Sobre guardiões, naturalistas e policiais: Seton e Guardiões do Louvre
/por Lima Neto
A imagem que abre este texto é uma reprodução de uma pintura de Ernest Thompson Seton. A pintura é intitulada A Vitória do Lobo. Essa pintura, e sua figuração mórbida e chocante, foi reprovada pela curadoria do Grande Salão de Paris, em 1892. De nada adiantou mudar o título para Aguardando em Vão, na expectativa de que uma dose de ambiguidade pudesse convencer os júris de que aquela agourenta imagem de um lobo roendo um crânio humano acompanhado de uma despojada alcateia pudesse representar algo diferente da derrota fatal de todo um plano humanista que se encontrava a pleno vapor na Europa do Século XIX (a pintura foi inspirada na notícia de um roceiro caçador de lobos predadores de gado que desapareceu certo dia para reaparecer como um cadáver parcialmente comido pelos mesmos lobos que pretendia eliminar). Sentindo-se um incompreendido em seu discurso artístico, Seton retornou então para a América do Norte para seguir sua vida em meio aos ambientes selvagens como um estudioso dos animais que tanto respeitava.
Quando comecei a ler a graphic novel Guardiões do Louvre, de Jiro Taniguchi - e décima segunda publicação da editora Pipoca e Nanquim - ainda não havia lido o mangá Seton, publicado pela Panini e desenhado por Taniguchi com roteiro de Yoshiharu Imaizumi. Por que demorei tanto tempo para ler este mangá sendo que eu o tinha desde seu lançamento em Março de 2008 é um mistério sem resposta. Mas o fato é que ter lido os dois mangás concomitantemente me proporcionou uma lombra digna das misturas farmacêuticas mais notórias quando o resultado desejado é alteração da consciência.
Os dois títulos têm pouco em comum. Seton é um eco-consciente faroeste com ares de fábula , enquanto que os Guardiões do Louvre vai ser um espetáculo visual autobiográfico que se desdobra no silêncio contemplativo e cambiante entre um espectador adoecido e um museu do Louvre de Paris habitado por obras de arte, musas e ectoplasmas. Mas ambas as obras tangenciam-se num ponto em comum para daí partirem em caminhos opostos: o olhar que se entrega à arte. Seton, após a dura recusa de seu quadro pelo círculo parisiense de pintura, vai lavar suas mágoas no Louvre e, num momento de atenciosa contemplação, perceberá como é inútil sua tentativa de desenvolver sua expressão artística num meio tão belo e civilizado. Resolve carregar consigo seus avisos sobre os abusos da humanidade contra a natureza e partir para entender os hábitos de suas musas, os lobos. Já em Guardiões do Louvre encontramos, obviamente, o famoso museu parisiense como a grande inspiração que faz com que um artista japonês desafie o mal-estar de seu corpo adoecido para flanar febrilmente entre pinturas históricas e pintores já falecidos, acompanhado de uma corporificação da Vitória da Samotrácia.
Em Guardiões, o museu é o mundo. Seu microcosmo de dimensões incalculáveis une passado e presente na propulsão de uma subjetividade ativa que se põe a dialogar com o próprio lugar. O mangaká que narra a história chega a Paris após participar de uma feira internacional de quadrinhos. Esgotado pelo trabalho e jetlag, este homônimo de Taniguchi enfrenta sozinho, no quarto do hotel, um forte resfriado que o derruba e o obriga a ficar preso no quarto. Sem querer perder a oportunidade de conhecer o museu francês, o jovem se levanta mesmo sem ter atingido a plena cura e os momentos que se seguem são um passeio entre o sonho e a realidade, perpassado por encontros com nomes da pintura ocidental e oriental que se interinfluenciam. O artista é recebido pelo espírito da Vitória da Samotrácia, uma das esculturas mais conhecidas do museu francês que retrata a deusa Nice. Como Nice, Taniguchi é um clássico. Guardiões do Louvre é uma carta de amor escrita com uma arte assombrosa e destinada aos espaços tradicionais de contemplação da arte. E o amor, este com delimitações mais românticas, vai ter um papel tocante nessa narrativa.
Mas Taniguchi também quer mostrar que não é espaço do museu, suas paredes labirínticas, nem tampouco o são os fantasmas aurais das obras ali contidas, que merecem a exclusividade do título de guardiões. De fato, vemos nas belíssimas páginas em tons sépia da graphic novel que, durante a Segunda Guerra Mundial, foram nomes como o de Jacques Jaujard, vice-diretor da reunião dos museus nacionais da França, que, junto com uma enorme equipe, foram responsáveis por colocar em movimento uma enorme e intrincada operação para transportar as obras do Louvre para um lugar seguro, onde escapariam da pilhagem dos alemães invasores. Aquelas obras eram a alma do Louvre, e sem elas o museu não passava de uma casca vazia e deveriam ser protegidas da barbárie.
Retorna a nossa mente a imagem da Vitória do Lobo. Para Seton, a incomunicabilidade da natureza não era absoluta. A natureza deixava por todo lado evidências de suas intenções num nível indicial. Entender esses índices era entender sua vontade, que deveria então ser respeitada. A Vitória do Lobo é a derrota do homem falante. De uma humanidade orgulhosa de seus signos e de sua linguagem dominadora de seus objetos. Era a surdez da barbárie que interrompe a comunicação e faz do balbucio sem sentido um sinal de inferioridade. A pintura de Seton deve ter assombrado o sono desses reais guardiões do Louvre, pois os nazistas alemães já estavam com Paris quase dominada quando é decidido que se evacue o museu de suas obras. Mas tratava-se de outro tipo de lobo. Um lobo igualmente possuidor de linguagem. Linguagem esta que é ferramenta usada habilmente por seu líder para empreender o horror da guerra. HOMO HOMINI LUPUS.
Há alguns meses eu falei sobre a relação entre arte e quadrinhos na resenha da HQ Art Ops . Entre reclamações diversas, chamei a atenção para o uso do imaginário do controle policial em áreas aparentemente sem relação com a polícia - como a arte. O controle do conteúdo, o cercear de sua imaginação. Tudo isso muito pertinente à presente guinada ao autoritarismo que vemos ocorrer em nosso país e também na terra do Louvre. E, de fato, dentro de uma linha de pensamento mais anárquica, o museu é um espaço de policiamento da arte graças ao seu papel de “guardião” do cânone. Em todo caso, vivemos uma época novamente às portas da barbárie, e em um país onde quaisquer fossem os guardiões que resguardavam o Museu Nacional, não foram suficientes para proteger seu acervo. Talvez o que mantenha os guardiões separados dos policiais seja uma paixão, um posicionamento afetivo em relação àquilo que guarda. Em Seton, vai ser na caçada que o naturalista vai se enfeitiçar pela beleza selvagem de Lobo, o rei de Currumpaw. Ao se ver como invasor de uma área que antes era posse desses seres soberbos é que Seton decide se dedicar ao estudo desses animais. O resultado da caçada vai mudar sua maneira de agir no mundo. Nos Guardiões do Louvre, pairava a certeza de que seu acervo seria tomado por uma força policial que pilharia seu conteúdo e instauraria um discurso visual patente com os interesses dos invasores. Mas esperar que os invasores tomassem consciência do que estavam destruindo não era um opção. Também, no Brasil atual, a expectativa é a de que esta espera seja um erro.