Manifesto Comunista e biografia em quadrinhos colocam Marx como autor que desafia o tempo

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por Ciro Inácio Marcondes

“Um espectro assombra a Europa. O espectro do comunismo!” Que estas palavras não pareçam estranhas em 2019, ou, pelo contrário, que pareçam pertinentes a diversos contextos, é algo por que Karl Marx e Friedrich Engels, que as escreveram em 1848, talvez não esperariam. Especialmente se considerarmos o fato de que Marx passou sua vida em luta pela revolução: luta contra suas próprias ideias, contra outras correntes do socialismo, contra governos monarquistas, e contra a própria pobreza, que vivenciou. 

O ano de 2018 marcou o bicentenário de nascimento do filósofo nascido na cidade de Trier, à época sob domínio da Prússia. As comemorações e reflexões sobre a efeméride - especialmente em se considerando a extensão da influência dos pensamentos socialistas (em diversas direções) no mundo atual - continuam até hoje, e dois lançamentos em quadrinhos ajudam a trazer o complexo legado das ideias marxistas para a mídia dos quadrinhos.

Marx, uma Biografia em Quadrinhos (Barricada, 2018)

O livro Marx, uma Biografia em Quadrinhos (Barricada, 2018), da suíça Corinne Mayer e da francesa Anne Simon (que já publicaram HQs com as histórias de Freud e Einstein), traz um estilo cartunesco, simples porém não isento de invenção, para a atribulada vida do filósofo, com tentativas justas de se traduzir parte de seu pensamento social e econômico para as narrativas gráficas (uma tarefa ingrata, dado o alto grau de abstração da teoria marxista).

Manifesto Comunista em Quadrinhos (Veneta, 2019)

Manifesto Comunista em Quadrinhos (Veneta, 2019), adaptado com radicalidade pelo prestigiado cartunista inglês Martin Rowson, se detém sobre o texto mais famoso assinado conjuntamente por Marx e seu amigo e eventual financiador Engels, buscando manter a essência do texto original sem muitas alterações, vertendo seu discurso inflamado para situações de pesadelo visual e estranhos diálogos em quadrinhos. 

O efeito que temos ao associar as grandes ilustrações, carregadas de simbolismo, com o texto materialista e pragmático do manifesto, é o de uma redescoberta completa da atualidade (e também de alguma defasagem) da leitura de Marx e Engels sobre a modernidade industrial. Leitura essa que mantém muitas de suas virtudes numa era informacional e pós-industrial como a atual.

Modernidade líquida

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Uma das qualidades de Marx, uma biografia em quadrinhos é a maneira como a arte de Simon consegue sintetizar, com variedade de angulações e layouts das páginas, as diversas fases da complexa vida de Karl Marx. Filho de um advogado que teve de renunciar ao judaísmo, suas ideias afloraram cedo (escreveu o Manifesto Comunista com 29 anos), o que fez com que tenha sido visto como “perigoso” e expulso de diversos países. Chegou a morar na Alemanha, na França, na Bélgica e na Inglaterra. Pode-se dizer que sua vida foi atravessada pela obsessão em organizar os diversos grupos socialistas espalhados pelo mundo, sempre com a revolução como finalidade. O livro mostra seus embates com outros intelectuais que cementaram o tour de force filosófico da Europa pós-industrial no século XIX, como os anarquistas Mikhail Bakunin e Pierre-Joseph Proudhon.

Marx formou uma numerosa família (nem todos sobreviveram por muito tempo), incluindo um bastardo. Sua esposa Jenny o acompanhou durante toda sua jornada de penúria, inclusive transcrevendo seus escritos para uma letra legível, a fim de que pudessem ser decifrados e publicados. O quadrinho usa de humor e despojamento (às vezes, dá a impressão de ser de uma série voltada ao público juvenil), mas não deixamos de entender a vida de sacrifício empreendida por Marx para fazer suas obsessões virem a luz do dia. O Capital levou 20 anos para ser escrito, e os volumes dois e três foram publicados por Engels, a partir dos últimos manuscritos que sobreviveram à morte do filósofo. 

Se a biografia aposta em cores quentes e em uma visão mais “solar” da cinzenta vida oitecentista de Marx, a versão de Rowson para o Manifesto consegue capturar a urgência do texto original, que foi escrito em uma semana (eles estavam com o prazo apertado!), passou despercebido por décadas e depois se tornou um símbolo de insurreição durante da famosa Comuna de Paris (1871), conhecida como a primeira revolta do socialismo radical.

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Rowson não se abstém de colocar na ordem a teleologia marxista do manifesto, falando sobre a relação histórica entre oprimido e opressor no mundo inteiro, sobre as substituições operadas por este sistema até o fim do feudalismo e sobre a ascensão da classe burguesa no mesmo período, que se beneficia do crescimento industrial e da consolidação do capitalismo para intensificar relações de exploração e poder por meio de uma cruel mais-valia. Diante disso, os autores preveem a ascensão de uma organização do proletariado por meio das novas tecnologias, e a consequente derrubada da propriedade privada, inaugurando estados comunistas, que são descritos numa vaga axiologia no final do livro.

Os desenhos de Rowson mostram Marx e Engels como espécies de anjos ateus que nos guiam por ilustrações de porte avantajado, barrocas e eventualmente escatológicas, com algo de dantesco, mostrando o aspecto indecente e imoral do crescimento da burguesia industrial. Monstros mecânicos monumentais, fábricas sinistras e máquinas fantasmagóricas processam o trabalhador como se fossem transformá-lo numa salsicha de sangue, sempre em escalas de minúcias que poderiam nos tomar bastante tempo observando.

Esta visão sinistra da realidade de Marx se mistura, logicamente, à continuidade que ela traz ao presente. Em determinado momento, aparece a distinto trecho: “Todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e ideias secularmente veneradas, desaparecem. E as novas relações que as substituem tornam-se antiquadas antes mesmo de criar raízes…”. Parece Zygmunt Bauman falando sobre as redes sociais e modernidade líquida? Pois este é mais um motivo para insistirmos em encontrar atualidade no pensamento de Karl Marx, bem demarcada nestes dois lançamentos.