A pia suja de Patrice Killoffer
/Por Pedro Brandt
Envolvido diretamente com o novo quadrinho francês, Killoffer era um autor pouco conhecido no Brasil quando foi convidado para participar da primeira edição da Rio Comicom (encontro internacional realizado em novembro com fãs e profissionais da área). Em seu país, o quadrinhista foi um dos fundadores da L’Association, editora responsável por títulos como Persépolis, de Marjane Satrapi, e Epilético, de David B., trabalhos bem-sucedidos e que injetaram novo ânimo no quadrinho francês. O convite para o evento brasileiro rendeu a publicação nacional de duas de suas obras: Quando tem que ser, pela editora Marca de Fantasia, e 676 aparições, pela Leya.
Persépolis e Epilético são obras biográficas nas quais os autores contam dramas da infância e da adolescência. 676 aparições (publicada originalmente em 2002) pode ou não ser considerada uma obra biográfica. Isso fica para o leitor decidir. Se, por um lado, o protagonista é o próprio Killoffer e parte do que é narrado realmente aconteceu com ele (o desenhista recebeu uma bolsa para viver um tempo em Montreal e escrever um livro sobre a experiência), por outro, não fica muito claro o que são episódios da vida do francês e o que são delírios. Os acontecimentos se confundem.
Mente febril
Mente febril
E no fim das contas, tanto faz o que é inspirado na realidade e o que é fruto da imaginação de Killoffer. O autor oferece ao leitor uma viagem às entranhas de uma mente febril, inquieta, incomodada. Quando o personagem adentra o apartamento, ele entra em sua cabeça, seu inconsciente. A sujeira na pia funciona como uma analogia para o que ele deixou para trás quando embarcou para o Canadá: o cotidiano, as paranoias e os problemas.
Com detalhados e personalíssimos desenhos em preto e branco, o artista explora o formato das páginas (de 25cm de largura por 37cm de comprimento) criando painéis inteiros, nos quais o olhar serpenteia pelas imagens. Quebrando a convenção de narrar em quadros, ele apresenta imagens simultâneas e passeios por diferentes ângulos ao mesmo tempo.
Essa construção permite múltiplas interpretações: seriam acontecimentos passados em momentos diferentes, mas no mesmo cenário? Seria a personalidade fragmentada de Killoffer a causadora de conflitos entre o id, o ego e o superego?
Essa construção permite múltiplas interpretações: seriam acontecimentos passados em momentos diferentes, mas no mesmo cenário? Seria a personalidade fragmentada de Killoffer a causadora de conflitos entre o id, o ego e o superego?
Uma coisa é certa: 676 aparições de Killoffer é uma HQ impressionante, de fôlego, visual e psicologicamente instigante. De longe, um dos melhores quadrinhos disponíveis nas livrarias.
Publicado originalmente no Correio Braziliense de 13/12/2011