Emancipação feminina, patriotismo americano e práticas sadomasoquistas: as primeiras aventuras da Mulher Maravilha
/É com plena satisfação que a Raio Laser anuncia mais uma espetacular colaboradora! Trata-se da professora e pesquisadora em história em quadrinhos e fotografia Havane Melo. Aproveitando o ensejo do filme, Havane produziu pra gente este completíssimo texto sobre a Mulher-Maravilha de Era de Ouro. Uma ótima maneira de entrar chutando portas aqui nesse território. Valeu Havane! (CIM)
por Havane Melo
As primeiras histórias da Mulher Maravilha, a Princesa Diana da Ilha Paraíso, datam da década de 1940 e são assinadas por Charles Moulton. Para começar já na polêmica, esse nome, na verdade, é um pseudônimo que mistura os sobrenomes do Dr. William Moulton Marston, psicanalista que escreveu artigos em defesa dos quadrinhos quando a sociedade americana começava a atacá-los e considerado o criador da personagem, e de M. C. Gaines, editor da All-American Comics Group, aliada formal da DC Comics. Anos depois (pasmem!), a esposa oficial de Martson, Elisabeth Holloway, declarou que teve participação direta na criação, inclusive definindo o sexo da personagem.
Para desenvolver o visual e as feições da heroína baseados nas instruções de Moulton, foi contratado o desenhista Harry G. Peter. Esse artista foi o responsável por inserir as cores e símbolos americanos no uniforme da personagem, porém, também não levou crédito, nem quando Holloway assumiu publicamente a participação nas histórias.Posteriormente, essas informações foram amplamente divulgadas e, em muitos materiais atuais, como a coletânea organizada por Roy Thomas, constam os nomes dos desenhistas e roteiristas de cada história.
As aventuras do período inicial apresentam a origem da Mulher Maravilha e sua saída da Ilha Paraíso para a América. Para entender melhor essa fase, temos que considerar o contexto político, social e intelectual americano, ou seja, a conjuntura da década de 1940 e seu reflexo direto na comunicação da época.
Politicamente, o mundo caminhava rumo à Segunda Guerra e o cenário americano incentivava o patriotismo e a valorização das forças armadas. Não é por acaso que a Mulher Maravilha usa uniforme nas cores da bandeira americana. A primeira versão foi a mais descarada de todas e continha, além das estrelas brancas sobre fundo azul, a águia careca dourada estampada no peito. Dito isso, não vai ser nenhuma surpresa se eu te contar que a Maravilha se apaixona à primeira vista por um piloto do serviço de inteligência americana, Capitão Steve Trevor, o primeiro homem a aparecer na Ilha Paraíso, exclusivamente habitada por amazonas. Trevor serve como elo entre o mundo do patriarcado (o equivalente à sociedade como a conhecemos) e a princesa Diana. É para ajudá-lo a concluir sua missão de manter a liberdade e a democracia e para auxiliar as mulheres ao redor do mundo que Diana deixa a ilha para viver na América.
Sob o aspecto social, a guerra tinha a capacidade de realocar a força de trabalho masculina para os campos de batalha, o que favorecia o direcionamento das mulheres: das tarefas essencialmente domésticas, para o mercado de trabalho. Apresentar uma heroína capaz de resolver difíceis problemas sozinha não era apenas lazer, era propaganda. Além disso, os quadrinhos de Sheena, a rainha da selva, estavam rendendo bons negócios naquele período. E embora Charles Moulton assinasse sozinho as histórias da Mulher Maravilha, a verdade é que suas duas companheiras (sim, duas!) participavam ativamente da construção da personagem.
Há boatos de que os braceletes de Diana foram inspirados nas pulseiras de Olive Byrne, a companheira não oficial de Moulton, e de que o trio era adepto de prática sadomasoquistas. E por que isso é importante? Porque está tudo embutido nas primeiras histórias. Para mais informações sobre o assunto, veja esse texto aqui ou dê uma olhada no livro The Secret History of Wonder Woman, de Jill Lepore. Mas fique sabendo que a Mulher Maravilha não tinha a pretensão de ficar sozinha e, assim que saiu da Ilha Paraíso, tratou de fazer novas amizades femininas, aliando-se a Etta Candy e às garotas da Irmandade Beeta Lambda. Durante anos essas personagens, geralmente sem nomes, apareciam em praticamente todas as histórias, auxiliando a Mulher Maravilha a resolver diversas situações.
A irmandade Beeta Lamba, algumas cenas que remetem a práticas S&M e mensagens subliminares
O terceiro pilar dessa história leva em conta a roteirização das HQs daquele período. Gente, faz mais de 50 anos que essas histórias foram escritas! Naquela época, autores e público ainda estavam desenvolvendo diversas possibilidades de utilizar essa linguagem e, eventualmente, o desenho é redundante com o texto. Para a sorte do leitor contemporâneo, o conteúdo é divertido, cheio de aventuras e, eventualmente, cabe até um suspense. Isso sem falar que a MM está longe de ser uma donzela em perigo. É ótimo vê-la carregando Steve Trevor nos braços e salvando outros tantos homens.
Nas primeiras histórias, é comum ver a Mulher Maravilha carregando homens nos braços após salva-los de situações de perigo iminente
Ao longo dos seus 75 anos, a MM foi retratada de diversas formas, de acordo com o grupo (roteirista, desenhista e editor) que a assinava. Isso fez com que ela tivesse não apenas uniformes e origens variáveis, mas diversos perfis psicológicos foram desenvolvidos. A Maravilha de Moulton é erotizada, mas não é vulgar. Os desenhos de Gaines não favoreciam jogos de anatomia para satisfazer o imaginário masculino, como a de Yanik Paquette (Mulher Maravilha – Terra Um, de Grant Morrison), por exemplo. A erotização dessa fase chega a ter um tom cômico e sua relação com outras mulheres é de irmandade, mesmo quando em lado opostos da batalha.
Mulher Maravilha: amigas e inimigas. Não passa nada!
Nas histórias modernas da MM, que privilegiam a origem mitológica da personagem em detrimento das ideias patriotas dos tempos de guerra, foi desenvolvida a “adorável submissão à vontade das amazonas”. Um conceito que privilegia os interesses da coletividade das amazonas em detrimento de seus possíveis desejos e valores pessoais. Mesmo nas histórias originais, a união entre mulheres tem lugar marcado nas lutas de Diana, vide a frequente aparição das garotas da Beeta Lambda. Provavelmente por interferência da vida privada de Moulton. Elisabeth Holloway era advogada e a principal provedora da família numa época em que apenas 2% desses profissionais era composto por mulheres. Já Olive Byrne – sobrinha de Margaret Sanger, importante feminista da década de 20 responsável pela primeira clínica de planejamento de natalidade nos Estados Unidos – embora tivesse trabalhado com Moulton em Harvard, permaneceu em casa cuidando dos filhos da família, duas crianças geradas por cada uma das esposas.
Esse conjunto de HQs são um marco social, tanto pelo conteúdo das narrativas quanto pelo contexto no qual essas histórias foram criadas. É possível que a Maravilha seja uma das personagens femininas mais fortes da cultura pop, especialmente nessa época de império cinematográfico de grandes editoras, DC e Marvel Comics. Por isso, é importante perceber que a formatação atual da personagem foi criada em consonância com o atual público feminino das HQs e do cinema de super-herói. Por muito anos, nossas expectativas como leitoras não foram levadas em consideração. Esse cenário mudou, o número de leitoras e artistas de HQs finalmente tem sido observado e sua atuação, inclusive como consumidoras ativas de produtos e merchandising, incorporada às práticas de mercado. Isso é ótimo. Dá visibilidade para o feminismo, aponta para a derrocada da sociedade patriarcal tradicional que nem os próprios homens aguentam mais (ops, tô generalizando, ok?), mas não deve ser idealizado como um ícone. É um sinal dos tempos, sem dúvidas, mas está intimamente ligado ao poder de consumo feminino (Não esqueçam disso, migas!).
Dá para ter uma ideia do uso comercial da personagem nesse vídeo, que mostra um tour pelo Museu da Mulher Maravilha, administrado por Christie Marston, neta de Moulton.
Em 2015, Roy Thomas compilou mais de 20 histórias dos primeiros anos da Mulher Maravilha (1941-1945) em um encadernado de ótima qualidade, com capa dura, papel especial, cores ajustadas, boa impressão e a identificação de roteiristas e desenhistas de cada história, de acordo com o Online Grand Comics Database.Com base nos primeiros anos que levaram à Segunda Guerra Mundial, Thomas também compilou as primeiras histórias do Batman e do Super Homem, compondo a coleção The War Years, sobre a trindade de heróis da DC. Esse texto foi escrito logo após o contato com tal material. Se você é fã de um desses heróis, não deixe de conferir os livros e conhecer os primórdios de suas caracterizações, conforme elaboradas pelos autores originais.
Coleção The War Years, de Roy Thomas. Pois é, o Batman sorria nessa época!