13 perguntas para Marcello Quintanilha - DESERAMA: O ESPETÁCULO DO DESEJO

Montagem a partir de foto de Luciana Oliveira

Montagem a partir de foto de Luciana Oliveira

por Márcio Jr.

Mal chegou às livrarias e Escuta, formosa Márcia vem causando alvoroço no mercado brasileiro de HQs. Diversos críticos apontam o novo trabalho de Marcello Quintanilha como um dos destaques do ano – o que não é novidade para o niteroiense radicado em Barcelona há cerca de duas décadas. Antes de Escuta, formosa Márcia, contudo, houve Deserama. Lançado pela Veneta em 2020, trata-se da estreia do quadrinista no campo específico do romance literário. A impressão, até o momento, é que os leitores dos quadrinhos de Quintanilha não aderiram imediatamente a esta nova experiência narrativa. Questão de tempo. Deserama guarda toda a pujança, labor e pretensão típicas do autor. Recomendo fortemente a leitura – do romance e da entrevista que segue abaixo.

1. Uma das características dos seus quadrinhos é o apuro textual, o cuidado na reprodução dos diferentes sotaques do Brasil, a busca de vozes individuais para os personagens. Ou seja, o trato fino com a palavra sempre existiu. Mas o que fez você dar esse salto, em Deserama, dos quadrinhos para a literatura?

Não faço a menor ideia.

É certo que prezo acima de tudo a integridade individual de cada personagem, ressaltada pelos maneirismos próprios de cada um, independentemente de seu sotaque regionalizado, e procuro extrair o máximo da língua portuguesa quanto à coloquialidade — não estou dizendo que consiga; em todo caso, tento com todas as forças —, aparentemente, algo pouco comum em um cenário onde a tradução se estabeleceu como norma e seu grande volume derivou numa estandardização do português empregado nos quadrinhos no Brasil.

Em Deserama, essa característica se preserva.

Mário Filho, João Ubaldo, Rosa, Mário de Andrade, Rubem Braga, entre outros, foram, são e, provavelmente, sempre serão uma fonte inesgotável de inspiração nesse aspecto.

Mas o fato de ter migrado para a literatura não se deve a meu amor pela prosa desses escritores, nem imagino que Deserama seja uma migração em toda regra.

Tenho muito pouco controle sobre minha produção, a tal ponto que não determino quais caminhos as histórias devem tomar, nem interfiro nas decisões dos personagens. Acredito na ficção como uma força autônoma. Ela impõe as premissas que delimitam cada relato, reivindica o meio em que se desenvolverá. Com Deserama, a literatura me coagiu desde o princípio.

2. Marcello, a essa altura já deu pra perceber que você não é o tipo de autor que gosta de anunciar trabalhos em andamento. Quando sabemos de uma obra sua, ela geralmente está pronta, ou quase. Quanto tempo você levou escrevendo este primeiro romance? Mais que isso, quando surgiu a ideia da trama desenvolvida no livro?

Falar sobre um quadrinho em andamento não está na minha natureza. É preciso que ele exista em versão final para que me sinta confortável em divulgá-lo. Até hoje tem sido assim.

É difícil calcular um tempo fechado para uma produção, porque trabalho de maneira descontínua. Tenho um processo de realização anárquico, confuso. Frequentemente sou obrigado a interromper um projeto por longo tempo até conseguir retomá-lo.

A ideia do livro foi ganhando corpo em 2016, provavelmente. Desde então, a escrita me acompanhou intermitentemente. Muitas horas em trens e aviões nas constantes turnês de promoção de álbuns como Tungstênio, Talco de Vidro ou Luzes de Niterói foram dedicadas ao livro, até que finalmente o concluí na primavera de 2020, na França, durante o primeiro confinamento.

3. Que critérios você usou para definir que Deserama seria um romance e não uma HQ?

Na verdade, não usei nenhum critério. Deserama nasceu como um romance.

Hm… preciso dizer que até para mim é esquisito, porque nunca havia pensado em me dedicar à literatura propriamente dita. Não há muito tempo atrás, essa possibilidade seria irreal — muito embora eu me sentisse familiarizado com a escrita desde o livro “Salvador”, integrante da coleção Cidades Ilustradas (Casa 21), lançado em 2005, que mesclava ilustração e crônica/conto.

No entanto, um belo dia, algumas frases soltas tecladas no computador ganharam a companhia de outras frases, e essas outras frases, a companhia de outras tantas e, assim, cerca de 260 páginas foram redigidas. E não, em nenhum momento senti a necessidade de desenhar, em nenhum momento hesitei sobre a forma. Nada. Nenhuma dúvida.

4. Me lembro do Lourenço Mutarelli afirmando que produzir prosa era infinitamente mais fácil que produzir quadrinhos – tanto que, depois de ter se tornado escritor, ele praticamente abandonou as HQs. E para você, como é esta relação?

No meu caso, até abrir os olhos pela manhã é um ato de extrema dificuldade.

Não consigo elaborar uma escala de complexidade, porque os dois veículos são totalmente diferentes.

Não defino o quadrinho como a união do código texto com o código desenho, porque isso significaria sobrepor esses dois itens a toda uma gama de signos que compõem a linguagem com igual importância — balonagem, requadros, etc.

Assim, dificuldade e facilidade não entram na equação, simplesmente porque o teor ficcional de cada narrativa aponta o meio de expressão mais efetivo para a realizá-lo.

5. Jonathan, o protagonista de Deserama, é um jovem de Niterói, filho de uma classe média falida, apaixonado por rock inglês. O quanto de Quintanilha existe em Jonathan – e vice-versa?

Eu sou todos os personagens e vice-versa. Não há outra explicação. Jonathan não está mais próximo de mim do que o sargento ressentido de Tungstênio ou a dentista atormentada de Talco de Vidro. O eixo da minha criação está na compreensão de que nada do que aflige ou motiva os personagens me é alheio porque todos compartilhamos a mesma precariedade da condição humana.

Abro mão de qualquer espécie de julgamento, arbítrio, pudor. Ao conceber um personagem, minha entrega é completa. Não por acaso, quando concluo um álbum estou esgotado. Me sinto completamente vazio, desbalanceado. Necessito um tempo para recuperar o equilíbrio, porque mais do que escrever, me interessa viver o ciclo de cada um.

6. Num primeiro momento, o universo dos personagens de Deserama – jovens ao final da adolescência, terminando o ensino médio – me pareceu um tema inusitado para um romance. Se anunciava ali uma espécie de literatura infanto-juvenil – algo estranho ao seu trabalho (pelo menos desde os tempos em que Gaú se ocupava com terror e kung-fu). Ao longo da narrativa percebi que as coisas não eram bem assim. Em algum momento houve o risco de você escrever um livro para um público mais jovem? Ou melhor: com que faixa etária você imagina que Deserama se comunica melhor? 

Dom Casmurro provavelmente anunciaria coisa parecida, pelo menos até  Bentinho escapar do seminário!

Não tacho nenhum tema como inusitado para um romance ou para qualquer outro ofício, nem considero que minha temática devesse se restringir a tópicos antagônicos ao universo infanto-juvenil.

No princípio da minha carreira, era comum que tentassem fixar um domínio único para meu trabalho. No entanto, com o decorrer dos anos, esse conteúdo não fez outra coisa a não ser se expandir e hoje parece ainda mais difícil encontrar uma classificação para ele.

Ser lido por um público mais jovem não é um risco. É uma bênção. É uma bênção que qualquer pessoa se interesse pelo seu trabalho.

Não sinto que deva uma abordagem típica e exclusiva, uma imagem característica, digamos, aos leitores, porque acho que nossa relação se caracteriza pela honestidade mais absoluta, e também não pretendo colocar as coisas nesses termos, ou seja, nos termos em que eu idealize o tipo de público para o qual direciono uma história. Essas questões simplesmente não existem para mim.

Me parece incongruente escolher a audiência, porque isso nos leva a determinar categorias de gente qualificada para absorver a informação, em inevitável oposição aos não qualificados, pessoas cujo arcabouço cultural e referencial não as capacita para tal.

Realmente é assim? Creio que a vida pode nos pregar peças que deixam marcas indeléveis se insistimos nesse modelo.

Historicamente, essa noção se associou à ideia da concessão artística, que tem como finalidade a facilitação das engrenagens de uma obra, ou, dizendo de outro modo, o esvaziamento de seu coeficiente intelectual para torná-la mais acessível a camadas supostamente menos instruídas da população.

Nada mais violento.

Minha principal ambição é me comunicar com o maior número possível de pessoas, independentemente de seu registro individual. Realmente acredito que todos são capazes de desfrutar, se beneficiar, se apropriar, enfim, da arte em sua plenitude.

7. Uma referência que me veio à mente foi Alta Fidelidade, best-seller de Nick Hornby, dado o conjunto de referências acumuladas em Deserama, principalmente no que tange à música pop. Novamente, eu não poderia estar mais enganado. A música e a cultura pop não são o centro da narrativa, mas uma espécie de pano de fundo. É esse mesmo o papel da música no livro?

A música é bem incalculável. Ela marca todos os meus passos. Sou tremendamente seduzido pela ideia de transformar em linha sua tensão rítmica, se é que isso faz algum sentido. O encadeamento das palavras sempre me pareceu tremendamente musical e nunca perco essa rota de vista quando me dedico a uma nova ideia.

Ouço música profana o tempo todo. Sobretudo rock. Quanto à música sacra, ou seja, samba, choro, côco, baião, música caipira, etc, ouço bem menos porque sou facilmente arrebatado por ela, então preciso andar com cuidado. Sou incapaz de ficar indiferente a esses acordes.

No romance, ela atua com o um termômetro das vicissitudes saboreadas por Jonathan, um espelho de seu estado de ânimo.

Como disse acima, me interessa a comunicação mais ampla, com todos os leitores, a despeito de suas mitologias pessoais. A proximidade com as referências do romance, portanto, não é condição sine qua non para sua assimilação, porque a problemática da narrativa se desenvolve em outras esferas, a do embate entre pertencimento e desapego, a da descoberta do mundo, do amor, a da tentativa de se controlar circunstâncias que conduzem uma trajetória particular e que a vida por si só se encarrega de desmontar como um castelo de cartas.

Acho que exatamente por isso meu trabalho tem sido tão bem acolhido fora do Brasil, apesar de sua configuração inequivocamente brasileira em praticamente todos os aspectos. Creio fortemente que as aspirações, conflitos e dramas expostos nele se distribuem em maior ou menor medida entre todos os membros da raça humana.

8. Deserama é uma história de amor?

É. Um amor visceral, egoísta, infinito, bruto, deseducado e desproporcional.

9. Você sempre escolheu os títulos de seus trabalhos com o máximo de cuidado. De onde vem e o que quis dizer com Deserama?

Títulos são um mundo em si mesmos. Me encanta que possam mobilizar as pessoas, estimulá-las a descobrir a obra.

Deserama é o nome de um hotel no Arizona. Fui fisgado por esse nome desde o princípio, por associá-lo imediatamente (sem qualquer indício de que assim seja, aliás) a dois vocábulos: desejo e orama — a palavra grega que designa a exibição de um espetáculo, a apreciação de um espetáculo. Desejo + orama. Deserama. O espetáculo do desejo.

10. Jonathan, o protagonista do livro, é gay. Em algum momento você se preocupou com a questão do tão comentado “lugar de fala”?

Não, em nenhum momento, porque isso seria corroborar uma concepção errônea da noção de lugar de fala, cujo correto entendimento nos campos da sociologia e da antropologia é nada menos que urgente, justamente para que sirva à ampliação e fundamentação de um alicerce crítico e dialético no âmbito da ficção.

11. Há um trato estilístico com as palavras em Deserama. Você consegue identificar a influência de autores específicos sobre a sua escrita?

Machado é meu pão. Pobre de mim.

Os relatórios de gestão da prefeitura de Palmeira dos Índios lavrados por Graciliano Ramos se enquadram na mais alta literatura; Clarice Lispector me perdeu para sempre nos corredores do Maracanã, à procura da minha parca dignidade; Artur Azevedo e suas Revistas de Ano, registro do uso do passado composto na língua portuguesa — conjugação bem menos votada nos dias atuais; Carolina Maria de Jesus e sua eruditamente coloquial; Antônio Fraga, me desabrigou no passado, me desabriga no presente e tornará a me desabrigar no futuro.

Aldir Blanc e a reivindicação da magnificência da cultura suburbana.

Lima Barreto, insubordinado, capaz de sacrificar um romance em nome da polêmica com seus contemporâneos irmãos (?) de letras.

Rubem Braga me mostrou a amplidão do firmamento contida em pé de milho.

Pobre de mim.

12. O livro passa ao largo de questões políticas contemporâneas. Você acha que isso pode afetar o interesse pela obra? Aliás, como tem sido a recepção que ela tem obtido? E mais, já tem outro romance em mente?

Não tenho uma resposta para isso. Nunca me inspirei nos temas vigentes em cada período que tenha vivenciado, e até hoje é assim.

Por outro lado, toda manifestação artística é também uma ação política.

Lembro da quantidade assombrosa de vezes em que meu trabalho foi recusado por editores e diretores de arte sudeste afora no começo da minha carreira, por — nas palavras desses profissionais — retratar a pobreza ou, mais assertivamente, a marginalidade, o que naturalmente o relegou à condição de pária, porque não havia qualquer correspondência entre ele e as tendências adotadas pelo mercado de então, se é que podemos expressar assim.

Fascinante, porque meu trabalho não trata das questões que se desenrolam à margem da sociedade, mas essencialmente das que dizem respeito à classe trabalhadora, vítima preferencial do neoliberalismo. Funcionários públicos de baixo escalão, comerciários, operários, artesãos, trabalhadores braçais, músicos, todos eles inseridos muito direitinho na economia formal; e mesmo sua contraparte na economia informal é contemplada, porque, veja você, economia informal também é economia; que provavelmente são lidos como marginais por andarem de bermuda e chinelo e, inevitável aventar essa possibilidade, por não serem brancos.

Com a sucessão das publicações que venho assinando, porém, tem ficado cada vez mais claro que esse paradigma antecipava muitos dos temas incluídos no debate público atual. Debate esse que, do meu ponto de vista, ganhou notoriedade tardiamente. Mas, como também já disse antes, finalmente se iniciou, e é imparável.

Não sei o que pode afetar a recepção de Deserama. Somado a isso, a literatura é um campo novo para mim, uma descoberta. Tudo que me tem chegado do livro não poderia ser mais positivo.

E não, não tenho outro romance em mente, pelo menos, não ainda.

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13. A Veneta acabou de anunciar seu novo quadrinho, Escuta, formosa Márcia. O que você pode nos dizer sobre ele?

“Escuta, formosa Márcia” é o título de uma modinha de autoria anônima, muito executada nos saraus do século XIX, pela qual sou apaixonado. Todo o enredo está construído em função dessa peça.

O relato se sustenta em três pilares: Os demônios, de Dostoiévski, Esperando Godot, de Beckett, e A juventude de Corto Maltese, de Hugo Pratt.

O primeiro, pela narração não narrada de uma trama subjacente à vivida pelos personagens à roda de Stiepan Trofimovitch, que nos dá a medida da efervescência política existente na Rússia da segunda metade do século XIX e que desaguou na revolução de 1917.

Admiro muito o Teatro do Absurdo de Beckett, Ionesco e Genet, por seu questionamento à finalidade da existência em si mesma, nascido do trauma ocasionado pela segunda guerra mundial, que pôs em cheque valores até então petrificados na sociedade ocidental, como Deus e o papel do homem dentro da coletividade. O absurdo é a chave de muitos procedimentos ao longo do álbum.

Hugo Pratt recorreu a um exíguo espaço como teatro de operações onde transcorre o baile entre Corto Maltese e seu nêmesis Rasputin, nos anos de juventude de ambos. É cativante que a escrita se circunscreva a uma dimensão tão reduzida de tempo e espaço.

Escuta, formosa Márcia é meu primeiro trabalho gerado unicamente por computador. Lancei mão de uma paleta reduzida a escassas 28 cores que oscilam entre o quente, o frio e o ácido, que simbolizam um dos traços mais característicos da nossa sociedade, cores daqueles que são capazes de gargalhar bem alto de alegria, sem nunca conseguir ao menos sorrir de verdadeira felicidade.

A sinopse da editora é mais do que eu mesmo poderia idealizar:

            “Mãe solteira, nascida e criada em uma comunidade do Estado do Rio, a enfermeira Márcia vem travando uma verdadeira batalha doméstica para disciplinar sua filha, a insubordinada Jaqueline. Apesar do auxílio de seu companheiro Aluísio, padrasto da garota, tudo parece inútil: Jaqueline não aceita se submeter a nada que a impeça de sair por aí e fazer o que quiser, sem dar satisfações a ninguém. Porém, quando a jovem se vê envolvida até o pescoço com o crime organizado, Márcia estará disposta a chegar às últimas consequências para livrá-la dessa enrascada. Quer Jaqueline queira, quer não.”