Cachalote: nossa própria Moby Dick


Por Ciro Inácio Marcondes

Sempre gostei da imagem da baleia cachalote. Ela nada em todos os oceanos e é a única baleia que chega a águas profundas, justificando seus lendários (mesmo que nunca propriamente documentados) combates com lulas gigantes abissais. A cachalote, com sua cabeça enorme e respeitável, é uma baleia dentada, e assombra nosso imaginário por ser também carnívora, ainda quem nem de longe se aproxime da agressividade das orcas, por exemplo. Mas é claro que a cachalote traz consigo um maior status cultural porque a mais famosa de todas as baleias – Moby Dick – é uma cachalote, e isso diz muito sobre esta impressionante e monumental graphic novel de Daniel Galera e Rafael Coutinho lançada em 2010. Em Moby Dick, uma inegável obra-prima da literatura americana e universal, o obcecado capitão Ahab passa, junto a um marujo chamado Ishmael, a vida tentando caçar a monstruosa baleia que lhe devorou a perna, sem receio de atravessar as raias da loucura para conseguir seu objetivo.


Cachalote pode ser considerado, de cara, um divisor de águas nas graphic novels nacionais, não porque nossa tradição em HQ não seja rica, mas sim porque nossa atenção com a arte dos quadrinhos sempre se voltou mais para as tiras ou histórias curtas. O trabalho de estreia nas HQs do escritor gaúcho Daniel Galera e de Rafael Coutinho (um desenhista fora do comum) organiza-se claramente, porém, como um projeto de grande estatura, com intenção de desvirginar este pequeno tabu nacional, e entregar ao público uma experiência megalítica e profunda. Vale, neste caso, a experiência literária e o diálogo com o cinema do escritor/roteirista, que acaba mencionando as outras formas de arte escrita/visual em Cachalote sem que esta seja uma pura viagem do melhor que a narrativa em quadrinhos pode oferecer.

A metáfora da baleia é conhecida e parodiada em todo canto, de X-Men a desenhos de qualidade duvidosa, mas raramente alcança sua densidade integral sem o acompanhamento da narrativa impressionista de Herman Melville. Moby Dick é uma travessia sombria pelas contingências da obsessão de um homem vista (e isso é essencial) pelos olhos de outro homem. De certa forma, Moby Dick nos fala sobre o ato de nos pegarmos acompanhando as buscas centrais das outras pessoas, tragados pelo universo alheio, caçando os cachalotes dos outros. Lembro-me de que meu irmão, num templo budista, descreveu a tentativa de se alcançar a meditação com a eficaz imagem daquele que tenta domar um elefante. Daí para pensarmos que a vida de cada um é uma busca por domar seu próprio paquiderme dos mares (o cachalote) e que, como Ishmael, pegamos carona nos paquidermes dos outros, é um passo simples e uma alegoria tão exata quanto angustiante.

É aqui que Galera e Coutinho nos aparecem como Ishmaels de acordo com suas próprias aptidões, usando a arte da HQ para contar cinco histórias paralelas – de angústias, incertezas e decisões a serem tomadas – que se cruzam apenas num tom factual: o cachalote pessoal que cada personagem precisa domar. Esse leitmotiv não é apenas a força propulsora desta HQ em si, mas também transmite a ideia de que nos valemos deste ato de domar, e que, como o playboy tentando empurrar a baleia no fim da história, jamais conseguimos nos livrar deste monstro interno: ele é constante, parte de nós, e nos resolvemos quando fechamos algum tipo de acordo com ele.

Vale, portanto, relacionar as histórias e a maneira com que este painel ao mesmo tempo narrativo e alegórico é construído em Cachalote. Daniel Galera enfilera cinco padrões de angústia: a de um ator chinês internacional entediado com a falta de sentido de sua vida e o suicídio de seu melhor amigo; a de um humilde atendente que ao mesmo tempo é um mestre da bondage erótica e se sente um objeto de sua principal amante; a de um escultor em crise com seu casamento e que resolve entrar num projeto tosco de cinema independente; a de um escritor depressivo que mantém amizade com sua ex-mulher, mas que não consegue superar o fim do relacionamento; e por fim a angústia de um jovem playboy arrogante e detestável, abandonado por todos, solto em uma peregrinação suicida pela Europa.

Triunfo inquestionável

Estas histórias, tão diferentes em suas meras sinopses, são compensadas no tom que os autores utilizam para erguer a HQ, sem letreiros, com franca alteração no valor e tamanho dos quadros, utilizando-se de grande quantidade de ângulos que valorizem a ação pictórica e a capacidade narrativa dos desenhos em si. O realismo fino de Rafael Coutinho, marcado por contrastes sensíveis e significativos de preto-e-branco, destila camadas narrativas, cria ambientes, demarca passagens de tempo, faz brotar sensações. Poucas vezes vi uma utilização tão refinada de tempos mortos, comuns no cinema, mas difíceis de se determinar com precisão em HQ: instâncias temporais imprecisas misturadas a estados psicológicos diluídos.

Soma-se a isso o talento de Galera para criar personagens de profundidade e detalhismo sem que pareçam forçados, valendo-se de diálogos naturais e surpreendentes, com inflexões robustas e filosóficas, inseridos cirurgicamente no esplendor gráfico de Rafael Coutinho. Cachalote é um triunfo, portanto, porque equaliza com honesto e dedicado trabalho artístico os componentes básicos que fundam a história em quadrinhos: a palavra, o espaço gráfico e o silêncio. Nesta HQ é possível que convivam, ao mesmo tempo, quatro páginas emulando as tomadas repetidas de uma filmagem cinematográfica com sutis (mas não desprezíveis) alterações, produzindo inusitado padrão de diálogo entre os dois meios; e também importantes painéis com requadros panorâmicos de página inteira, como pinturas inseridas no meio da HQ, de grande potencial expressivo e também narrativo – basta lembrar a página da troca de olhares entre o playboy na França e a namorada de seu conhecido, de forte impacto emocional e moral, anunciador do que acontecerá. 

Sem respostas fáceis ou didatismo, mas ao mesmo tempo puro em termos narrativos, Cachalote tem os ingredientes certos para uma grande obra artística. O que há de monstruoso nas buscas e escolhas destes personagens é o mesmo que há de humano neles, e é nesse sentido que uma arte visual e voyerística como as Histórias em Quadrinhos pode nos servir de substituto para o olhar meticuloso e observador de Ishmael sobre a busca de Ahab em Moby Dick: somos todos, aqui, testemunhas oculares desta peregrinação humana em direção a seus cachalotes, e o sentido desta busca, ainda que não vençamos esta baleia, não deixa de ser moral e existencial: morremos se deixamos de buscar. É por nadar nestas águas profundas que Cachalote está sendo recebido como obra-prima dos quadrinhos, e nos resta esperar que isso inspire novos trabalhos do mesmo nível.