A Entrevista, de Manuele Fior: o fim da vida moderna
/por Lucas Reis
A Entrevista (Manuele Fior) acontece em um futuro próximo e se concentra na história de Raniero, um psicólogo que após um dia de trabalho sofre um acidente de carro ao ver objetos misteriosos no céu. No dia seguinte, ele tem a primeira consulta com uma jovem chamada Dora, que comenta sobre os mesmos objetos. A moça faz parte de um grupo conhecido como Nova Convenção em que os membros acreditam em novas formas de vida na em sociedade, desprezando sentimentos como o ciúme, abertos ao amor livre e a contatos com seres de outras dimensões. A graphic novel é considerada uma ficção científica, contudo, essa construção de gênero é apenas um verniz para mergulhar no cotidiano de um sujeito comum e na sua vida em sociedade.
Raniero é um sujeito que aparenta estar impaciente com tudo e todos à sua volta. Ele não tem interesse pela esposa, as pessoas mais próximas o chateiam e seu emprego parece um fardo. É uma vida desprovida de prazer. O encontro com Dora funciona, então, como um retorno do desejo pela vida. Não é por acaso que após os primeiros encontros com a moça, o terapeuta volta a se aproximar sexualmente da esposa. Há uma crescente de tesão a cada consulta que gera a necessidade de liberar essa potência. Uma das qualidades de Fior é fazer com que os desejos de Raniero fiquem quase palpáveis pelas páginas do gibi. Como Raniero é um psicólogo que, supostamente, não pode se relacionar com seus pacientes, mantém-se afastado do desejo, enquanto consegue resistir. Obviamente, essa resistência não dura por muito tempo e logo ele se entrega à garota que não tem as mesmas amarras sociais que o terapeuta e acredita que o relacionamento dos dois, se prazeroso, é válido.
Dora não é apenas uma bela jovem por quem Raniero sente desejo sexual, ela é uma ligação com um mundo novo, em que os prazeres são livres e as vontades não são castradas. Em certo momento, quando os dois já estão íntimos, a moça comenta com Raniero como ele tem nojo do mundo e das suas vontades e de como isso é estranho aos olhos dela. Quando o terapeuta comenta sobre os hábitos da jovem, ela responde: “o mundo que é velho”. Já foi dito aqui que A Entrevista se passa em um futuro próximo, mas esse futuro não revela uma mudança real, tudo continua de forma parecida e o peso de uma vida melancólica transparece nos personagens, especialmente os que já estão na faixa de cinquenta anos, como Raniero.
Para uma moça como Dora, a fuga de uma vida miserável é natural, associar-se a um grupo como a Nova Convenção faz parte de uma juventude que se sente apta a explorar universos, até então, desconhecidos. Ela divide apartamento com uma amiga no Centro, costuma passear pelos lugares que mais a encantam na cidade e ainda elocubra a sua vida adulta apenas como uma fase posterior. Entretanto, para Raniero, isso não funciona da mesma forma, pois o sujeito já enxerga a vida como um peso e não pode deixar suas responsabilidades de lado para, por exemplo, passear por um lugar que acha agradável, já que não pode deixar o hospital durante o seu horário de trabalho.
Na vida, contudo, acontecem momentos de fratura que podem nos fazer repensar e colocar em perspectiva o que entendemos como certeza: “Você bateu o carro, foi roubado e espancado em sua própria casa e sua esposa abandonou o lar”, Valter diz ao amigo em uma conversa franca. No entanto, o que importa para Raniero, de fato, é a paixão por Dora e esses momentos não são tão doloridos quanto a possibilidade de ficar sem vê la.
A paixão por Dora se torna o norte da vida de Raniero, nem mesmo o possível fim do mundo o assusta. Afinal, é real a possibilidade do mundo ser dizimado, levando em consideração os seres interplanetários que aportam na Terra em condições misteriosas causando pânico na população (os mesmos que Raniero e Dora já haviam enxergado). No entanto, Raniero sorri enquanto as pessoas estão desesperadas: “estou feliz! Viu como a Vespa deu a partida?”, diz depois de lembrar que ela estava parada por muito tempo. Pode ser que algo tão trivial como o funcionamento de uma moto, após um tempo encostada na garagem, não faça sentido para qualquer pessoa com o mínimo de juízo, porém depois de uma noite com Dora, a felicidade é tão arrebatadora que a extinção do planeta não assusta como aos outros. Não somente a extinção, mas como Valter comenta em um momento de pavor: “Se as coisas continuarem assim, voltaremos à Idade Média”.
O medo de retornar à Idade Média faz parte de uma questão bastante relevante para A Entrevista: a vida moderna. Raniero é, em essência, um herói moderno. Os seus pares são como os protagonistas de Dostoiévski, cujas semelhanças estão nos conflitos internos que seus autores pretendem mergulhar. Além, claro, de serem achatados pelo ambiente opressivo em que vivem. O hospital em que Raniero trabalha, por exemplo, é constituído por uma iluminação esbranquiçada que planifica o ambiente e é cheio de linhas e ângulos retos, evocando uma ideia arquitetônica óbvia e massificada. Não dá para diferenciar o hospital de um shopping center, ou mesmo de um cassino em Las Vegas, exceto, talvez, pelo excesso de jalecos e estetoscópios.
A própria casa em que Raniero vive já representa a fuga de um espaço massificado. Como ele comenta com Dora, o seu pai foi um arquiteto que viajou o mundo inteiro. Entretanto, não conseguiu deixar uma grande obra. Pelo contrário, o único trabalho duradouro dele foi a casa de Raniero. Nela, não há espaço para uma arquitetura que proponha linhas e ângulos retos, ligados ao urbanismo agressivo dos centros urbanos. Essa condição de relação com o espaço urbano fica mais clara quando Raniero vai encontrar com Dora na casa da garota. Ali, ele inicia uma conversa com Rosella, que divide apartamento com Dora e os dois batem papo sobre como o centro da cidade está deteriorado e a importância de sua restauração. Seja uma restauração dos prédios que estão mal conservados, seja uma restauração de vida em uma região da cidade que já foi importante, mas que está suja, acabada e sem a circulação de pessoas - o que promove encontros fortuitos, algo essencial na constituição de um modelo urbano moderno.
Nas formações das primeiras grandes metrópoles, no final do século XIX e início do século XX, os centros foram constituídos como espaços de encontro entre a população: ali, as diferentes ideias se agregavam e havia um real espaço de mobilização conjunta. A degradação do Centro está ligada, de certa forma, à degradação do próprio Raniero como morador daquela cidade. O afastamento da vida urbana de centros agregadores para um subúrbio em que as pessoas ficam dispersas é sinal de um capitalismo que retira uma vida pulsante das ruas e afasta as pessoas que poderiam convergir naquele ambiente. Não por acaso, o único momento em que percebe-se uma solidariedade é justamente quando os extraterrestres surgem e o medo reúne as pessoas no mesmo espaço. Ali elas juntam forças, mesmo que por uma necessidade específica e não por uma característica social habitual.
O encontro com Dora faz sentido até mesmo pela forma como Fior desenha a personagem. Ao contrário das mulheres desejadas dos quadrinhos italianos de autores como Guido Crepax e Milo Manara, Dora não é uma mulher esguia, com traços finos e beleza estonteante. Nem mesmo tem a sensualidade da mulher desenhada por Giovana Cassoto. Dora tem um nariz longo e excêntrico, olhos grandes e cabelos selvagens, não é uma figura simplesmente para satisfazer os desejos masculinos, mas faz parte de uma forma de olhar para o mundo se libertando de antigos preconceitos e cobiçando o enigmático.
Em uma sequência do final da história, depois da vinda dos extraterrestres à Terra, Raniero e Valter vão passar o dia na praia e, durante a noite, fazem uma fogueira. Desde o início do século XX, a praia foi vista como um espaço de lazer urbano, mas que mantinha características de uma relação com a natureza. Se os dois amigos escolhem uma praia para passar um tempo é, justamente, para poderem se desvencilhar do espaço urbano. Atualmente, há uma série de narrativas pós-apocalípticas que retratam a natureza como um lugar cruel. Seja em filmes como Um Lugar Silencioso, séries como The Handmaid’s Tale e gibis como A Terra dos Filhos, situações naturais são apresentadas como assustadoras. Nesse sentido, A Entrevista ainda carrega certo otimismo, pois a natureza, se não é idílica, é ao menos um escape necessário das intempéries.
Os seres de outro planeta são um verniz para um mundo em fase de devastação e Dora funciona como um antídoto do caos e uma possibilidade de um olhar mais doce para o universo. Contudo, o que caracteriza A Entrevista são os demônios internos de Raniero e a necessidade de expurgá los. Dessa forma, o que melhor representa o gibi são os pássaros que cortam o céu de forma constante durante o livro. Característica do outono italiano, a migração das aves indica deslocamento, mudança. No fim das contas, são essas mudanças que Raniero tem de aceitar para voltar a viver bem. E, cabe a nós lembrar que essas mudanças não precisam ser trágicas e assustadoras como a chegada de extraterrestres na Terra, mas podem ser doces e sutis como a revoada de passarinhos.