Superbully Americano




por Ciro I. Marcondes

Por uma questão de coincidência, a DC Comics acaba de zerar novamente (“reboot”) seu universo, no legítimo sentido mercadológico de adaptar seus personagens às novas condições culturais, justamente no momento em que eu preparava este texto a respeito das primeiras histórias do Superman, datadas de 1938, republicadas pela Panini sob o título de “Crônicas – Volume 1, em 2007. No reboot em questão, a mitologia do personagem será repensada a partir de uma ideia muito conveniente de Grant Morrison: a de trazê-lo de volta às suas raízes mais profundas. O novo “velho” Superman não vai voar (apenas dar uns saltos muito grandes) e seus poderes divinais serão consideravelmente reduzidos. Da mesma forma, ao invés de supervilões intergalácticos e de outras dimensões, este novo Superman estará a serviço do cidadão comum, combatendo gangsters, falsários, políticos corruptos, etc. De fato, estas alterações (radicais a ponto do “azulão” vestir calça jeans) possuem uma convergência com o Superman de Jerry Siegel e Joe Shuster. Mas que Superman era este?

As origens culturais do Superman são mais ou menos bem conhecidas: mistura de herói de ficção científica pulp, com herói de capa e espada, com halterofilista. O seu surgimento – os autores o criaram em 1932 e tentaram vendê-lo no usual formato de comic strip, mas só conseguiram publicá-lo no formato de comic book, em 1938) – dentro de um mundo de publicações pop muito crescentes nos anos 30 que incluíam toda espécie de histórias fantásticas, poderia ser, de certa forma, previsto (vide outros justiceiros mascarados precedentes). Porém, usando uma linguagem contemporânea, este meme que se inaugura com Superman – o do super justiceiro com poderes esdrúxulos advindos de explicações científicas grosseiras (considerando o mundo sci-fi B das histórias de alienígenas como tal), usa roupa esquisita e protege os fracos e oprimidos – foi disparado com a grande sacada de Siegel e Shuster. Como podemos ver pelo sucesso deste mesmo arquétipo nos dias de hoje, foi um meme vitorioso, adaptado ao imaginário cultural do século 20.


O que é mais interessante ao se ler “Superman Crônicas”, porém, são as mutações que este arquétipo sofre no decorrer do desenvolvimento do personagem, e que revelam como nos apropriamos e hiperdimensionamos os conceitos de “super”, “homem” e “herói” de maneira que o original não previa. O Superman de Siegel e Shuster é um produto dos anos 30, ao mesmo tempo herdeiro das reformas de Roosevelt e do avanço da cultura americana como modelo para o mundo. No caso do cinema, é o momento em que os conglomerados de distribuição mundial ganham força, e políticas de boa vizinhança são instauradas. Os gêneros clássicos do cinema falado ganham corpo e presença, e passam a formatar os códigos comuns de várias linguagens culturais. O western se torna o gênero mais popular da época, e seria justamente o responsável pela criação de uma mitologia americana, contando e formatando as origens daquele povo. Os super-heróis surgem dentro deste imaginário, e refundam esta mitologia sob o prisma das então modernas indústrias culturais.

Fanfarrão
O Superman dos anos 30 se parece com um caubói. Mesmo fisicamente. Lembra uma mistura de Clark Gable com John Wayne. O cabelo, poderíamos atribuir ao protótipo de todos eles, Douglas Fairbanks, astro de inúmeros filmes de capa e espada. Porém, são as atitudes do personagem nestas primeiras histórias que lembram melhor o que significava ser um herói nos anos 30. A tríade básica da mitologia está lá: Superman é ao mesmo tempo Clark Kent, um repórter eficiente, justo, mas tímido e covarde, completamente abobalhado diante da colega repórter Louis Lane, retratada aqui como uma biscate sem caráter e sacana, mas ao mesmo tempo astuta e “investigativa”. É apaixonada pelo herói, mas desdenhosa de seu inadequado alterego. Imagino que talvez Louis Lane tenha sido a invenção deste estereótipo, tão repetido em filmes e gibis, feminista e machista ao mesmo tempo. Porém, o senso de justiça desta fase do herói, sempre descrito como uma grande invenção de Siegel, era muito adequado aos valores de outros produtos culturais da época. Tratava-se de um olhar atento aos reais problemas sociais, fruto do new deal; e uma atitude impetulante e arrogante de superpotência crescente, “direito divino” dos Estados Unidos em aplicar o senso moral “correto” da maneira que bem entendesse.

Biscate

Justiça social e fanfarronismo

Essa coisa ambígua se refletia no jeito que Superman resolve seus desafios. Da mesma forma que os caubóis (intermediários entre a civilização crescente e a selvageria natural de todo western), ele é um tipo rude e impaciente, fanfarrão e porradeiro, bem diferente do modelo apolíneo a que estamos acostumados a associá-lo (o escoteiro puritano). São várias as cenas em que o herói arremessa os bandidos de prédios ou para longe, sempre fazendo comentários cínicos, agressivos: “Desculpa, mas foi você quem pediu!”, “Sou alguém que odeia ardorosamente a sua pessoa!”. Da mesma forma, ele é um agente impiedoso e ensandecido de destruição: chega a trucidar fábricas de automóveis para impedir que se aumente o índice de atropelamentos, ou a destruir favelas para que os governos sejam obrigados a realizar reformas que impeçam o aumento da criminalidade. Suas entradas em cena são sempre bombásticas: destruindo vidros, arrebentando portas, virando carros. Se o tipo “valentão” (bully) é um dos maiores vilões sociais nos dias de hoje, podemos ver que nos anos 30 ele era um modelo de heroísmo.

Porém, esse jeito pouco ortodoxo ou “caubói” (vejam bem que o caubói é um fora-da-lei de bom coração, que realiza a justiça que a lei não alcança) de ser tinha implicação profunda nas aspirações dos Estados Unidos enquanto difusor (agressivo) de uma cultura global padrão, e especialmente enquanto força de guerra, já que estamos falando de um período à beira da Segunda Guerra Mundial. O alistamento dos soldados e a colaboração da população em terra natal (especialmente mulheres e crianças) eram atitudes que não podiam deixar ambigüidades. O cinema, os quadrinhos e toda indústria cultural serviram como força motriz para este processo. Basta lembrar que vários aviões da força aérea americana tinham o “azulão” ou o Capitão América pintados em suas superfícies.

Métodos "pouco ortodoxos"
Este modelo diferente de Superman tinha uma interessante aplicabilidade social, que nos faz refletir sobre para quão distante do nosso próprio mundo o universo dos super-heróis se afastou, enquanto, em sua origem, ele alertava para problemas bem reais. Diante da ausência da figura do supervilão, Superman dá cabo (em sua maneira tosca e até... anti-heroica) de: magnatas do tráfico de armas, torturadores, estupradores, empresas que exploram seus trabalhadores, capatazes de prisões em péssimas condições, falsários que vendem ações de petróleo falidas. De certa maneira, este mapeamento do universo do new deal que as histórias do herói traziam parecem ainda dizer mais sobre nossa própria época do que suas histórias contemporâneas.

A diferença é que, para resolver os problemas, Superman adota uma espécie de código “olho-por-olho, dente-por-dente” bastante associado ao esforço do puritanismo protestante tão presente na era clássica da cultura industrial americana: para “punir” o industrial que dá péssimas condições aos seus mineiros, Superman cria um esquema para prendê-lo, junto com outros grã-finos, dentro de uma mina, deixando-os se virarem sozinhos para sair. Da mesma forma, para “punir” o magnata da indústria bélica, Superman o obriga a alistar-se no front, para que possa vivenciar os horrores da guerra e se arrepender. Na história mais absurda de todas, Clark Kent compra dos falsários todas as ações falidas de um poço de petróleo inativo, para depois, com seus poderes de Superman, escavar a terra e ativar o poço, revendendo as ações para eles, para logo depois destruir os poços e trazer mais algum tipo “lição” torta, quase inexplicável. Esta “doutrina de correção punitiva” parece uma mistura de judaísmo primitivo, do velho testamento, com a força moral do puritanismo. Certamente muito convicente no empenho de reconstrução de um país ou de um esforço de guerra.


As histórias originais do Superman, e despeito dessas ambiguidades, possuem grande valor cultural, e entusiasticamente traziam o conceito de heroísmo para uma causa do povo (mesmo que fosse só o povo americano). Como o arquétipo “super” acabou sendo usado como propaganda de guerra, é natural que estes valores tenham se deturpado no decorrer dos anos 40, até que a cultura do gênero morresse para dar chance a um “realismo” mais brutal e sanguinário: quadrinhos de crime, horror e guerra da EC Comics. O arquétipo “super” só ressurgiria após o macartismo e censura às HQs nos anos 50, quando sua vitoriosa forma “light” seria concebida pela Marvel nos anos 60. Vale comentar, porém, que a forma “light” se enclausuraria num universo próprio e fechado, cada vez mais fazendo referência apenas a seu “mundo paralelo”, virando entretenimento puro.

Em uma das histórias de “Superman – Crônicas”, um charlatão tenta lucrar com a fama do herói, acreditando que ele fosse apenas uma lenda. Ele então patenteia direitos de comercialização da imagem de Superman, vendendo cereais, carros e até gasolina com a marca do herói. Até que chega o momento em que este “agente” procura vender para o jornal (então “Estrela Diária”) uma entrevista com o próprio Superman, que acabaria sendo realizada pelo repórter Clark Kent. No final das contas, é claro, Superman dá umas boas pancadas nos falsários, elucidando-os sobre os perigos da capitalização extrema das notícias, dos cidadãos, do heroísmo. Vista com o distanciamento de quase 80 anos, esta história parece uma ironia perdida no tempo. Um tipo como Superman obviamente nunca existiu, mas aquele mundo de mafiosos, picaretagens e extorsões continua bem vivo. A imagem do personagem descambou para capitalização extrema, e o mundo dele acabou se tornando uma mistura maluca de pseudo-futurismo, fantasia e delírios intergalácticos que pouco lembra o nosso. Fica a lição. Vamos torcer para que Grant Morrison se lembre dela. 


Crazy bastard