A importância histórica e estética dos quadrinhos de guerra: Harvey Kurtzman e Héctor Oesterheld
/por Ciro I. Marcondes
O segundo foram as 1as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, realizadas, em agosto na ECA-USP. De maior porte e maior diversidade temática (foram abordados aspectos múltiplos da história, da indústria, da tecnologia e da estética dos quadrinhos), este encontro foi fundamental para legitimar ainda mais esta opção de pesquisa, fazendo uma varredura espessa na maneira com que a pesquisa científica pode olhar para o fenômeno que são os quadrinhos.
Segue, então, meu artigo completo, publicado nos anais dos dois congressos, expandindo o que eu já havia anunciado em Raio Laser. Boa leitura e comentários são sempre bem-vindos.
1 – Introdução:
O estudo das histórias em quadrinhos (HQ), mesmo dentro de um mais aberto ambiente cultural contemporâneo, ainda precisa enfrentar, em sua revisão histórica, o problema de o meio ter sido abertamente manipulado, através de décadas, para que seu conteúdo se mantivesse sob rigoroso controle de suas potencialidades expressivas. Mais do que isso, outro problema é procurar vasculhar o valor cultural da trajetória das HQs quando é sabido (cf. HADJU, 2009) que elas foram também controladas mercadologicamente e ideologicamente em função de diversos interesses políticos e econômicos, sempre relativizados porque eram “produto para crianças”, álibi perfeito para transformá-las em espécie de subproduto cultural aparentemente sem importância.
Este artigo procura demonstrar que um estudo retrospectivo a respeito da inserção das histórias em quadrinhos na vida cultural do século XX não apenas tem valor para o estudo da produção cultural e social, mas também valor legítimo histórico, sendo influente sobre os eventos que narra, com alguns exemplos de decisiva capacidade crítica, e por fim de influente problematização estética. O universo das guerras modernas tem sido amplamente debatido tanto no âmbito da filosofia quanto da história, da literatura e da sociologia, assim como, obviamente, no cinema e no jornalismo, praticamente desde antes de as grandes guerras terem propriamente eclodido, e uma simultaneidade de questões são levantadas sempre em confluência com o surgimento de mais e mais campos e ambientes de conflito através dos séculos XX e XXI. A inserção da cultura de HQs neste debate, entretanto, é nova por parte tanto de uma revisão histórica, quanto sociocultural, quanto estética.
As editoras também viram que podiam melhorar sua imagem associando os produtos ao patriotismo e ao esforço de guerra. Superman salientou, aos leitores, a importância de doar para Cruz Vermelha Americana. Batman e Robin pediram às crianças para “manter a águia americana voando” através da compra de seguros de guerra e selos. Capitão América e seu ajudante Bucky mostravam aos leitores como coletar papel e metal para reciclagem. Editoras de todo o filão imprimiram um carta aberta do Secretário do Tesouro Henry Morgenthau Jr. pedindo a meninos e meninas que comprassem selos de guerra (Idem, p.34, tradução nossa).
O esforço de guerra dos quadrinhos, muito como o esforço político real, não deixou espaço para ambiguidade ou debates na maioria dos assuntos. Diretos, emocionais e ingênuos, os quadrinhos contribuíram para a largamente difundida impressão popular, que ainda persiste, de que a Segunda Guerra foi verdadeiramente uma “guerra boa” (Idem, p.44, tradução nossa).
Nosso estudo se concentrará em dois casos contraculturais e altamente influentes de histórias em quadrinhos de guerra que ajudaram a problematizar a indústria dos quadrinhos nos anos 50. Fundada nos anos 40, a Educational Comics (posteriormente “Entertainment Comics”, ou EC) deu radical guinada na visão americana sobre as HQs, trazendo conteúdo de muito mais verossimilhança, pessimismo e maturidade ao leitor (que já não era tão jovem), provocando a revolta de associações de pais e mestres e das igrejas. Seu reformulador, William M. Gaines, teve de depor à Suprema Corte Americana durante a Guerra Fria, e o legado da EC só pôde ser reconhecido décadas depois. Além de padrões grotescos de terror e ficção-científica, bastante chocantes, a EC ofereceu, através de uma visão arrojada e pós-moderna avant-la-lettre de seu editor, roteirista e desenhista Harvey Kurtzman, alguns dos melhores quadrinhos de guerra de todos os tempos, trazendo uma leitura sombria e niilista da Guerra de Coréia, que ainda estava em curso. Perceptivelmente influenciado por estes quadrinhos, o clássico roteirista argentino Héctor Oesterheld lançou, no final dos anos 50, a série Ernie Pike, de incrível visão humanística afiliada a seu peronismo radical, revisando a segunda guerra mundial como um constante ato fúnebre, de luto eterno, a partir do lápis do desenhista italiano Hugo Pratt.