BIENAL DE QUADRINHOS DE CURITIBA 2018 - Um evento à altura do quadrinho brasileiro

por Márcio Jr

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Grosso modo, pode-se olhar para as histórias em quadrinhos sob duas perspectivas distintas e, eventualmente, antagônicas. De um lado, existe o quadrinho como mero entretenimento, inserido num mercado multimilionário e transnacional. Trata-se da tão propalada “cultura pop” – ou geek, ou nerd, tanto faz. Neste campo, a relação do indivíduo com o universo dos quadrinhos se dá através do consumo desenfreado e acrítico. O sujeito – sujeito é modo de falar, não me levem ao pé da letra, por favor – assiste os filmes e séries, compra o balde de pipoca, a camiseta, o pôster, a caneca, o protetor de celular, o bonequinho, o videogame, a cueca. Compra também o encadernado em capa dura de seu super-herói favorito. Mas não é sempre que lê. 

Na outra ponta, temos as histórias em quadrinhos entendidas como media. Um meio de comunicação potente e autônomo, que se materializa através de uma gramática particular e infinitamente rica. Tal e qual o cinema, a literatura, as artes visuais e outras formas de expressão, os quadrinhos podem ser tudo. Inclusive, arte. Toda a complexidade da experiência humana cabe em suas páginas. Logo, tomar os quadrinhos como mero produto mercadológico evidencia uma perspectiva pobre, tacanha e medíocre, incapaz de dar conta de sua intrínseca sofisticação. Um desserviço às próprias HQs.

A Bienal de Quadrinhos de Curitiba 2018 , ocorrida entre dos dias 6 e 9 de setembro no Portão Cultural / Museu Municipal de Arte (MuMA), recebeu um público estimado em 25 mil pessoas e sai consagrada como um dos grandes eventos do gênero no Brasil. Mais do que isso, se consolida como uma ação cultural madura e que compreende as histórias em quadrinhos não como algo apartado da sociedade e direcionado a guetos de consumo, mas como uma manifestação entrelaçada no próprio tecido da vida. 

A escolha do tema da edição 2018 da Bienal não poderia ser mais apropriada – mesmo politicamente: “A Cidade em Quadrinhos”. A partir desta fagulha, deflagrou-se toda uma programação – enorme e de altíssimo nível – a problematizar as infinitas relações entre espaço urbano e quadrinhos. A curadoria, amplamente elogiada ao longo do evento, ficou a cargo de Mitie Taketani – lendária comandante-em-chefe da Itiban Comics, loja que contabiliza 29 anos de existência – e do onipresente tradutor, pesquisador, editor e crítico Érico Assis

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Shima em exposição

O conjunto de atividades gratuitamente disponíveis na Bienal de Quadrinhos de Curitiba era tão extenso que seria humanamente impossível participar de tudo. Principalmente para mim, que não fui ao evento para realizar sua cobertura jornalística, mas sim como convidado em virtude de dois trabalhos recentes e em profundo diálogo com o tema “A Cidade em Quadrinhos”: o lançamento da graphic novel Cidade de Sangue, ao lado do lendário Julio Shimamoto; e a republicação de Música Para Antropomorfos, parceria entre Fabio Zimbres e a banda Mechanics, da qual faço parte. Logo, o que ofereço aqui não é um olhar distanciado, mas um pouco da experiência de quem viveu intensamente a Bienal. 

Além de um tema específico, a Bienal de Curitiba traz sempre um homenageado, que recebe o Prêmio Cláudio Seto de Quadrinhos por suas contribuições à área. Curitiba possui uma marca indelével nos quadrinhos brasileiros: na virada dos 70 para 80, foi sede da Grafipar, editora que publicou milhares de páginas de HQs nacionais (sob o comando do saudoso Cláudio Seto). Este ano, foi a vez do arquiteto e professor universitário Key Imaguire Junior receber a honraria, encarnada no Troféu Maria Erótica, clássica personagem de Seto. Dentre outras de suas façanhas – que incluem a produção de quadrinhos experimentais já nos anos 1970 –, cabe a Key a idealização da Gibiteca de Curitiba, a mais antiga do país, fundada em 1982.

Shima, Key Imaguire Junior e familiares do saudoso Cláudio Seto.

O fato do evento acontecer no MuMA denota, de antemão, a compreensão das histórias em quadrinhos como uma linguagem potencialmente artística. Daí que um de seus pontos fortes foi o conjunto de exposições espalhadas pelo complexo. Apesar das atividades estarem ocorrendo desde as 11 horas da manhã do dia 6 de setembro, a Bienal só foi oficialmente aberta no vernissage da exposição que celebra a vida e obra de Key. A solenidade, descontraidamente apresentada por Hélio Leites e Kátia Horn, começou com um gesto típico da rebeldia de Imaguire: o pedido de um minuto de silêncio pela morte cerebral do Brasil, espelhada na tragédia do Museu Nacional.

Houve então uma emocionante quebra de protocolo. Um segundo homenageado com o Prêmio Cláudio Seto havia sido escolhido sem aviso prévio: Julio Shimamoto. Um parênteses é necessário. Shima é notório por sua timidez. Arredio, raríssimas vezes comparece a eventos e solenidades. Com os desdobramentos do nosso livro Cidade de Sangue, convites têm surgido para eventos de quadrinhos. Shima, docemente, declinou todos. Mas resolveu abrir uma exceção para Curitiba, justamente pela cidade ter sido a sede da Grafipar, editora com a qual colaborou profundamente. Fabrizio Andriani e Luciana Falcon, coordenadores da Bienal, entenderam que aquele era um momento único e resolveram entregar também a ele o Troféu Maria Erótica, como Mestre do Quadrinho Brasileiro. Shima foi, sem sombra de dúvidas, uma radiante estrela do evento.

Shima recebendo os aplausos na premiação como Mestre do Quadrinho Brasileiro.

Fabrizio Andriani, Shima, Márcio Jr., Key Imaguire e os troféus Maria Erótica.

Este é outro aspecto que chama a atenção na Bienal de Quadrinhos de Curitiba. O Brasil vive um momento de plena efervescência na produção de histórias em quadrinhos. Eventos acontecem em diversas regiões do país e nunca houve uma produção tão rica e diversa. Em contrapartida, há uma espécie de ruptura que separa as atuais gerações daquelas que vieram antes e construíram parte significativa da história da HQ brasileira. É raro encontrar autores mais antigos em eventos e convenções pelo país. Provavelmente em decorrência do legado da Grafipar, a Bienal de Curitiba busca levantar estas contradições, tanto no prêmio que carrega o nome de Cláudio Seto, quanto em convidados de edições anteriores, como o pernambucano Watson Portela, para ficarmos num único exemplo.

A Sala Domício Pedroso, que recebeu a exposição de Key Imaguire Junior, já havia dividido espaço com “Cidade de Sangue: Quadrinhos a Ferro e Fogo” – que tive a honra, privilégio (e insana trabalheira) de assumir a curadoria e montagem. Ali, todo o originalíssimo processo criativo de Shima na graphic novel homônima veio aos olhos do público. Se é que alguém ainda não sabe, Cidade de Fogo foi inteiramente desenhada com maçarico e ferro de solda sobre papel térmico. 

Ao lado de Fabio Zimbres, montei também a exposição “Música Para Antropomorfos”, na enorme Sala Célia Lazzarotto. Ali, o espaço era dividido com as “Fachadas”, de Rafael Sica; “Castanha do Pará”, de Gidalti Jr.; e “Cumbe e Angola Janga”, do eisnerizado Marcelo D’Salete.

Uma terceira (e também enorme) sala trouxe ainda três outras exposições imperdíveis. “Sonhar Curitiba” apresenta diversos quadrinistas e artistas visuais respondendo graficamente à seguinte provocação: que cidade você imagina para o futuro? “Cidade Naquim”, de Eloar Guazzelli, é um espetáculo à parte. Por cerca de 30 anos o quadrinista vem desenhando, em papel A4, uma cidade infinita. “Cidade Nanquim” é composta, na vertical, por quatro folhas. Horizontalmente, a obra já ultrapassa 25 metros de comprimento. Um delirante work in progress, nascido do caráter compulsivo de Guazzelli, ao qual pode-se facilmente dedicar horas e horas de atenção.

“Olhar a Cidade” é o resultado da Residência Artística SESI-Bienal, instigante ação implantada este ano. Entre os dias 30 de agosto e 04 de setembro, ficaram reunidos na histórica Casa Heitor Stockler de França, no Centro de Curitiba, os quadrinistas Marcello Quintanilha

, Eloar Guazzelli, Luli Penna e Guilherme Caldas. O local seria tanto o ateliê de produção quanto o ponto de partida para perambulações pela cidade, amparados por diálogos com Key Imaguire Junior. Impressiona como os processos criativos de cada artista vieram à tona. Quintanilha criou – meticulosamente, como sempre – uma HQ de três páginas, que tem na arquitetura art decó curitibana seu personagem central. Guazzelli, em contrapartida, produziu páginas e páginas, belíssimas, entrelaçando narrativas pessoais e sua presença na cidade. Luli Penna filtrou detalhes de Curitiba através da sensibilidade de seu olhar e da poesia de seu traço. Celebridade quadrinística local, Guilherme Caldas jogou no papel sua experiência e militância como ciclista, através de mapas e quadrinhos forjados na urgência do grafite sobre papéis translúcidos. Reconheço, a partir de mim, o sucesso da Residência SESI-Bienal: a exposição dos trabalhos produzidos tanto aprofundou perspectivas quanto ofereceu novas visões acerca da capital paranaense.

Quintanilha, Shima e Márcio Jr. em almoço tipicamente alemão.

O artist alley é, invariavelmente, um dos pontos fortes de qualquer encontro de quadrinhos, uma vez que é nele que se dá, sem mediações, o contato entre quadrinista e leitor. Na Bienal de Curitiba não foi diferente – mesmo sem adotar este nome, o que reforça uma posição alternativa a eventos de matriz norte-americana. Cerca de 300 artistas ocuparam 120 mesas, numa área de 1.000 m2 batizada de Feira de Quadrinhos – que foi não apenas um sucesso, mas o principal centro de circulação do público pelo festival. Representativa do momento que atravessa a HQ nacional, a Feira apresentou um notável potencial de crescimento para as próximas edições.

Dentre os mais de dez estandes presentes, o destaque foi a Itiban, verdadeiro centro de convergência dos convidados do evento. Era fácil encontrar por ali autores do quilate de Shimamoto, Quintanilha e Luiz Gê, batendo papo e assinando obras fora da grade oficial de sessões de autógrafo. Difícil acreditar que não houvesse clones de Mitie espalhados por todos os cantos, atuando tanto em sua loja quanto em diversas funções na organização da Bienal. Ninja é pouco. 

Shimamoto, André Kitagawa, Márcio Jr. e Marcello Quintanilha em um “ângulo Quintanilha”, segundo Shima. Foto de Mitie Taketani.

Mais que apostar neste contato direto entre artista e leitor, a Bienal de Quadrinhos de Curitiba se empenhou ao máximo em oferecer ao público uma profunda experiência em relação àquilo que as HQs são e podem ser. A qualidade dos debates e mesas evidenciaram essa perspectiva que reconhece nos quadrinhos um meio pleno, capaz de discutir não só a si próprio, mas os próprios tempos que vivemos – além, é claro, do tema desta edição: a cidade. Quisera eu ter tido tempo para aproveitar mais esta enxurrada de pensamento quadrinístico (e quadrinizado).  

Como convidado, participei de três debates e exibi dois de meus curtas em animação (co-dirigidos por Márcia Deretti, que infelizmente não pôde estar presente) na mostra de cinema da Bienal. Em “Ao mestre com terror: Julio Shimamoto”, discuti as peculiariedades e a importância de Shima para os quadrinhos brasileiros, além de projetarmos “O Ogro”. Shimamoto, com sua timidez zen, assistiu a tudo da plateia.

Às 18h do dia 07/09, foi exibido o longa Tungstênio, de Heitor Dhalia, baseado no livro homônimo de Marcello Quintanilha. Filmaço que tive ali minha primeira oportunidade de assistir. Na sequência, compus a mesa – mediada com rara propriedade pelo crítico audiovisual Marden Machado – com o próprio Quintanilha para discutirmos as sensíveis questões relativas às adaptações quadrinhos-cinema. 

Marden Machado, Marcello Quintanilha e Márcio Jr. no debate sobre o filme “Tungstênio” e adaptações quadrinhos/cinema.

Por fim, ao lado de Fabio Zimbres, do editor Claudio Martini (Zarabatana Books) e com hábil pilotagem de Lielson Zeni, falamos sobre os processos criativos da obra transmídia Música Para Antropomorfos. Para abrir a conversa, foi exibido O Evangelho Segundo Tauba e Primal, curta derivado do projeto. Como curiosidade, vale dizer que foi a primeira vez que Zimbres viu o filme – do qual é diretor de arte – em tela grande.

Claudio Martini, Lielson Zeni, Zimbres e Márcio Jr.: “Música Para Antropomorfos”.

A diversidade, profundidade e abrangência das discussões armadas na Bienal merece os mais entusiásticos aplausos. Num momento em que o quadrinho brasileiro brilha em pungência, mas sofre em dificuldades mercadológicas, o debate foi absolutamente enriquecedor. Porém, alguns ajustes se fazem necessários para as próximas edições. Diante da variedade (e quantidade) de ações ocorrendo ao longo do dia, muitas vezes o público sequer tinha noção da programação que se desenrolava nos diferentes espaços do Portão Cultural. Pensar um sistema de anúncios e sinalizações mais eficiente é importante para que este patrimônio seja usufruído pelo máximo possível de pessoas. Outro aspecto a ser considerado para um futuro próximo é o registro e disponibilização destes debates e discussões. O encontro e a fortuna crítica geradas pela Bienal não podem ficar restritos apenas àqueles que tiveram o privilégio de estar fisicamente presentes. Isso, obviamente, implica custos e logística. Mas é um investimento que pode provocar desdobramentos muito relevantes no panorama dos quadrinhos nacionais.

Ainda neste sentido, é fundamental assinalar o grande acerto que foi O Palco Ocupa. Montado ao lado da Feira de Quadrinhos, integrou o conjunto de debates e diálogos ocorridos na Bienal, tendo como principal característica o acento democrático e inclusivo. Explico melhor: o Palco Ocupa era pautado por todo e qualquer participante da Bienal, que tinha ali espaço e infraestrutura para dar o seu recado. Foi bonito ver como a comunidade quadrinística (artistas e editores, novatos ou veteranos) se apropriou da iniciativa e ofereceu alguns dos melhores momentos do evento.

“Bienal Publica!” foi outro golaço no entrelaçamento dos quadrinhos com a capital. A partir do tema “A Cidade em Quadrinhos”, jovens artistas curitibanos submeteram suas HQs à edição de Fabio Zimbres. O resultado foi uma belíssima publicação, cujos originais deram origem a uma exposição que tomou as paredes da Gibiteca de Curitiba. E foi na própria Gibiteca que Zimbres ministrou “Minizines na Cidade”, integrando um conjunto de mais de dez oficinas oferecidas por artistas do gabarito de Lelis, Gidalti Jr. e Diego Gerlach.  

Pensar a Bienal de Quadrinhos de Curitiba como um evento de quatro dias circunscrito ao MuMA é, no mínimo, impreciso. A Bienal avança, se mistura e pertence à cidade – principalmente num ano em que o espaço urbano é seu mote central. Dos terminais de ônibus onde artistas desenhavam ao vivo às festas e confraternizações nos bares, tudo flui neste sentido. E falando em festa, a balada oficial aconteceu no clássico Jokers Pub, com um showzaço da banda local MUV – Movimento Uniformemente Variado. Brazilian soul com vibe setentista que botou a geral no sambalanço. E ainda rolou um último drink – acompanhado de costela – no antropológico Gato Preto. Inesquecível. Ou quase.

Diego Gerlach, Rafa Coutinho e Fabio Zimbres: três quadrinistas numa noite fria.

Suspeito, contudo, que haja algo na Bienal de Quadrinhos de Curitiba que apenas os convidados consigam sentir de forma clara e direta: o carinho, cuidado e amor com que ela é realizada. A grande equipe, coordenada por Fabrizio e Luciana, é mais que profissional. Ela é apaixonada. Acredito que isso deriva do fato deles todos se sentirem, de certa forma, parte do evento. Eventualmente, donos dele.

Trabalhei minha participação na Bienal por um bom tempo junto à coordenação e a à curadoria. Os diálogos e demandas sempre foram tratados com respeito, honestidade e afeto. Chegando à Curitiba, isso apenas se intensificou. E se a cidade é o espaço urbano do encontro, a Bienal de Quadrinhos de Curitiba é o evento que parece existir para promover o encontro de toda a cadeia produtiva dos quadrinhos. Há, ali, a compreensão de que só através do encontro pode nascer o diálogo e a consequentemente busca de soluções conjuntas para os gargalos e problemas que afligem o quadrinho nacional. E o próprio país.

Márcio Jr., Shimamoto, Mitie Taketani e Luiz Gê.

Difícil então não se emocionar recordando os cafés da manhã e jantares no hotel. Ali, uma parcela mais que significativa do quadrinho brasileiro se encontrava para trocar experiências, vivências, histórias e admiração. Um momento em particular ficou marcado: um jantar em que dividi a mesa com Luiz Gê e Julio Shimamoto. Conversa incrível sobre cinema, HQ e vida. Logo se juntaram a nós Quintanilha e o incansável Guazzelli. Com a sagacidade que lhe é peculiar, Rafa Coutinho registrou o instante. Está aqui.

Jantar no hotel com Guazzelli, Luiz Gê, Quintanilha, Shima e Márcio Jr.

Em um movimento inteligente e admirável, a Bienal busca alternar seu acontecimento com o FIQ – outro enorme e fundamental encontro da HQ brasileira. As próximas edições dos dois eventos estariam previstas para 2020. A Bienal, contudo, planeja acontecer já em 2019, de modo que a cada ano teríamos um destes eventos, evitando secas prolongadas e enchentes indesejadas.

O quadrinho brasileiro atravessa um período maravilhoso e complexo. Muita qualidade, público ainda em formação. Mas está claro que estamos, hoje, produzindo o melhor e mais original quadrinho do mundo. Existem países tão bons quanto. Melhores, não. A Bienal de Quadrinhos de Curitiba entende, potencializa e celebra este momento. Assim como também entende que as histórias em quadrinhos são muito mais que uma máquina acrítica de fazer dinheiro, situada no seio da indústria cultural. Quadrinhos são algo para todo mundo. Mas são coisa de gente grande. Como a vida.

Que venha logo 2019.