pandemia, mas traz certas desconfortáveis proximidades: a espetacularização, por exemplo, da violência e do sexo, traduzindo como moedas de poder para conglomerados da distopia cyberpunk clássica – já clássica –, e, desgraçadamente para nós, a forma como uma conspiração racista e genocida global se associava a braços nessas terras chamadas brasil.
A linguagem gráfica de Chaykin se baseia na comunicação publicitária, e ela foi decisiva em muitos sentidos para os comics da época, basta pensar em como artistas trabalharam nesses dois braços da indústria cultural – o publicitário de vender chicletes ou esteiras para exercício e o não exatamente publicitário de tecer histórias gráficas de personagens fantásticos que derrotam, ou tentam, por várias vezes, o Galactus – em figuras como Neal Adams. Podemos pensar em outros, mas o caso de Neal Adams já guarda a importância para ilustrar a ideia.
Os requadros e os recordatórios se embaralham e se propõem com leiautes muito sofisticados, muito alinhados com a linguagem gráfica tanto da televisão quanto das magazines e jornais em geral, fazendo de American Flagg!, como de tantos comics, essa experiência incerta entre a zona cinematográfica de uma ópera cyberpunk, inclusive com alguns elementos da dança e da música – disco, talvez – mas citando o jazz; uma experiência que flutua entre o vídeo, no emaranhado de edições que traçam a narrativa televisiva, em sequência, em digressão diária de assuntos e imagens se multiplicando; uma experiência entre esse ritmo videático e a sobriedade mais simultânea e mais estática de uma página bem editada, bem leiautada, de uma revista ou jornal, que podemos segurar, pausar um pouco aquele movimento frenético do passar de páginas, para ler em espiral, descendo a escada em caracol com Reuben e Mandy, subindo de novo, por causa de um salto numa luta com Gotterdammercratas, encaracolando para a esquerda por causa do pulo de um gato falante, Raul, reparando no belo desenvolvimento, ao longo dos requadros e das páginas, da narrativa visual desenvolvida por Chaykin no elemento fashion da história – elemento importantíssimo, e, lembremos de Barthes, uma linguagem entre outras.
Interessante trilha sonora para se ler American Flagg!: Prince; Funkadelic; John Coltrane; Bossa Nova (talvez João Donato); Kraftwerk.
Tomo, como base dessas tentativas de leitura e apontamentos sobre o American Flagg!, a edição definitiva, Volume 1, publicada pela Mythos.